Tercio Sampaio Ferraz Jr
A pobreza editorial brasileira é um dos dados relativos que mais chama atenção quando se examina o desenvolvimento cultural deste País. Por isso é que se conta uma anedota na qual, em matéria de produção intelectual, o italiano tem as intuições, o alemão as recolhe e as aprofunda, o francês as expõe com clareza cartesiana, o anglo-saxão as divulga, o espanhol traduz e o brasileiro delas toma consciência na tradução castelhana.
Nesta escala, portanto, o próprio humor já coloca o Brasil no último degrau. E, de acordo com os últimos acontecimentos, a piada corre o sério risco de se tornar verdadeira. Afinal, basta que a ela seja acrescida uma recente condição: o brasileiro lê quando lhe permitem.
A disposição do governo federal, através do zelo do seu ministro da Justiça, em selecionar as leituras que fazemos das traduções que chegam até nós, pela censura prévia das obras importadas, sem dúvida alguma é um jato de água fria no incipiente grau de cultura do País. Isso porque, a rigor, o estudante médio brasileiro é aquele que só consegue ler algumas coisas em traduções castelhanas.
Não me refiro aos alunos dos cursos de graduação, para os quais os preços altos dos livros importados já é uma proibição. Penso nos alunos de pós-graduação. Como nestes cursos, político. Sendo a serie última e real deste domínio, elas não têm, em princípio, um programa político próprio. Em países democráticos, elas são o instrumento do próprio exercício do poder. Elas não decidem por si, mas põem-se a serviço de um grupo dominante.
No entanto, em países ou situações em que o governo — aquele que decide o programa político — é frágil, as burocracias começam a crescer e a tornar-se um verdadeiro poder político. Mas como a organização burocrática por sua própria natureza é um elemento estável na vida política, dona das rotinas e das ordens dos papéis, sua supremacia acaba por conduzir a um efetivo estancamento do status quo político e social, uma vez que, como burocracia, ela não produz nem ideias novas nem disposições novas.
Em outras palavras, debaixo da superfície do movimento rotineiro e ordenado, retarda-se toda e qualquer evolução. Assim, um Estado em que começa a imperar o poder impotente das burocracias está destinado a representar, pouco a pouco, a imagem estrutural de uma "democracia" sem liberdade, da sociedade dirigida pelos outros, cujo tipo mais sinistro é apresentado pelos porcos de George Orwell. Um Estado que caminha automaticamente nos ombros da burocracia e que se torna o lugar privilegiado em que alguns tomam as "iniciativas" em nome da massa.
Um Estado desse tipo vê no homem que pensa e se informa um perigo constante, uma ameaça que deve ser extirpada pelas raízes. A livre informação, a autonomia da pesquisa e da ciência é, sem dúvida, a seiva que alimenta a resistência. Por isso, deve ser estancada de antemão. E a censura do que se pode ler, prévia e fatal ditada pelos critérios de uma burocracia transformada em pretor da inteligência, é a peça-chave para a obtenção daquele tipo de cultura: a burocultura, onde cada cidadão leva em si mesmo apenas a disposição puramente formal de desempenhar determinados papéis, de tal modo que seus valores, seus interesses, suas informações e conhecimentos não sejam efetivamente os seus próprios, mas os da sociedade burocratizada em que vive.
Acontece, porém, que essa burocultura — onde o homem é conduzido a desconfiar de sua esfera privada de ação, trocando-a por papéis fixos, seguros e anônimos que ele exerce com tranquilidade rotineira, é o arremedo da cultura: a mera submissão do saber e da ação à esterilidade dos lugares-comuns.
Por tudo isso, para um país que pretende realizar desde já a grande arrancada, medidas de censura e controle só podem significar um atraso de muitos anos. Atraso que no momento, talvez, fique encoberto pelo resto da seiva que corre ainda entre nós, mas que, a longo prazo, poderá engendrar um colapso grandiloquente que o historiador do futuro saberá lamentar profundamente. Antes dele, todavia, lamentam desde já tantos quantos dedicam sua vida à formação das gerações futuras, jogadas repentinamente nas sombras do conformismo retardaste da burocultura.
Fonte: Sexto-feira, 17-6-77 — O ESTADO DE S. PAULO.