A centralização do poder

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

Não é segredo para ninguém que a evolução do, processo político brasileiro tende a um fortaleci­mento crescente das esferas executivas nos sistemas de decisão. Isso ocorre tanto pela centraliza­ção progressiva das competências da União em detrimento das competências estaduais, como pe­la maior atenção que se dá a ação dos Executivos (federal, estaduais e municipais) em relação ao papel desempenhado pelos Legislativos e Judiciá­rios. Afinal, por si só a presença do AI-5 representa um Instrumento centralizador da maior eficácia, na medida em que permite ao comando revolucio­nário acionar mecanismos de intervenção nos di­versos domínios da vida nacional, cuja responsabi­lidade converge para um único endereço: a própria Presidência da República.

Muito se tem discutido sobre a conveniência de se incorporar o AI-5 ao sistema jurídico-político, parecendo a alguns que a institucionalização defi­nitiva deste remédio provisório garantiria uma es­tabilidade duradoura para nosso desenvolvi­mento. A recente cassação dos direitos políticos do presidente da Assembleia ressuscita a questão, que merece ser vista de um ângulo mais abrangente.

Um dos focos de crise mais agudos das moder­nas sociedades está, justamente, em se enfrentar a enorme complexidade dos problemas sociais. Tal complexidade, em qualquer decisão dos poderes públicos, luta contra condicionamentos políticos, econômicos e culturais, onde a elaboração de um orçamento ou a proposta de uma reforma do Judi­ciário exige informações complexas, que nenhum indivíduo, grupo ou instituição pode fornecer sozinho. Há um desafio ao homem moderno, uma vez que essa mesma complexidade é responsável por um panorama de desencontros, insegurança e in­certeza.

Deste modo, para que o Estado realize sua atividade administrativa com um mínimo de ra­cionalidade, seu Executivo tem de programar suas decisões conforme critérios finalísticos em prol dos quais ele trabalha. Neste sentido, nenhum Executivo se furta à necessidade de indicar previa­mente os fins que se propõe a atingir, conforme os meios de que disponha. No entanto, suas decisões - como, por exemplo, a de se construir um metrô - estão ligadas a esses fins. Ou seja, aos benefícios sociais que delas resultarão.

A força destas decisões repousa, justamente, na possibilidade de se obter consenso e cooperação concretos entre os endereçados a respeito desses fins. Isso significa que, embora o Executivo não seja necessariamente o centro da vida política, nas suas decisões ele se identifica com os fins propos­tos pela sua atividade administrativa, sendo, con­sequentemente, julgado pelos resultados obtidos. Assim, para que um Executivo funcione de modo altamente produtivo, é importante que ele obte­nha consenso político suficiente, tanto para pro gramar quanto para enfrentar possíveis desilu­sões.

Este apoio político, contudo, não deve ser conseguido pelo próprio Executivo, uma vez que ao longo do tempo isto pode significar para ele uma sobrecarga insuportável. Não que, na sua ati­vidade administrativa, ele tenha de desenvolver uma espécie de neutralidade tecnológica. Mas sim no sentido de que sua atuação deve saber-se dependente de um apoio político que ele não deve tornar como sua função específica.

As recentes crises na política americana, por exemplo, que pareciam tender a um "salutar" for­talecimento do presidencialismo, apenas nos mos­tram como a concentração de competências e da sua legitimidade num único poder pode levar à queda de um presidente e à perda de uma hogemo­nia partidária, sem falar nos custos sociais dc Watergate e do Vietnã para o povo daquele país.

A democratização da ordem política é, deste modo, um dos caminhos mais eficientes que se conhece para assegurar o bom desempenho da atividade administrativa, com alta legitimidade e baixos custos sociais. Sua estrutura mestra exige não uma separação, mas uma clara diferenciação e especificação das funções executivas, políticas e judiciais. Quando esta especificação das funções públicas ocorre efetivamente, a carga legitimadora da atividade estatal fica convenientemente distribuída.

O Legislativo, por exemplo, pela própria estrutura de seus processos de decisão dos conflitos sociais, é mais apto para enfrentar questões de alta complexidade política, permitindo um tratamento aberto de problemas, com a possibilidade de se acolher a diversidade de opiniões, sem que isto represente um entrave para suas decisões.

Assim, uma eleição é um mecanismo de descarga de insatisfações que se tornam canalizadas e controláveis, de um modo politicamente suportável. Com ela, garante-se-a legitimidade da ação legislativa que representa outra válvula impor­tante no processo de captação do consenso polí­tico, capaz de valorizar e incorporar o papel do dissenso, através de disputas, debates parlamen­tares, votações majoritárias, etc. Já o Judiciário por sua vez, tem a função específica de manter uma válvula de escape para insatisfações ao nível mais concreto das decepções grupais e individuais. Afinal, ali todos sabem que, por uma decisão judicial, ou mais ou menos, alguém perde e alguém ganha.

Esse tipo de opção e de necessidade específica de legitimação é que o Executivo deve, justamente, evitar. Para seu melhor funcionamento, ele não deve enfrentar alternativas do tipo perda/ganho, como faz o Judiciário, nem do tipo consenso/dissenso, como acontece no Legislativo, pois sua atividade pressupõe que todos estejam ganhando e que haja consenso suficiente para seu desempe-

nho. Portanto, quando o Executivo aciona um instrumento como o AI-5 com a finalidade de cassar mandatos, no fundo ele está esforçando-se para legitimar seu ato em razão de uma perda e de um ganho, enfrentando problemas de eventual controle de dissenso político, sem instrumentos legitimadores (não legais) apropriados, com consequentes sobrecargas para sua atuação e custos sociais a

longo prazo.

Nesse sentido, nos países em desenvolvimento ou mesmo subdesenvolvidos, um dos problemas mais sérios consiste na sua pequena diferenciação funcional. Neles, os cargos administrativos ten­dem a ser vistos como políticos, as funções judiciá­rias são relativamente politizadas e o legislador acaba assumindo funções administrativas. Isto é o que provoca a sobrecarga legitimadora.

Por isso, quando o Executivo se vale dos de­cretos que lhe permitem agir imediatamente, ele pode estar respondendo a certas diferenças de tempo — pela sua própria natureza, tanto o Legis­lativo como o Judiciário são mais lentos em suas funções — face às necessidades de providências rápidas e abrangentes.

No entanto, a insistência nessa prática pode conduzir a sociedade política a desvios funcionais, obrigrando o Executivos munir-se de instrumentos estabilizadores substitutivos, como a instituição da censura, a prisão ilegal ou a intervenção extra­judicial. Ou seja, fórmulas compensatórias que vão do abuso de direito ao exercício puro e simples da violência, com todos os custos sociais que isto representa para a comunidade, como atestam os totalitarismos de todos os tempos.

Fonte: Quinta-feira, 22-12-76 – O ESTADO DE S. PAULO