A cobrança dos inativos é inconstitucional?

Tercio Sampaio Ferraz Jr

 

O noticiário tem ressaltado que o governo vem falando da contribuição dos inativos como uma das medidas a serem discutidas na reforma da Previdência do funcionalismo público.

Objeto de polêmica, já no passado foi proposta por diversos Estados da federação, como instrumento chave do equilíbrio atuarial, com base na emenda constitucional no 20/98. O Supremo tem entendido que a emenda, no entanto, seria inconstitucional naquele ponto. Mas o tema, sem dúvida, merece exame.

Do ângulo de sua história, a aposenta­doria dos servidores públicos sempre foi considerada uma variável inerente ao seu trabalho, sendo assumida pelo Estado como um item previsto no Orça­mento sob o ponto de vista da despesa. Isto é, os servidores, ao contrário dos demais trabalhadores, nunca foram obrigados a contribuir para a sua apo­sentadoria, assumida, então, pelos Te­souros como uma obrigação orçamen­tária.

Com o advento da emenda constitu­cional no 20/98, aparece, pela primeira vez a expressão "regime de previdência de caráter contributivo”, que passa a constar do artigo 40, caput, da Constituicão Federal. Determina-se aí que sejam observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial. E manda-se que se apliquem àquele regime os requisitos e critérios fixados para o regi­me geral de Previdência Social, no que couber. Com base nessa expressão, o Supremo tem chegado, em juízos inci­dentais, à inconstitucionalidade da con­tribuição dos inativos, posto existir uma norma (CF, art. 195, II) que veda a inci­dência de contribuição sobre o custeio da aposentadoria e pensão concedidos no regime geral de todos os trabalhado­res (CF, art. 201).

Na discussão existe uma confusão en­tre regime de custeio e regime de apo­sentadoria. O que se manda é que o regi­me dos servidores observe, no que cou­ber, o regime geral, não o modo de cus­teio. Assim, o próprio art. 195, II, da Constituição, ao criar a imunidade para aposentadoria e pensões concedidos pelo regime geral, diz que este é tratado no art. 201. É neste art. 201 que estão os critérios e requisitos do regime, a serem aplicados no que couber. Ou seja, a imunidade do art. 195, II, refere-se a custeio da seguridade social. Não é re­quisito do regime, mas do custeio. As­sim, incluir a própria imunidade entre requisitos e critérios do regime é trans­formar o modo como se sustenta o regi­me em modo como alguém se aposenta.

Se a imunidade do custeio (art. 195, II) fosse requisito ou critério do regime (art. 201), é como se estivesse dito: para se aposentar, o trabalhador não deve contribuir sobre os seus proventos de inativo. Se o requisito não for preenchi­do, ele não pode se aposentar!

Ademais, ainda que se admitisse tal "non sense", a expressão "no que cou­ber", referente ao regime, não ao cus­teio, tem de levar em conta a exigência de que o caráter contributivo dos res­pectivos regimes previdenciários obser­ve critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, obviamente sujei­to a necessidades distintas, num e nou­tro caso.

Afinal, as contribuições sociais dos trabalhadores (CF art. 149, caput) e as contribuições dos servidores, previstas no parágrafo único do mesmo artigo, têm natureza diferente. Estas têm sua exigência justificada a partir do mo­mento em que a pessoa se torna servi­dora pública, passando a estar vincula­da a um regime próprio de Previdência e assistência social, por força do regime que define seu peculiar relacionamento com o poder público.

Daí a noção de que o servidor, pro­priamente, não se desligaria totalmente de sua condição nem do seu "emprega­dor", ao cessarem suas atividades, sub­metido, ainda, a restrições, como a de ter cassada a aposentadoria por faltas cometidas quando em atividade, bem como usufruindo de certas vantagens, como se ativo fosse — como, por exem­plo, o valor integral da correspondente remuneração dos ativos.

Por último, um argumento histórico, invocado nas decisões do STF, admite nuances significativas. Com efeito, se é verdade que, no projeto original, havia a expressa inclusão da possibilidade de incidência de contribuição para os pro­ventos de inativos e de seus pensionis­tas, mas isto teria sido rejeitado (donde a conclusão: se rejeitado, então não quisto), também é verdade que, no mes­mo processo legislativo, houve propos­ta de expressa exclusão daquela possibi­lidade, a qual também foi rejeitada (donde a conclusão inversa: se rejeitada a exclusão expressa, esta não foi quista).

Desse processo resultou, antes, uma omissão que autoriza a dizer que a emenda finalmente aprovada deixou a questão indefinida. Essa omissão, em verdade, solucionava um impasse sobre o que não havia consenso, e dessa falta de consenso resultou uma proposta po­liticamente viável de indefinição, a ser preenchida pelo legislador ordinário.

Em suma, estamos longe de uma acei­tação inconteste de que imunidade de servidores inativos é uma espécie de "cláusula pétrea" nas negociações refe­rentes à reforma previdenciária, mor­mente quanto às diferenças entre servi­dores públicos e trabalhadores em ge­ral, até para a viabilidade da manuten­ção de algumas delas sob outras pers­pectivas e de outros ângulos.

Fonte: FOLHA DE S. PAULO – 21.ABR.2003 - OPNIÃO