A definição de produtos semi-elaborados

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

Convém à discussão do problema gerado pelo uso da ficção jurídica na definição de semi-elaborados e, portanto, no âmbito do Direito Tributário, que se parta do disposto no art. 155, parágrafo 2º, X da Constituição Federal:


Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

“[...]

II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre a prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações se iniciem no exterior;

[...]

Parágrafo 2º - O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:

{...]

X - não incidirá:

a) sobre operações que destinem ao exterior produtos industrializados, excluídos os semi-elaborados definidos em lei complementar:"

Trata-se, nitidamente, de norma de competência que a Constituição confere aos sujeitos que menciona. Tais normas, ao contrário daquelas que estabelecem obrigações, estatuem poderes cujo exercício pressupõe a obediência às condições (limites) impostas que, se desobedecidas, geram nulidade. Já as normas de obrigação estatuem deveres que, descumpridos, geram responsabilidade e sanção. Quem age em desconformidade com a norma de competência é como se não tivesse agido. Quem age em desconformidade com a norma de obrigação, agiu, mas sofre as consequências de sua ação1.

O poder conferido pela norma de competência cria para a autoridade competente e para os destinatários das normas uma relação de subordinação: potência de um lado e sujeição de outro. Mas é também norma de competência a que cria para o subordinado o direito de não sujeitar-se ao poder da autoridade. Neste caso, a relação será entre a impotência de um lado e a imunidade (lato sensu) da outro.

A norma de competência em tela institui poder para estabelecer impostos a, no inciso X mencionado, uma imunidade stricto sensu ("não incidirá"). A imunidade stricto sensu (por norma constitucional) tem a ver com um não ter de sujeitar-se, isto é, com liberdade no sentido do direito público, com aquela esfera de ação do cidadão que, por predeterminação constitucional, está fora da impositividade estatal.

Como se sabe, um dos traços angulares do estado de direito está na estruturação de uma ordem estatal livre, na forma de normas positivas, sujeitas a formalidade garantidoras da certeza e segurança, protegendo-se, assim, a liberdade conforme a lei. Isto exige uma formalidade institucional, que confere às constituições, contra os antigos códigos de direito natural, uma transparência e uma estabilidade indispensáveis.

Ora, foi graças a esta formalidade que as normas constitucionais puderam submeter-se às regras usuais de interpretação, ganhando uma orientação de bloqueio - interpretação de bloqueio - que visa à imposição de limites ao exercício do poder e que serve, assim, à proteção da liberdade.

Neste sentido, a proteção da liberdade por meio da interpretação de bloqueio pressupõe que os preceitos constitucionais estatuam princípios e finalidades fundamentais, em face dos quais o intérprete não deve articular sentidos e objetivos salvo os que já estejam reconhecidos ex tunc na própria constituição, sendo o seu regulador dogmático o princípio da proibição de excessos, isto é, proibição de articulação do sentido das competências estatais para aquém ou para além das liberdades protegidas, mesmo sob a alegação de favorecer-lhes o exercício.

Toda imunidade tem a ver com essa liberdade que precede, como valor, para efeito de interpretação, o poder do estado. Ou seja, no confronto entre liberdade e poder, a norma que garante liberdade deve ser interpretada extensivamente a a que confere correlativamente poder, restritivamente. Os poderes do estado não podem ser interpretativamente ampliados mormente quando a constituição se lhes opõe, correlata e expressamente, uma imunidade. Na verdade deve-se dizer que o constituinte, ao estabelecê-la, já a configurou, de antemão, como de interesso público: o legislador ordinário não pode, pois, invocá-lo para justificar a ampliação do seu poder, posto que estará alterando o seu sentido constitucional.

Em relação às normas do art. 155 supra transcritas, o constituinte confere poder tributante aos Estados e Distrito Federal para instituir impostos sobre operações relativas à circulação de mercadorias. Ao mesmo tempo (isto é, no mesmo ato constituinte), estabelece uma impotência/imunidade quanto a operações que destinem ao exterior produtos industrializados. No largo espectro daquelas opera imunidade é estabelecida quanto a um tipo de mercadoria e numa circunstância (quando se destine ao exterior). Deste tipo excepciona os produtos semi-elaborados e determina que estes sejam definidos em lei complementar.

Pelas razões expostas, a exclusão dos semi-elaborados é norma que deve duplamente, ser interpretada restritivamente: primeiro porque deve ceder ao sentido amplo da imunidade (centrado no sentido de produto industrializado, destinado à exportação) e segundo porque se trata de uma exceção (exclui-se, do gênero, a espécie semi-elaborada). Mas, dada a natural imprecisão da língua natural em que, mais do que qualquer outro diploma normativo, é vazada a norma constitucional, teve o constituinte uma cautela a mais para proteger a imunidade: não a deixou totalmente sujeita à atividade interpretativa, mas exigiu uma determinação prévia, em nível de lei complementar, a cujo legislador impôs o dever de definir o que seja produto semi-elaborado.

O comando do constituinte para definir, embora configure também uma competência (mas no que se refere ao sujeito competente), é, primordialmente, um dever. Tanto que sem lei complementar (ou mesmo sem convênio, nos termos do art. 134, parágrafo 8º do ADCT) o dispositivo do inciso X é, claramente, norma de eficácia contida. A obrigação de definir, exsurgindo de uma cautela do constituinte, não é poder de atribuir ao termo semi-elaborado o sentido que mais convenha ao poder tributante, mas que seja adequado à imunidade que se protege. Ou seja, a obrigação de definir não é poder de estipular.

Parece-me válida, neste passo, a judiciosa observação do Ministro Marco Aurélio de que "o conteúdo político de uma Constituição não pode levar quer ao desprezo do sentido vernacular das palavras utilizadas pelo legislador constituinte, quer ao técnico, considerados institutos consagrados pelo Direito" (RTJ, 156/673). Neste sentido,

"a flexibilidade de conceitos, o câmbio do sentido destes, conforme os interesses em jogo, implicam insegurança incompatível com o objetivo da própria Carta que, realmente, é um corpo político, mas o é ante os parâmetros que encerra e estes não são imunes ao real sentido dos vocábulos, especialmente os de contornos jurídicos. Logo, não merece agasalho o ato de dizer-se da colocação, em plano secundário, de conceitos consagrados, buscando-se homenagear, sem limites técnicos, o sentido político das normas constitucionais."

Nesta linha, a obrigação de definir e de definir semi-elaborados encerra vocábulos que não autorizam o desprezo do sentido vernacular e técnico, aos quais deve ater-se o legislador complementar (e, por via de consequência, o legislador ordinário).

Quanto ao vocábulo definir, o senso comum jurídico tende a aceitar a distinção entre as chamadas definições reais e nominais. A definição real é a que parte da premissa segundo a qual a língua é um instrumento que designa a realidade donde definir é delimitar conceitos a partir da realidade designada: definições reais são, assim, verdadeiras ou falsas (captam ou não captam a realidade). Dada, às vozes, a dificuldade de se captar a realidade, admite-se a definição nominal, que delimita o conceito pelo seu uso (natural ou técnico) dentro de uma comunidade linguística. Nos dois casos, a realidade ou o uso comum estabelecem os parâmetros para uma definição. Fora destes parâmetros o que se tem não é uma definição, mas urna estipulação, isto é, abandonam-se aqueles critérios e propõe-se um novo uso para o vocábulo, fixando-lhe arbitrariamente o conceito2.

Deste sentido da palavra definir discrepa a jurisprudência. "Definir é explicar o significado de um termo, estabelecendo seu valor semântico. É, ainda, colocar em destaque os atributos próprios de um ente, para torná-lo inconfundível com qualquer outro". (STJ, Recurso em mandado de segurança nº 3889-0-RN, Ministro Humberto Gomes de Barros, relator). Estão aí os dois modos de definição: nominal (estabelecimento do valor semântico) e real (destacar os atributos próprios de um ente).

Por outro lado, a lingüística nos ensina que, tanto em termos de uma definição nominal quanto de uma definição real, o sentido do vocábulo a ser definido é alcançado de dois modos. Quando se diz que uma palavra significa algo, isto tem a ver com denotação (relação a um conjunto de objetos que constitui a sua extensão - por exemplo, a palavra planeta denota os nove astros que giram em tomo do sol) e com conotação (relação a um conjunto de propriedades que predicamos ao vocábulo e que constitui| sua intensão - grafado, na terminologia técnica, com s -, por exemplo, a palavra homem conota ser pensante, masculino ou feminino). Assim, definir, denotativamente, é apontar qual o conjunto dos objetos e, conotativamente, é determinar as propriedades do conceito. Definindo-se uma palavra por sua denotação, não se pode incluir objetos que estão fora do conjunto e, por sua conotação, propriedades que não lhe pertencem. Doutro modo estaremos estipulando e não, definindo.

Parece claro, pois, que se o constituinte mandou definir é porque não autorizou estipular, tanto no sentido denotativo quanto no sentido conotativo. E se não autorizou estipular, excluiu o estabelecimento de ficções.

Com efeito, a doutrina vê a ficção como uma técnica (legislativa, jurisprudencial) que procede a uma desnaturação do real. O Vocabulário Jurídico - Buenos Aires, 1988 - de Conture, citado no acórdão recorrido, a define como a proposição normativa consistente em a lei atribuir certas consequências a determinados eventos nela previstos, ainda que contra a efetiva realidade (p. 289). Toda ficção exige, portanto, um prévio juízo de realidade em que uma situação de fato é percebida como diferente de uma outra e, a seguir, não obstante a diferença, a ela assimilada. Esta técnica, chamada de assimilação, nada tem a ver com definir. Ao contrário, trata-se de estipular que de uma realidade percebida (definida) como diferente de outra hão de decorrer consequências iguais não obstante a diferença.

Quanto ao vocábulo a ser definido - semi-elaborado - o constituinte, ao excluí-lo do gênero produtos industrializados, certamente mandou que aquele (espécie) fosse definido em função desse. E produto industrializado é vocábulo conhecido da técnica tributária. O CTN o define como "o produto que tenha sido submetido a qualquer operação que lhe modifique a natureza ou a finalidade, ou o aperfeiçoe para o consumo" (art. 46, parágrafo único). Não se pode dizer que o constituinte ignorasse esta definição, este uso técnico, quando utilizou a expressão. E nesta definição observam-se três notas distintivas: uma alteração da natureza ou da finalidade, um aperfeiçoamento para o consumo e um processo (operação) submetido à temporalidade (em algum momento o processo se encerra e tem-se o produto acabado). Ora, em português, o prefixo semi refere-se a toda evidência a quase, a um ainda não, donde uma definição que, como no caso em tela, ostensiva e reconhecidamente, ignorasse o uso comum do vocábulo, seria, na verdade, uma estipulação a estabelecer uma ficção.

Se a Constituição tivesse autorizado estipulações fictícias na "definição" de semi-elaborado, não só a proteção à imunidade garantida pelo mencionado inciso X tornar-se-ia facilmente vulnerável, como também o sentido mesmo da proteção ao contribuinte dada pela exigência da legalidade (art. 150 - I da Constituição Federal) estaria igualmente vulnerado. Afinal, na discussão semântica da legalidade e da consequente definição, por lei, do fato gerador dos tributos, o próprio STF tem-se posicionado com reservas perante a tese formalista ("legalismo tributário") segundo a qual a lei valoriza os fatos e indica os que têm eficácia para constituir, alterar e extinguir direitos, jogando discricionariamente com os dados da realidade factual.

No caso, por exemplo, do conceito de renda, o STF tem entendido que a lei não pode, à sua discrição, determiná-lo independentemente do que seja renda como fluxo real e acréscimos de capital. Isto tem refletido no julgamento condenatório da possibilidade de a lei eleger o fato que queira como índice de atualização monetária, criando-se os chamados lucros fictícios. Daí a tese de que a correção monetária apenas atualiza o valor da moeda, devendo ser feita por índice que melhor refuta o fenômeno inflacionário existente.

Neste sentido, assinalou o Ministro Octávio Gallotti, em seu voto condutor no RE 104.306-SP, ao examinar o conceito constitucional de mercadoria estrangeira para fins de validação de norma ordinária:

"Partindo-se da premissa de ser defesa, ao legislador ordinário, a utilização de qualquer expediente legal que tenha por efeito frustrar, atenuar ou modificar a eficácia de preceitos constitucionais, há de concluir-se que a equiparação preconizada pelo Decreto-lei nº 37/66, ao ampliar, por um artifício, o conteúdo da regra constitucional, afrontou a própria natureza e o fundamento do gravame tributário, em detrimento dos pressupostos enunciados na Constituição.

No tocante à prevenção de excesso do uso das ficções jurídicas feitas pelo legislador, recordo a advertência de meu saudoso pai, Ministro Luiz Gallotti, ao pronunciar-se no julgamento do Recurso Extraordinário nº 71.758, considerando que 'se a lei pudesse chamar de compra o que não é compra, de importação o que não é importação, de exportação o que não é exportação, de renda o que não é renda, ruiria todo o sistema tributário inscrito na Constituição' (RTJ 66/165). Trata-se de voto vencido, em espécie tributária diversa da ora cogitada, mas que, aqui, parece apresentar-se como verdade indisputável, ante a clareza do elastério produzido pela lei, em confronto com o conteúdo limitado pela Constituição (RTJ, 117/785)."

Este posicionamento do STF vem ao encontro de posicionamentos doutrinários de que a ficção introduz, na definição do fato gerador, uma insuportável incerteza, pois ela "dá como certo, para (todos ou alguns) efeitos jurídicos, algo que se sabe não ser certo, ou que é contrário à natureza das coisas. Em resumo, cria uma 'verdade jurídica' existente apenas ex vi legis, mas diferente da verdade natural"3.

Com efeito, o direito tributário é um direito em estado de dependência da maior parte dos outros ramos do direito, pressupondo as instituições neles estabelecidas4. Assim, quando nele se tenta fazer uso de ficções, o que se percebe é que o legislador, na verdade, está é se livrando da realidade econômica juridicamente institucionalizada, o que não é aceitável. Entende-se, assim, o dispositivo do CTN (art. 110) que proíbe que a lei tributária possa alterar a definição, o conteúdo o o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado utilizados pela Constituição Federal, dos Estados ou Leis Orgânicas para definir ou limitar competências tributárias. Em consequência, não se nega que o Congresso Nacional possa restringir ou ampliar o conceito de fato gerador, mas não possa fazê-lo além de limites compatíveis com o sistema tributário constitucional.

Na verdade a constatação da aparente presença de ficções na determinação do fato gerador resulta da confusão que se faz entre ficção e presunção ou entre ficção e equiparação. Enquanto a ficção resulta de um juízo de diferença, a presunção é técnica que resulta de um juízo de probabilidade: nesta toma-se o que aparentemente é como efetivamente sendo. Veja-se, por exemplo, a noção de lucro presumido que não se confunde com lucro fictício. Se admite a prova em contrário é juris tantum, se não, é juris et de jure ou irrefragável. Já a equiparação é técnica que parte de um juízo de semelhança - aequiparare invoca aequus (igual) e par (parelho, semelhante) -, procedendo-se então à assimilação entre os objetos comparados. Por exemplo, equipara-se a instituição financeira a pessoa jurídica que capte ou administre seguros, câmbio, consórcio, capitalização ou qualquer tipo de poupança ou de recursos de terceiros (Lei nº 7.492/86, art. 1º, parágrafo único).

Na configuração do fato gerador e, em especial, de sua base material, tanto presunções quanto equiparações são admissíveis em nome da certeza e da segurança jurídica, posto que ambas obedecem a uma necessidade interna, que é também o seu limite: no caso da presunção, a hipótese da probabilidade; no da equiparação, a da similitude. O teste da probabilidade ou da similitude garantem freios à arbitrariedade do poder, permitindo ao aplicador da lei o seu controle objetivo. Nas ficções, como se parte de um juízo de diferença para, então, assimilar-se não importa quais objetos e quão diferentes sejam, o limite não é interno, mas externo: tudo depende da finalidade que se almeja ou, dito doutro modo, do objetivo que o legislador quis alcançar. O problema com as ficções, em termos de certeza e segurança, é que a linha divisória entre discricionariedade e arbitrariedade legislativa se esfuma; a ficção parece-se com o horizonte enquanto limite: está sempre visível, mas nunca se alcança.

Ora, se o controle da arbitrariedade das ficções não pode ser objetivo, aceitá-las na configuração da base material do fato gerador, no caso em tela, na definição de semi-elaborado, é permitir que o legislador avance pelo terreno do produto industrializado, cerne de uma imunidade, ilimitadamente ou desde que seus objetivos sejam alcançados, o que passa a ser a mesma coisa. E esta ilimitação fere a exigência da estrita legalidade na imposição de tributos enquanto garantia constitucional de segurança jurídica para o contribuinte.

No caso da "definição" de semi-elaborados produzida pelo convênio em discussão, ostensivamente se tomou o que não é pelo que é, isto é, utilizou-se de uma técnica de ficção, como fez observar a decisão do STJ mencionada na consulta, o que é inaceitável constitucionalmente.

Contudo, ainda que, ad argumentandum, essa técnica pudesse ser admitida no campo tributário, melhor sorte não lhe assistiria quanto à constitucionalidade das normas legais em questão. Pois, de qualquer modo, ela estaria ferindo aquele mínimo de limite e de controle da arbitrariedade que a doutrina tem-se esforçado para impor a ficção legal.

Com efeito, se a ficção obedece a uma necessidade externa (puramente o objetivo almejado), é nesta relação meio-fim que a doutrina procura encontrar-lhe os instrumentos de controle. Por exemplo, a ficção da extraterritorialidade isenta, mas em certos limites, os agentes diplomáticos de serem submetidos às leis do país onde exercem suas funções; mas isto só atinge os locais das embaixadas, com o objetivo de garantir o direito de asilo ou a imunidade diplomática. Ora, é nessa dimensão pragmática que a ficção parece encontrar seu limite e a possibilidade de controle.

Neste sentido, diz François Gény5, a ficção "intervém para inserir, em um sistema de conceitos estreito e rígido, conceitos novos que não coincidem com os primeiros". Mas o resultado da ficção "se opera pela via lógica", pois, por sua função dogmática, a ficção confere "melhor coerência e consistência teóricas, assegurando um desenvolvimento espontâneo do mesmo [conceito novo] em face dos resultados perseguidos". Em outras palavras, a observação mostra (Gény fala da "função histórica" da ficção) que o legislador recorre às ficções quando, por alguma razão, as categorias e as técnicas jurídicas reconhecidas, aquelas que compõem a realidade juridicamente admitida, não fornecem uma solução aceitável ao problema de direito que se quer resolver.

Daí as funções (pragmáticas) da ficção que dão também o seu limite: primeiro, substituir, definitiva ou provisoriamente, uma realidade cuja constatação se revele incompatível com os objetivos da ordem jurídica, por uma outra que assegure a realização dos objetivos por ela visados (por exemplo, tomar a sede da embaixada por território nacional para assegurar imunidades, direito de asilo etc.); segundo, manter uma sistematização que se revele ameaçada pela estreiteza e rigidez conceituais (por exemplo, infans conceptus pro iam nato habetur); terceiro, remediar as dúvidas geradas pelo incognoscível ou difícil de se conhecer dentro de uma ordem dada (por exemplo, em caso de confusão, exigindo a separação dispêndio excessivo, subsiste indiviso o todo, cabendo a cada um o quinhão proporcional ao valor da coisa com que entrou para a mistura). Assim, segue-se que, se a ficção não atende estas funções, se ela não reduz, mas aumenta os desvios dos objetivos da ordem jurídica, se ela cria incoerência onde coerência há, se transforma o conhecido em algo confuso, seu uso é ilegítimo por revelar-se arbitrário. Ou seja, a ficção só é legitima se a razoabilidade, perdida no sistema vigente em face da realidade, é por ela recuperada: sem a ficção da territorialidade por força da bandeira do navio ou da aeronave, sérios problemas de competência ficariam insolúveis.

Ora, seja pela restrição geral ao uso da ficção na configuração do fato gerador, seja, ad argumentandum, por aqueles critérios limitadores do seu uso, a ficção efetivamente praticada pelo Convênio nº 7/89 quanto ao suco de laranja concentrado fere ostensivamente o comando constitucional.

Em sua cláusula 1ª, o referido convênio estabelece uma redução de percentuais para a base de cálculo de produtos destinados à exportação, conforme lista anexa. Desta lista constam, na posição 2009, os sucos de laranja, esclarecendo a nota (7) que ali se incluem tão-somente os sucos de laranja concentrados. Ao elaborar a referida lista, os conveniados incluíram na denotação de produtos semi-elaborados um produto que, por definição, é considerado (e foi considerado também pelo STJ) como pronto e acabado, isto é, cabalmente industrializado. Como plenamente reconhecido, o suco de laranja concentrado não pertence ao conjunto dos objetos abarcados pelo conceito de semi-elaborado. Esta inclusão foi admitida pelo STJ como resultado de uma ficção.

Ora, esta ficção fere o comando constitucional. Primeiro, porque vai além da obrigação de definir, alterando a denotação do vocábulo semi-elaborado, ao tomar algo que não é como se fosse (ficção). Segundo, porque introduz na imunidade garantida pela Constituição Federal à exportação de produtos industrializados uma flexibilidade arbitrária, ferindo, em consequência, a estrita legalidade na configuração do seu fato gerador. Se desta configuração fosse possível excluir do conjunto dos objetos (denotação) um produto plenamente industrializado, tomando-o por semi-elaborado, a imunidade ficaria a mercê do arbítrio do legislador infraconstitucional. E a obrigação de definir exclui este arbítrio. Ao invés de uma definição (denotativa) estaria havendo uma estipulação.

Da estipulação praticada, por ficção, resultaria incerteza e insegurança, como, aliás, se pode perceber em relação a outros produtos que, por convênio, passaram ora a ser considerados como semi-elaborados, ora, ao depois, como plenamente industrializados, num verdadeiro jogo de estipulações arbitrárias, ao arrepio da obrigação de definir. Caso, por exemplo, do café solúvel, que, por disposição de Convênios, entrou, depois saiu do rol dos produtos semi-elaborados.

Mas, ainda que se admitisse o uso da ficção, o que se faz apenas para argumentar, estaria havendo uma impropriedade, também a ferir o comando constitucional. Com efeito, o legislador, obrigado a definir, ao usar de ficções que, como demonstrado, se limitam pela razoabilidade dos objetivos, deveria estar atento à imunidade constitucional para exportação de produtos industrializados e não guiar-se por interesses arrecadatórios. Ora, a ficção, quando praticada, não se justifica nem por aquele objetivo (ao contrário, ela torna insegura e incerta a imunidade), nem por razões de sistematização (ao contrário, gera um jogo arbitrário de inclusões e exclusões - vide o caso do café solúvel), nem por questões de incognoscibilidade do fenômeno. Ou seja, o uso da ficção, em termos de técnica legislativa, será distorcido e ilegítimo, posto que arbitrário. E também esta arbitrariedade fere o comando constitucional (Constituição Federal, artigos 150 - I e 155, parágrafo 2º, X, a).

Em síntese, pode-se concluir:

1. O legislador, perante à imunidade tributária prevista no artigo 155, parágrafo 2º, a, está obrigado a definir, conotativa e denotativamente, a noção de semi-elaborado, de modo a conferir certeza e segurança ao sentido do objeto exportação de produtos industrializados. E aí está o seu limite. Não está autorizado, portanto, a tomar por semi-elaborado o que semi-elaborado ostensivamente não é, pois isto torna o objeto da imunidade passível de exclusões arbitrárias.

2. Assim, a pretexto de definir quais sejam os produtos semi-elaborados, o legislador não pode atribuir-lhe o sentido que lhe convenha. O comando constitucional estabelece uma obrigação de definir, o que exclui as estipulações. Não se trata, pois, de conveniência, mas de determinação certa e segura do sentido conotativo e denotativo do vocábulo.

3. A definição por meio de ficção legal é antes uma estipulação. Ao utilizar-se dela, o legislador não estaria dando o sentido conotativo e denotativo do vocábulo, como o exige o comando constitucional. Uma estipulação não pode ser controlada pelo critério de verdade, isto é, não é nem verdadeira nem falsa, mas atende ou não a interesses (externos ao sentido verdadeiro do vocábulo). Com isto dá margem à arbitrariedade.

4. O princípio da estrita legalidade afasta, na definição de um determinado fato gerador, o uso das ficções, pois introduz no seu conceito (conotação) e no rol dos objetos designados (denotação) uma flexibilidade arbitrária. Isto perverte o sentido da legalidade: se a Constituição, na discriminação das competências tributárias, procede pela nomeação dos tributos (sobre a renda, sobre produtos industrializados, sobre a circulação de mercadorias etc.), o legislador não pode, à sua conveniência, tomar por renda o que não é, por produto industrializado o que não é, por circulação de mercadoria o que não é. Daí o sentido do controle, concentrado e difuso, da constitucionalidade,

em termos de estrita legalidade, na configuração de um fato gerador e nesta, a presumida suspeita que gera o uso da ficção.

Fonte: Revista de Direito Mackenzie, ano 1, n. 2, São Paulo: 2000, pp. 119-27.

(Digitalizado e conferido por Ana Paula Vendramini Segura)