A democracia de Geisel

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

 

O presidente Geisel, na festa do 4o aniversário do seu governo, voltou a falar em democracia. Suas frases refor­çaram e reafirmaram antigas posições. Sua luta foi, nestes termos, para proporcionar um desenvolvimento que "tivesse o necessário equilíbrio" e englobasse os problemas econômicos, sociais e também os políticos, para que, "com realismo, pudéssemos dar a este país a democracia que imaginamos adequada ao estágio atual". Ou seja, continuaríamos, como interpretou na mesma ocasião o ministro Falcão, lutando ainda pelo aperfeiçoamento democrático.

Quando o presidente, em outras ocasiões, nos falou em "democracia relativa", num ponto, certamente, ele tinha e tem razão: a democracia de que falavam os gregos na Antiguidade, que viviam numa sociedade de 30.000 habitantes, dos quais três quartos eram escravos, tem enormes diferenças em relação à democracia para um país de 100 milhões de cidadãos. Este é um ponto que não pode ser menosprezado quando pedimos democra­cia, lutamos por ela, visando ao aperfeiçoamento da vida política.

Pensando, certamente, no país que governa, o presi­dente tem indicado por palavras e por atitudes alguns traços do modelo democrático que afirma ser adequado a nós. Identificar o modelo, porém, não é fácil. Ao contrá­rio, é um trabalho penoso, cujo resultado pode frustrar o analista ou, então, frustrar o proponente do modelo. As­sim, por exemplo, há uma insistência no uso da expres­são democracia com responsabilidade, à qual se liga uma outra, liberdade responsável, também frequente nas suas declarações. Ambas parecem ter algo a ver com o pro­blema da participação do povo no seu autogoverno, sem dúvida, úm dos lugares-comuns mais importantes e mais repetidos em nosso tempo. De certo modo, liberdade responsável implica participação responsável, do que resultaria uma democracia com responsabilidade. Que significa, porém, responsável, neste contexto?

Em princípio, parece querer dizer um engajamento sério, onde o cidadão discute as propostas do governo, partindo delas, ou seja, contestando, eventualmente, o seu mérito, sem contestá-las como finalidade, como fim a atingir. Em outras palavras, a liberdade responsável, por exemplo, seria a capacidade atribuída ao cidadão de discutir dentro de certos parâmetros, como fazem, diga­mos, os homens educados entre si. Neste sentido, a parti­cipação responsável significaria uma espécie de leal­dade a um ideal comum, que ordenaria as discordâncias e possibitaria a oposição. Em consequência uma democracia com responsabilidade seria uma espécie de go­verno do povo, pelo povo e para o povo, onde o novo é, por assim dizer, uma união equilibrada de elites dirigentes e massas dirigidas.

Talvez pudéssemos chamar este ideal democrático de democracia de elites. Esta expressão está sendo usada aqui tecnicamente e não pejorativamente. Uma demo­cracia deste género parte do pressuposto de que, histori­camente, em qualquer sociedade existem grupos elitários. Elites seriam grupos restritos, caracterizados não só pela sua força criadora, realizadora, mas também por constituírem a base mantenedora de um sistema social. As massas, por seu lado, seriam constituídas por grupos sociais, cujos membros manifestam uma baixa vincula­ção entre si, portanto, grupos que tem uma consciência difusa da sua condição de grupo e que atuam, por isso, desordenadamente.

Algumas manifestações do presidente parecem indi­car que estes conceitos subjazem ao ideal democrático que ele propõe. A sua clara posição perante o Congresso Nacional, fechando-o e duvidando de sua capacidade para a realização de certas reformas, ou os seus desaba­fos dc que o povo brasileiro não sabe votar, ou sua tese de que o senador "biónico" é um modo de aproveitar valo­res que, doutra forma, não teriam vez politica, ou, mais que tudo, sua concepção de que a democratização deve ser precedida pelo desenvolvimento econômico e social, parecem indicar com aproximada segurança que há de sua parte uma consciência e um desejo de realizar uma democracia dita vigilante, onde o controle do poder pelas elites seja equilibrado por uma participação res­ponsável das massas. Talvez lhe caiba, neste sentido, a qualificação de democrata vigilante que lhe atribuiu o. ministro Armando Falcão na recente festa de aniversário. Esta vigilância significaria a busca da democracia (de elites) em oposição aos movimentos políticos de massa, cujas tendências seriam antidemocráticas.

Os movimentos políticos de massa ocorrem, em geral,, quando a sociedade, em grande número, começa a engajar-se em atividades políticas, fora das regras e procedi­mentos instituídos, por exemplo, fora da organização partidária, fora dos parlamentos e judiciários. Tais mo­vimentos tendem a crescer em épocas de crise, instabili­dade econômica, desenvolvimento acelerado. Uma con­cepção de democracia de elites admite que os movimen­tos de massa não conduzem à democracia, mas as formas totalitárias, como ocorreu, por exemplo, na Alemanha nazista, na Espanha de Franco ou na Itália de Mussolini. A democracia seria, ao contrário, realizável, quando te­mos um sistema político baseado na competição, de modo que os dirigentes e as organizações formulem a política nacional, de maneira que haja a maior participa­ção possível de todo o povo.

Para isto se exigem alguns requisitos. Para as elites deve haver competição e igualdade de condições de acesso ao governo. Para as massas, uma participação irrestrita na escolha dos governantes e nas formas meno­res de autogoverno (sindicatos, associações de classe, etc.). Donde a importância do pluralismo político (que garante a competição) e de instrumentos de controle formal do poder como legalidade, constitucionalidade, eleições livres, etc. (que garantem a participação das massas). Um regime que atendesse a esses requisitos estaria em condições de realizar-se como democracia, institucionalizando-a politicamente.

Talvez seja esse o ideal democrático de que nos tem falado o presidente Geisel. Suas palavras, porém, à mercê das injunções de grupos, da sua própria habili­dade na condução da política, têm sofrido impactos que muitas vezes nos fazem duvidar de que o caminho tra­çado esteja sendo o caminho percorrido.

Assim, por exemplo, um dos grandes riscos inerentes à democracia de elites está na possibilidade de que o poder venha a ser usado pelas elites de modo defensivo, contra as massas, ignorando-se, pouco a pouco, o poder como autoridade, isto é, como a realização de finalida­des comuns que aumentem a participação e engrande­çam os outros. Isto acontece quando o contínuo falsea­mento das condições de acesso ao poder, como tem ocorrido entre nós, acabam por servir à manutenção de grupos em detrimento de outros, com um claro cercea­mento da competição entre as próprias elites. Ou quando, por conta de reformas institucionais, o jogo da legalidade é alterado a todo instante, gerando um clima de descrédito nas próprias instituições. Ou quando, mais que tudo, se estabelece uma burocratização do poder, entregue a uma elite tecnocrática, caso em que a multiplicidade e a pluralidade dos grupos de interesses fiquem neutralizadas na prática por um saber de acesso restrito.

De qualquer modo, o que é certo é que não há demo­cracia sem riscos. E o grande temor que nos assalta é de que, no fundo, mesmo a democracia de elites esteja sendo entendida, no contexto brasileiro, como uma es­pécie dc meta segura e tranquila, que deverá ser atingida quando não houver mais riscos. Este ideal, porém, provavelmente nos deixará permanentemente na democracia relativa que é muito mais relativamente democrática, do que democraticamente relativa.

Fonte: Quinta-feira, 6-4-78 – O ESTADO DE SÃO PAULO.