Tercio Sampaio Ferraz Jr.
A dra. Alice, Jovem advogada que não há muito tempo concluirá seus estudos de Direito, começava a enfadar-se de estar horas e horas sentada junto a sua mesa de trabalho, debruçada sobre inúmeros volumes de Direito constitucional, tributário, administrativo, civil, mais outras tantas folhas esparsas do Diário Oficial da União que a secretária ia pondo-lhe na mesa, a cada instante que normas modificando normas eram substituídas por republicações e outras tantas normas que modificavam normas. De fato, lá estavam, por exemplo, o recente Decreto-Lei n.º 2.286, publicado no dia 24/07/86 e já republicado, por incorreções, no dia 28/07/36, a Resolução n.º 1.155 do Banco Central, republicada por incorreções, no dia seguinte, o Decreto-Lei n.º 2.287, alterando dispositivos da recente Lei 7.450 de 23/12/85, o Decreto-Lei 2.288, que cria o Fundo Nacional de Desenvolvimento, instituindo o empréstimo compulsório sobre álcool e gasolina e sobre aquisição de automóveis de passeio e utilitários.
Este último, por sinal, é que estava lhe dando maior dor de cabeça. Não por razões pessoais. Embora fosse proprietária de um Fusca 81, a eventual venda de seu carro não traria encargos ao comprador, pois o empréstimo estava limitado a veículos fabricados ata há quatro anos. E quanto ao combustível, a diferença era absorvível e ela, que fora politicamente ativa nos tempos da universidade, convencera-se de que a classe média chora muito, choro este que não se justifica diante de um empréstimo que vai para um fundo dinamizador do desenvolvimento nacional. Escolas, saúde, bem-estar, redistribuição da renda, pensava ela, são metas legitimas. O problema, no entanto, lhe parecia o seguinte: por que um projeto, bom nos seus objetivos, tinha de continuar sendo tratado juridicamente de modo a causar dores de cabeça?
A dor de cabeça, era por razões técnicas do Direito. O Decreto-Lei falava em empréstimo compulsório. Nem era preciso ir ao Código Civil para saber que quem recebe um empréstimo é obrigado a restituir o que recebeu em coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade. Mas, no caso, o governo recebe dinheiro e devolve quotas que, na ocasião da devolução, poderão valer, no mercado, mais ou menos a quantia emprestada. Mas, então, pensava a dra. Alice, o emprestador, isto é, o consumidor de combustível ou o adquirente de um automóvel, não estava emprestando, mas fazendo um investimento de risco. Estaríamos diante de um Investimento compulsório? Mas, nesse caso, seria inconstitucional pois a Constituição fala em empréstimo. E, segundo aprendera, o poder público só pode fazer o que está explicitamente na sua competência. A não ser que o sentido das palavras pudesse ser trocado ao alvedrio do legislador, valendo por empréstimo o que, de fato, é investimento...
Assim meditava, ponderando (tanto quanto podia, pois a profusão de tantas normas a deixava, já tarde da noite, sonolenta e entorpecida) se resolver aquela e outras dificuldades valeria o esforço de buscar mais alguma literatura, quando bateram à porta. Um senhor alto, empertigado, de colete vermelho e de olhos com a córnea ligeiramente rósea e mal-dormida se apresentou: "Sou o dr. Coelho Branco. Estou lhe trazendo um problema, para o qual preciso de seus conselhos jurídicos. Desculpe-me a hora", disse ele, olhando para um relógio de bolso fora de moda, que tirara discretamente do colete, "mas é urgente". Embora estivesse cansada, pediu-lhe que se sentasse e expusesse a questão.
O homem, pelo seu olhar róseo, lhe parecia esquisito. Mais esquisito quando puxou uma série de documentos e de recortes de jornais de uma velha pasta de couro. "Veja, disse ele, quero que leia isto. São jornais de meu pais. O assunto que lhe trago diz respeito a uma série de leis promulgadas recentemente..." "Meu pais?!", estranhou a dra. Alice. "Então o sr. não é daqui?" "Não, não sou". "Mas como vou poder aconselhá-lo sobre leis de um país estranho, cuja ordem jurídica me é desconhecida?", disse ela com modéstia. "Ah! Isso não tem importância", retrucou ele, "em meu país ninguém precisa conhecer a ordem jurídica para fazer, discutir e interpretar as leis". dra. Alice sentiu o arrepio da ignorância. Mas passou logo.
"Bem, disse o dr. Coelho Branco, a questão é a seguinte: sou representante de um grupo empresarial que fabrica e comercia gelo em barra. Acontece que o governo baixou uma lei, determinando que 10% do gelo adquirido sejam recolhidos, na forma de empréstimo, aos depósitos governamentais. Passados dois anos, eles serão devolvidos". "O gelo, eu presumo, será guardado em geladeira", disse a dra. Alice. "Não, não, simplesmente no depósito". "Mas então ao cabo de dois anos como irão devolver o gelo? Na forma de água?" O dr. Coelho Branco mostrou sua apreensão: "é ai que está o problema: o gelo se derrete, vira água, e água escorre e..." "Nada será devolvido", completou a dra. Alice. "Bem, o governo diz que, se fizer bastante frio, há uma chance".
Dra. Alice pensou que aquilo tudo não fazia muito sentido. Em todo caso, arriscou: "Vejamos o que diz a lei: mas espere! Aqui está escrito que 10% do gelo serão postos em geladeira”..." "Não, não interrompeu o dr. Coelho Branco, não é isso que está disposto na lei". "Como assim?, espantou-se a dra. Alice, "esta escrito aqui!" "É que em meu país o que vale não é o que está escrito, mas sim aquilo que o Poder Interpretativo diz". "Poder Interpretativo? O sr. quer dizer o Judiciário". "Não, o Judiciário só aplica a lei. Em meu país temos também um Poder Interpretativo".
Dra. Alice estranhou, mas seguiu em frente. "Bom, admitamos que a lei disponha, então, que os 10% serão recolhidos em depósitos". O dr. Coelho Branco pareceu, no entanto, aflito. "Qual é o problema agora?", perguntou ela. "É que isto, neste exato minuto, não vale mais". "Como!!!" "Sim, continuou o homem, em meu país as leis podem mudar de um momento para outro". "Mas como vocês fazem para planejar o comportamento da empresa?" "Ah, respondeu ele com um suspiro, a gente se adapta". "Adivinhando a lei?", ironizou a dra. Alice. "Oh não, disse ele, contornando a lei. Em meu país, as leis não são para serem cumpridas, são para serem contornadas".
Dra. Alice arregalou os olhos: "Mas, então, para que serve a lei em seu país?" "A lei. disse o dr. Coelho Branco, mostrando levemente que se ofendera, "a lei serve para muitas coisas: por exemplo, serve para explicitar o princípio da legalidade, insculpido em nossa Constituição. Afinal, sem lei não há legalidade". Dra. Alice não entendeu bem, mas arrematou entre irônica e sarcástica: "por acaso a Constituição de seu país autoriza que o governo baixe uma lei determinando um empréstimo compulsório?". "Não", respondeu secamente o dr. Coelho Branco. "Mas, então, o princípio da legalidade está sendo violado. A lei dos 10% sobre o golo é inconstitucional!", completou ela vitoriosamente. "Oh não, respondeu o homem. Em nosso país a inconstitucionalidade só existe se a futura Constituição vier a proibir um tal empréstimo!" "A futura Constituição?, exclamou a dra. Alice. Mas nesse caso uma lei nunca seria inconstitucional, pois a Constituição futura ainda não existe e quando vier a existir remete-se o problema a uma outra futura Constituição!" "Sim, é isso mesmo, disse o sr. Coelho Branco, concluindo: o que, aliás, é muito saudável, afinal, um governo que nunca baixa normas inconstitucionais é o mais democrático que se possa imaginar..."
A figura do homem se esvaneceu de repente. A jovem abriu os olhos, como se estivesse acordando. "Puxa, pensou, que pesadelo! Imagine seu eu fosse advogada num país como aquele!"
Fonte: Jornal Folha de São Paulo, 12.08.86, caderno Opinião, p. 3.