A greve dos servidores é ilegal?

Tercio Sampaio Ferraz Jr

 

Funcionário público pode fazer greve? Os servidores em São Paulo rejeitaram as mensagens do governador Paulo Maluf (aumento parcelado de 96%) e do prefeito Reynaldo de Earvos (95% também em parcelas) e resolve­ram pela paralização das suas atividades, reivindicando reajuste de 140%. Não há necessidade, mais uma vez, a penú­ria em que se encontra o funcionalismo, o achamentos real de seus salários. Isto já foi reiterado inúmeras vezes e não há manipulação de dados que possa convencer a opinião pública de que o fato não ocorreu. Até mesmo no confronto com outros trabalhadores é evidente que o servidor vem padecendo mais, com uma quota de sacrifício superior numa situação de crise generalizada. Não valem, ainda, argumentos que tentassem mostrar que a maioria dos cidadãos estivesse, em termos brasileiros, em posição de miséria quase absoluta, porque a alegação levaria ao absurdo, paralisaria toda e qualquer reivindicação salarial. Mas há um problema, o da legalidade, que sempre surge e merece, mais uma vez, a devida atenção.

A propósito, a Constituição é taxativa. No seu artigo 162 ela proclama: “Não será permitida greve nos serviços públicos e atividades essenciais definidas em lei”. As razões da limitação do direito de greve, no que se refere aos servidores, invocaram o argumento de que o interesse particular deles não pode sobrepor-se ao interesse coletivo, que é gerido pelo órgão público. Trocado em miúdos: postula-se que o serviço público é do interesse de toda a coletividade e, no cotejo entre o públi­co e o privado, prevalece aquele e não esse. Postula-se, ademais, que os órgãos da admi­nistração têm por incumbência gerir o inte­resse coletivo (e supõe-se que o façam). Em conclusão, se funcionário faz greve, ele esta­ria sobrepondo os seus interesses particulares (como ter dinheiro para pagar o aluguel da casa, a conta de luz e de gás, a escola, a alimentação) aos interesses da comunidade em geral (como o de ser servida com eficiência no que tange a serviço médico, hospitalar, escolar, policial).

É obvio que, tratando-se de conflito de interesses, as argumentações enfeitem aspec­tos ideológicos, valores com carga emocional que tornam a questão bem complicada. De qualquer modo, uma posição legalista, tendo em vista a proibição taxativa, não admite a greve de servidores. Ela é, acima de tudo, inconstitucional.

Apesar disso, sem nos envolvermos na questão de saber se é ou não justa a prevalên­cia do interesse coletivo sobre o particular, algumas observações podem ser feitas. Afi­nal, normas jurídicas não são apenas textos abstratos, de validade geral, mas prescrições destinadas a solucionar conflitos sociais con­cretos. A compreensão delas não pode, por isso, eximir-se de uma análise da situação de fato a qual elas se aplicam.

Nesse sentido, é preciso considerar que a proibição da greve para os servidores, se de um lado visa a proteger o interesse coletivo, não deve, por outro, servir de pretexto para prejudicar o interesse particular. Ainda que se admita que, no confronto das dois, sendo impossível atendê-los simultaneamente, o co­letivo prevalece, seria injusto daí concluir­mos que o poder público, gestor dos interesses coletivos, se utilizasse da proibição para pra­ticar uma iniquidade. Expliquemo-nos.

Admitamos que o coletivo prevaleça so­bre o particular. Mas, se o poder público, sistematicamente, reajusta de forma iníqua os salários dos seus servidores, alegando insu­ficiência de verbas orçamentárias (que, no entanto, aparecem para outros projetos de duvidoso interesse coletivo) e, depois faz pre­valecer sua decisão discricionária, respaldando-se na impossibilidade constitucional de o Legislativo alterar a mensagem que lhe envia, então a coisa muda. Afinal, nesse caso, a parte prejudicada — o funcionalismo — não podendo recorrer aos seus representantes — no Legislativo — fica acuada, sem qual­quer possibilidade de voz. E se, ao tentar coagir o governo, através de greves, recebe como contra-argumento, a ilegalidade do ato, então fica criada uma situação sui generis: o poder público, que tem a competência discricionária para propor o reajuste, diante de um Legislativo castrado e diante de um funcionalismo formalmente impedido de agir, acaba por ser o árbitro absoluto da questão. Sua competência discricionária se transforma em puro arbítrio.

Ora, sendo esta a situação de fato, a questão da ilegalidade da greve de servidores não pode ser vista com zelo formalista que lê a proibição taxativa da Constituição como uma pedra de cal em qualquer pretensão no sentido contrário. Na verdade o que temos é uma espécie de transbordamento da legali­dade, isto é, o sistema legal, se respeitado, cria uma situação injusta, além de ser inefi­ciente em face dos conflitos para cuja resolu­ção ele foi estabelecido. Porque, de um lado, ele propicia a transformação da discriciona­riedade do Executivo em mero arbítrio e, de outro, acaba forçando, de fato, o funcionalis­mo a agir fora de seus parâmetros.

Diante disso, a questão da ilegalidade e da inconstitucionalidade da greve de servi­dores se transmuda num problema de legiti­midade, isto é, de saber em que medida, no caso concreto, o entrechoque da arbitrarieda­de do governo com a arbitrariedade do fun­cionalismo não está a exigir uma decisão institucional capaz de reenquadrar o fato em termos de justiça, de consenso democrático e de viabilidade real.

Quanto à injustiça, o reajuste do funcionalismo é iníquo, o que confere legitimidade a sua greve, ainda que ato ilegal. Quanto ao consenso democrático, a eclosão do movimento, num regime politico que ainda não saiu do autoritarismo, só pode ser avaliada através da sua repercussão informal nos meios de comunicação de massa, nos protestos de rua, na participação silenciosa da população. Quanto à viabilidade real, é óbvio que a lei vigente e todo o sistema no qual ela se insere

não atende a necessidade de estabelecer paz aos conflitos, donde a sua ilegitimidade no caso concreto.

Por tudo isso a reflexão serena sobre a questão nos faz crer que o poder público está na obrigação de abrir-se ao diálogo, evitando de tratar o comportamento da outra parte como um mero ato de insubordinação. É verdade que, pedir reflexão quando os ânimos estão exaltados e as emoções explodem descontroladas, não é uma solicitação fácil de ser atendida. Mas, se admitimos que o poder público é o gestor do interesse coletivo cabe a ele um mínimo de distância e serenidade, sem o que, de gestor ele passaria, indevidamente, a proprietário daquele interesse.