A Lei de Informática em questão

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

 

Está em curso, no momento, com previsão para ser julgado em dezembro de 86, um pedido de arguição de inconstitucionalidade da Lei 7232/84, a Lei de Informática. Mesmo com o risco de aborrecer os eventuais conhecedores, entre os leitores, da ordem jurídica brasileira, permito-me, preliminarmente, trazer uma rápida informação sobre o processo de declaração de inconstitucionalidade.

Em princípio, o reconhecimento da inconstitucionalidade de uma lei só pode ser feito por meio de uma ação direta, atribuída ao procurador-geral da República, conforme o art. 119 da Constituição:

"Art. 119 — Compete ao Supremo Tribunal Federal:

I — processar e julgar originariamente:

...

1) a representação do procurador-geral da República por inconstitucionalidade ou para interpretação de lei ou ato normativo federal ou estadual;"

Qualquer cidadão ou pessoa jurídica pode encaminhar uma solicitação ao procurador-geral para que este formule a referida representação. Esta solicitação, contudo, não o obriga a promover a representação, pois a titularidade dessa ação é exclusivamente sua, bem como a conveniência ou não de intentá-la (consoante a jurisprudência do próprio STF v. RTf-97/1170 e 100/1013).

Há, ainda, um segundo caminho, em que se declara, incidente tantum, a inconstitucionalidade de uma lei, quando indispensável para julgar uma causa e isto é de competência em geral do Poder Judiciário. (Ver acórdão do STF in RTJ 96/778.)

Observe-se que, neste caso, temos um controle incidental da constitucionalidade, de efeito apenas interpartes. Seja lembrado, além disso, que se todo juiz pode reconhecer a inconstitucionalidade, os tribunais só o podem fazer por maioria absoluta de seus membros (Const. art. l 16).

Declarada a inconstitucionalidade pelo STF, sua decisão definitiva é encaminhada ao Senado, o qual, então, determina, obrigatoriamente, a suspensão da eficácia da lei (art. 42-VII). A jurisprudência do STF tem entendido, no entanto, que essa suspensão é desnecessária quando a inconstitucionalidade for reconhecida em decorrência de ação direta.

No caso da Lei de Informática, o procurador-geral acolheu a solicitação que lhe foi encaminhada por membros do Congresso Nacional. Não obstante, ao fazer o encaminhamento do pedido, acompanhado de pareceres técnicos, declarou-se a favor da constitucionalidade da referida lei. Isto é, não usou do seu poder discricionário de não promover a ação. Promoveu-a, mas com opinião e argumentos opostos aos dos solicitantes, baseando-se para tanto em recente decisão do STF (3/2/86).

Indo diretamente ao tema, desejo ressaltar que o principal ponto de discussão de todo o processo está localizado na constitucionalidade ou inconstitucionalidade dos artigos 2.°, 3.º, 9.°, 10, 11, 13, 14, 15, 16 da Lei de Informática. Nestes artigos ocorre uma evidente intervenção do Estado no domínio econômico. Discute-se se esta intervenção é ou não conforme os artigos 163 e 170, mas também 153, §§ 23 e 28, 160-I da Constituição. Os artigos 2.º e 3.º estabelecem os objetivos da política nacional de informática e definem, com enorme amplitude, o âmbito das atividades de informática abrangidas pela lei. Os artigos 9.° até 16 dispõem sobre as medidas aplicáveis às atividades de informática: de um lado a possibilidade de restrição à produção, operação, comercialização e importação de bens e serviços técnicos, de outro a possibilidade de vantagens fiscais (isenções, redução do lucro tributável etc.).

Ponto nuclear desta discussão é o correto entendimento sobretudo do art. 163 da Constituição, que diz:

"Art. 163 — São facultados a intervenção no domínio econômico e o monopólio de determinada indústria ou atividade, mediante lei federal, quando indispensável por motivo de segurança nacional ou para organizar setor que não possa ser desenvolvido com eficácia no regime de competição e de livre iniciativa, assegurados os direitos e garantias individuais".

A questão está em se saber se os requisitos "por motivo de segurança nacional" ou "organizar setor ineficaz no regime da livre iniciativa" são condições apenas para a monopolização ou também para a intervenção (regulatória) no domínio econômico. O procurador-geral interpreta o artigo restritivamente: os requisitos só valem para a monopolização. Donde infundada seria a arguição de inconstitucionalidade dos mencionados artigos da Lei de Informática. Já os arguentes os têm por inconstitucionais por não estarem eles obedecendo nem o requisito da segurança nacional (a Lei, art. 2.º, inciso II, fala em "interesse nacional") nem o requisito da "ineficácia do setor".

A interpretação do procurador-geral se funda, resumidamente, no seguinte:

a) a interpretação literal do dispositivo constitucional, no qual a palavra "indispensável" não flexiona (está no singular), conduz a entender os mencionados requisitos como referentes apenas à "monopolização";

b) a interpretação sistemática nos faz ver que a intervenção de que fala o art. 163, ainda que de grande amplitude, é perfeitamente possível no caso, pois, acima de tudo, a ordem econômica tem por fim a realização do desenvolvimento nacional e a justiça social, ao que se subordina a liberdade de iniciativa (160-I);

c) a interpretação axiológica, que nos obriga a entender ate mesmo não como uma faculdade, mas como um verdadeiro dever do Estado (inobstante a expressão literal do art. 163 — "São facultados ..." —) a intervenção no domínio econômico, numa época em que o liberalismo clássico está ultrapassado e em que a racionalização e a planificação da economia são um fato consagrado;

d) a doutrina dominante no Brasil (argumento de autoridade) tem exatamente este entendimento.

Minha interpretação do artigo 163 e outros, conforme já escrevi em trabalho publicado em 1978 (Revista de Direito Público, n.os 47-48, p. 261 ss.) é diferente.

Em primeiro lugar, parece-me que, ao facultar a intervenção, o poder constituinte vê o Estado como um foco de poder centralizado, resultante do balanço de certos ideais de justiça e de interesse público em face dos conflitos de interesses sociais e econômicos. Mas o uso predominante de formas permissivas no que diz respeito à competência do Estado na ordem econômica e social (art. 161, 163 e § único, 164, 170) faz com que normas de obrigação/proibição apareçam antes como limitações às permissões e não ao contrário. Alem disso, conquanto no caput do art. 160 se fale da realização do desenvolvimento nacional e da justiça social, o primeiro princípio enumerado da ordem econômica e social (art. 160-I) é o da livre iniciativa. Portanto, a intervenção no domínio econômico, ainda que vise ao desenvolvimento nacional, deve ocorrer em respeito à livre iniciativa: a intervenção não é a regra, mas a exceção. Quanto à questão da indispensabilidade da intervenção ou da monopolização (art. 163), entendo que, se o princípio primeiro do art. 160-I é o da livre iniciativa, se o art. 170 fala no caráter apenas complementar da atividade empresarial do Estado, espera-se deste, por conseguinte, uma intervenção (lato sensu) limitada e delimitada. Ou seja, a intervenção deve visar à melhoria da atividade, tanto no sentido da eficácia quanto no da justiça e da paz social; não se deve invocar o princípio da razão de Estado (art. 153 § 4."), e, por último, deve ser afastado o arbítrio do Estado, limitando-o ao máximo. Ora, uma interpretação estreita, literal da indispensabilidade, torna elástica a intervenção, dando-lhe alta dose de incerteza. Desta incerteza ao arbítrio é um passo. O que me leva a entender que as delimitações do art. 163 se referem tanto à intervenção lato sensu quanto à monopolização. Em consequência, a Lei de Informática, pela amplitude conferida à expressão "atividades e bens de informática" e também pela importância qualitativa e quantitativa da informática na economia, representa uma intervenção extensa e quase ilimitada, cuja constitucionalidade é, pelo menos, duvidosa. Não obstante, reconheço, esta não é a opinião majoritária da doutrina. Reconheço ademais que, na interpretação dos mencionados dispositivos constitucionais, existem pressupostos de ordem ideológica que não podem ser esquecidos.

Uma outra questão importante refere-se à nacionalidade das empresas de informática. Em discussão está no art. 12 da Lei de Informática. E a argüição de inconstitucionalidade levanta o problema de se saber se, na Constituição, existe alguma limitação que impedisse o legislador de estabelecer, restritivamente, a participação do capital estrangeiro por meio de conceitos especiais de empresa nacional.

Não há, em verdade, na Constituição, nenhum conceito de empresa nacional. Em face disso, o procurador-geral conclui que o legislador é livre para, setorialmente, estabelecer, na lei, diferentes conceitos, tendo em vista diferentes contextos. Não obstante, pode-se perguntar se esta liberdade não sofre alguma restrição. Nesse sentido, pode-se argumentar o seguinte:

1. O art. 153 § 1.º da Constituição assegura a igualdade perante a lei e proíbe discriminações.

2. O art. 153 § 28 assegura a liberdade de associação para fins lícitos.

3. Estes direitos são assegurados, pelo caput do art. 153, aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País.

4. Quando a Constituição impõe exigência de nacionalidade brasileira sempre o faz expressamente (por exemplo, o exercício de certos cargos: presidente da República, ministro de Estado ele.).

5. Existem, no assunto que nos interessa, certas normas que reservam a brasileiros, ou a empresas controladas por brasileira, certas atividades. Elas constam dos artigos 89, 173 e 174 da Constituição.

6. Ora, afirmando-se como regra a igualdade geral para brasileiros e estrangeiros, assumindo-se que as exceções são expressas, pode-se dizer que, no caso de atividades econômicas, pode-se e deve-se extrair dos mencionados artigos 89, 173 e 174, ao menos quais as qualidades que, pela Constituição, devam caracterizar o que seja empresa nacional. E quais são elas?

O art. 89 determina que nos municípios de interesse da segurança nacional a lei assegurará, nas indústrias situadas em suas áreas, predominância de capitais e trabalhadores brasileiros. Note-se aqui a exigência de capital e de trabalhadores,.

Já no art. 173, que torna privativa de navios nacionais e navegação de cabotagem a exigência é de que os proprietários, os armadores, os comandantes e dois terços dos tripulantes sejam brasileiros natos (art. 173 § 1.°).

E o art. 174, que se refere à propriedade e administração de empresas jornalísticas, televisão e rádio: elas ficam vedadas a estrangeiros, sociedades com acionistas ou sócios estrangeiros, devendo ficar a responsabilidade e a orientação intelectual e administrativa dessas empresas sob a responsabilidade de brasileiros natos.

Do exposto poder-se-ia dizer que a Constituição, ao restringir a igualdade assegurada no art. 153, elege como fatores de qualificação de empresa nacional os seguintes:

1. a nacionalidade preponderante de proprietários e dirigentes;

2. a nacionalidade do capital:

3. a nacionalidade de trabalhadores;

4. a nacionalidade da orientação intelectual.

Deve-se reconhecer que a aplicação do argumento a contrario em face deste conjunto de caracteres não conduz a uma conclusão rigorosa. Isto é, tanto se pode dizer que se são estes os caracteres qualificativos, então a Constituição exclui outros, como também que se estes são os caracteres para os casos constitucionalmente excepcionais, então o legislador é livre para escolher outros, ao conceituar empresa nacional. Registre-se, no entanto, que o fato de a Lei de Informática, no art. 12, eleger como caracteres qualificativos a titularidade, direta ou indireta, de pessoas físicas residentes e domiciliadas no País, sobre o controle decisório, do capital e da tecnologia, pelo menos quanto a este último, acrescenta um elemento novo. E não se diga que capacidade tecnológica tem a ver com orientação intelectual. Ademais, o argumento a contrario assim formulado: se não há um conceito explícito de empresa nacional, então a Constituição permite qualquer um, peca por abrir um enorme campo de discricionariedade que pode conduzir à violação da igualdade assegurada entre estrangeiros e nacionais. Não obstante, devo reconhecer que o argumento não é forte.

Por último, dentre os vários problemas referentes a eventuais delegações de poder, proibidas pela Constituição (uri. 6.", § único), desejo ressaltar o art. 9." da Lei de Informática. Admito que o Poder Executivo possa estabelecer restrições quanto à importação de bens e serviços de informática, mas vejo com reservas a possibilidade de fazê-lo quanto à produção e à comercialização. Em primeiro lugar porque produzir e comercializar objetos lícitos é assegurado pela Constituição (art. 153, § 28). Em segundo lugar, porque, pelo menos, a lei deveria dar algum parâmetro para estas restrições, pois, caso contrário, haveria uma delegação normativa em aberto.

Por brevidade, restrinjo-me a estes aspectos. Devo, porém, dizer que o julgamento destas questões tem uma forte base em argumentos jurídicos com fundamentos de ordem política e ideológica. E, neste caso, o sucesso ou insucesso da arguição de inconstitucionalidade depende de outros fatores cuja análise me levaria demasiadamente longe.

Fonte: Revista Indústria e Desenvolvimento, 20(11), São Paulo: 1986, pp. 37-39.