Tercio Sampaio Ferraz Jr.
Prof. da Universidade de São Paulo
Introdução.
1. A teoria da norma.
2. A norma jurídica como imperativo.
3. Jhering e o século depois.
Introdução.
Quando eu estudava na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, comecei a ter aulas de direito romano logo nos primeiros meses. Lembro que o professor de direito romano costumava opor, de um lado, o pensamento de Jhering e, de outro lado, o pensamento de Savigny; os dois eram sempre contrapostos. De fato se opõem em muito da teoria jurídica e da teoria sobre o direito romano em especial. Mas por algum tempo, embora depois tenha aprendido que não era bem assim, pensávamos meus colegas e eu, certamente pelos nomes dos autores, que Jhering era o alemão que se contrapunha ao francês Savigny. Na verdade ambos são alemães, Savigny é um alemão de origem francesa, obviamente huguenote, de uma família emigrada por ocasião da Guerra dos 30 anos. Era, portanto, um alemão já de longas datas.
Talvez pelo nome, então, Jhering soa como uma personalidade tipicamente alemã; nos lugares onde lecionou, teve oportunidade de exercitar essa personalidade meticulosa do analista, por vezes atribuída à cultura alemã, do homem preocupado com a teoria do direito, grande pesquisador que foi da história do direito, particularmente do direito romano.
Não pretendo comentar aqui a obra de Jhering de um modo geral. Gostaria de cuidar de um dos temas de sua vasta obra, qual seja, a teoria da norma jurídica. Um tema típico da teoria do direito, via-de-regra abordado nos livros de introdução ao estudo do direito. Mais propriamente, uma tema filosófico dentro da teoria jurídica.
1. A Teoria da Norma.
A teoria da norma se tomou tema central na ciência do direito, sobretudo, a partir do século XIX, embora já encontremos referências ao assunto muito antes. É no século XIX que a norma jurídica se torna um tema importante, principalmente com o advento do positivismo na Europa. A questão se torna crucial porque a ciência do direito começa a ser entendida como uma ciência que cuida das normas jurídicos, o próprio direito passa a ser reconhecido como um conjunto normativo, o que se firma definitivamente em nosso século.
Embora seja a norma aceita como noção central da ciência jurídica, podemos discutir se o direito é composto apenas de normas, se o direito não envolve também outras situações, se não é um complexo social, reunindo instituições, comportamentos etc., mesmo sem esquecer que a norma jurídica é, pelo menos para o jurista prático, o ponto inicial de pesquisa. Quando um advogado tem um caso para resolver, a primeira coisa a fazer é localizar a norma adequada, em que lei ou código ela se encontra, se é uma questão de costumes, de jurisprudência etc. Quer dizer: do ponto de vista prático a norma jurídica é uma preocupação central inclusive do jurista contemporâneo e, no século XIX, a noção aparecia como algo a ser decifrado e analisado. Decifrado porque era necessário fornecer um conceito de norma jurídica, era preciso isolá-la como ponto de partida para identificação do direito positivo. Analisado porque, diante da noção de norma jurídica, passa a ser possível traçar diferenciações, estritamente falando, dentro do próprio direito, e também frente a outros campos de atividades correlatas, sobretudo em relação à moral.
Esta preocupação é bem claramente encontrada em um autor típico do século XIX como é Jhering. Ainda que a noção de norma seja crucial para o trabalho teórico e para o trabalho prático do jurista, existem inúmeras controvérsias a respeito, não só em Jhering como em muitos outros autores que trataram do assunto. A noção de norma não é uma noção tranqüila: é muito difícil dizer o que é uma norma e mais difícil ainda dizer o que é uma norma jurídica. Há mesmo quem diga que a noção de norma jurídica é um produto da teoria, o que significa afirmar que ela é produto de uma abstração, que na realidade não existe. Encontramos prescrições legais, costumeiras, prescrições contratuais, mas normas jurídicas, não. A norma é certamente um gênero abstrato e por isso mesmo há muita divergência em torno do termo.
2. A Norma Jurídica como Imperativo
Em um de seus tratados, talvez o mais importantes na área da teoria geral do direito, chamado A Finalidade no Direito, Jhering trata da norma jurídica e começa definindo o conceito de direito, dizendo o seguinte: "A definição usual do direito afirma: direito é o conjunto das normas (note-se a ideia típica do século XIX, o direito corno conjunto de normas) coativas, válidas em um Estado; esta definição, ao meu ver (diz Jhering), atingiu perfeitamente o correto". Os dois fatores que esta definição enfeixa em si são a norma (pois o direito é um conjunto de normas)e sua realização por meio da coação. Por conseguinte, o direito tem a ver com normas e tem a ver com coação. Essas duas noções são centrais na análise da própria norma jurídica: embora a coação esteja ligada à norma, na teoria de Jhering ela não compõe propriamente a norma jurídica. Assim, continua ele definindo agora não mais a norma, mas sim o conteúdo dela aquilo de que ela trata: "O conteúdo da norma é um pensamento”. Aí vemos a velha idéia de que o legislador transmite alguma coisa que ele pensa; quando determina que se cumpra esta ou aquela ação, ele está transmitindo um pensamento. Esta teoria ficou conhecida como a teoria da mens legislatoris, o pensamento do legislador.
O conteúdo da norma é um pensamento que, obviamente, se exprime, não fica pensado internamente, expressa-se através de uma proposição (entre parênteses Jhering escreve proposição jurídica). A ideia de proposição jurídica alia o pensamento a uma forma pela qual ele se enuncia, a forma de proposições linguísticas. O conteúdo da norma expressa-se por uma proposição jurídica, uma proposição de natureza prática. Jhering reconhece que existem proposições de natureza teórica, pois as teorias são construídas por meio de enunciados teóricos que são também proposições. Já a proposição de natureza prática é uma orientação para o agir humano: a norma é, pois, uma regra.
Aqui já temos uma definição. Primeiro, Jhering diz, que o conteúdo da norma é um pensamento expresso por uma proposição. Agora dá uma definição de sua natureza. A palavra regra vem de regula, passando por régua, aquilo que faz medir. Quando diz que a norma é regra, Jhering está pensando que a norma é, portanto, medida, ela dá a medida. Medida do que? Regra pela qual nos devemos orientar, regra que nos dá uma medida, um modelo, um paradigma de orientação. Neste último conceito, continua ele, estão também as regras da gramática, pois a gramática também tem regras, medidas, uma palavra certa em oposição a uma palavra errada; distinguem-se das normas, porém, por não dizerem respeito ao agir. Jhering considerava o falar humano não propriamente como uma ação, mas como um produto do pensamento, da razão humana, para o qual a gramática daria as regras; isto significa que o falar correto e o pensar correto nada tinham a ver com o agir. Hoje é diferente, a teoria contemporânea ampliou o conceito de ação e passou a incluir o falar e o pensar entre as ações humanas.
Jhering tenta então uma segunda distinção. A norma jurídica é regra que não se confunde com as regras da gramática por estas não se referirem propriamente à ação humana. Mas as normas jurídicas têm a ver, sim, com as regras da moral, as máximas, cabendo distinguir os dois conceitos. A diferença está em que as máximas são instruções para o agir livre: cumpri-las é algo que fica à discricionariedade própria do agente; em outras palavras, as máximas são também regras, mas o problema de moral é um problema do indivíduo, cada um tem o seu juízo moral. Ora, o cumprimento da norma jurídica é imposto, diz ele, ela determina à vontade alheia uma direção que esta deve introjetar, colocar para dentro.
Assim, a norma é uma regra que vem de fora e que a vontade individual tem que incorporar, ou seja, cada norma é um imperativo: no sentido positivo, uma obrigação, no sentido negativo, uma proibição. E aqui vem uma das teorias clássicas da teoria geral do direito, da qual Jhering é um dos principais defensores, a teoria da norma como um imperativo. Não é a única teoria existente, há outras para as quais a norma nada tem a ver com o imperativo; há mesmo quem diga que a norma é um enunciado descritivo, ela descreve uma ação, não impera coisa nenhuma, portanto não envolve nenhuma obrigação e nenhuma proibição. De todo modo, Jhering afirma que o imperativo só tem sentido quando emana daquele que tem o poder de estabelecer essa limitação a uma vontade alheia, é a vontade mais forte que determina a mais fraca o correto direcionamento do agir.
Para Jhering, então, o imperativo pressupõe uma dupla vontade, ele corre de pessoa a pessoa, daí constituindo fenômeno especificamente humano, a natureza não conhece qualquer imperativo. Na natureza podemos até encontrar leis, o que, em algum sentido, é semelhante ao imperativo; mas as leis da natureza e os imperativos são essencialmente diferentes.
Dependendo de se o imperativo determina a orientação para o agir em um único caso ou todos os casos, distinguimos imperativos concretos e imperativos abstratos. Esses últimos coincidem com a norma, a norma é um imperativo abstrato. Em consequência, diz ele, norma há de se definir como um imperativo abstrato para o agir humano.
Para definir a norma jurídica, assim, Jhering parte daquela definição de direito enquanto conjunto de normas coativas. Note-se aí uma concepção do direito como império. Na idéia de império vem embutida a ideia de comando, imposição de alguma coisa a alguém. Então a norma jurídica não exclui, ao contrário, exige também, num segundo momento, após a imposição, a coação. E a ideia da coação leva Jhering a discorrer sobre a noção de poder. Note-se que a norma não se define pela noção de coação, mas a norma jurídica, sim, ou seja, a norma jurídica é dotada de coação; daí ser impossível separar os dois conceitos. Isto é importante na obra de um homem do século XIX: não se pode separar completamente o estudo do direito do estudo do poder.
A norma, para Jhering. porém, não se confunde com a coação: a norma é dotada de coação, mas ela mesma não chega a ser uma coação, a norma é um imperativo, é apenas o comando, a coação vem depois, pelo descumprimento. Não obstante, a coação é um elemento fundamental do direito e da concepção jurídica da norma. Kelsen, já no século XX, vai dizer que a norma é um imperativo sobre a coação. Enquanto Jhering dizia que o conteúdo da norma é um pensamento expresso em uma proposição, Kelsen vai dizer que a norma tem por conteúdo a coação, ela diz algo sobre a coação: puna-se quem matar com 30 anos de reclusão, isto é a norma.
Jhering é um dos grandes imperativistas. Hans Kelsen, talvez o mais importante dentre os imperativistas do século XX, já supera essas questões da individualidade, da generalidade, da abstratividade e da concretude da norma, que tanto preocuparam Jhering, muito embora continue falando, principalmente na fase depois de 1960, que a norma é produto de uma vontade, só que de uma vontade abstrata. Mesmo assim, ele com certeza vai bem além de Jhering.
O imperativo pressupõe uma dupla vontade, corre de pessoa a pessoa. Com isso Jhering quer dizer que o modelo por ele usado para definir a norma como imperativo é o modelo do comando, do comando singular, o mesmo que um militar exara para seu subordinado. É a ideia de comando como ordem, comando de alguém para alguém: fulano de tal retire-se, fulano de tal bata continência, fulano de tal cumpra esta conduta. Ora, a estrutura do comando é interessante, foi noção fecunda durante o século XIX, mas parece-nos hoje excessivamente simplificada. O comando configura situação concreta e, por isso mesmo, fica muito difícil utilizá-lo para embasar uma teoria da norma. Isto porque, sendo o comando interindividual, não se presta a fundamentar teoricamente a tese de que as normas são imperativos abstratos. Se há uma vontade imperando sobre outra, surge o problema de determinar quem são os titulares dessas vontades: a passagem do modelo do comando, que é interindividual, para a noção de norma, como Jhering propõe – isto é, imperativo abstrato, a norma como uma regra que se dirige a todos indiscriminadamente, a todas as vontades –, complica-se por não ser a norma produto de uma vontade específica, por resultar de uma vontade abstrata.
O modelo do comando é então um modelo frágil para quem pretende definir a norma como imperativo abstrato. Matar alguém, como está no Código Penal, não é um comando dirigido a uma determinada vontade, nem é um comando proveniente de uma determinada vontade, ele simplesmente está no Código como imperativo abstrato. Jhering não deixa de reconhecer isso, percebe as dificuldades de transposição do modelo. Para solucioná-las lança mão de uma forma de generalização que leve curso no século XIX, a partir de certas proposições teóricas do final do século XVIII, mormente na obra de Rousseau: a teoria da vontade geral. Esta teoria é usada para determinar um lado da relação de comando, isto é, explicar como é possível que ao mesmo tempo em que uma vontade se dirige a outra vontade. isso não se reduz a uma relação interindividual, mas é uma relação coletiva. Acontece que a noção de vontade geral é uma noção complicada e o próprio Rousseau teve dificuldades em defini-la A noção de vontade geral em Rousseau, como nós sabemos, não se confunde com a noção de vontade de todos, nem vontade da maioria, os conceitos são separáveis: a vontade geral seria a vontade racional dentro de uma sociedade politicamente organizada.
Note-se que quando Jhering recorre à vontade geral para fundamentar o emissor das normas, o legislador, não fica muito claro se ele está pensando realmente na vontade geral do Rousseau ou se não estaria se referindo à vontade de todos, ou seja, a uma espécie de vontade coletiva, do legislador enquanto ente coletivo, que trabalha em parlamentos e emite sua vontade numericamente (princípio da maioria, da representatividade ele.). Provavelmente tivesse mais em mente uma vontade coletiva do que a vontade geral de Rousseau, que é estritamente falando, uma abstração. uma vontade que a razão determina para a organização da sociedade. Jhering estava mais preocupado com a vontade coletiva, através da qual ele, de certa maneira, resolve um dos lados do problema do modelo de comando.
É também a partir de Jhering que se levanta o problema dos endereçados da norma, justamente quando ele coloca a questão da vontade que predomina sobre outra vontade, mesmo que não tenha cogitado expressamente sobre isso. Para ele, a norma era o imperativo dirigido a todos, daí ser abstrato e genérico, o que coloca a questão. Uma das teorias que se desenvolveram no século XX afirma que o problema do endereçado da norma é um falso problema. Existem autores para quem o problema surge na medida em que se separam a norma enquanto imperativo e o momento da sanção. É daí que começa a especulação, o imperativo dirige-se a todos, a sanção é uma ordem dada à autoridade. Mesmo para esses autores, no entanto, a questão aparece também de um outro lado, do ponto de vista da crítica ideológica. Aí a indagação não mais pertence à teoria jurídica, mas sim à sociologia do direito, na medida em que, no fundo, a regra abstrata acaba escondendo sempre interesses que não são abstratos mas sim concretos e extremamente complexos. É o problema do ocultamento ideológico, presente até nas normas mais simples, como a que proíbe a entrada na sala depois de iniciada uma aula. Existem interesses, portanto, que não são tão abstratos como se possa supor. Mas este já é o enfoque sociológico e de crítica ideológica, que não queremos adentrar, sobre a questão do endereçado da norma.
E a coação, que é a parte a cargo do Estado, dirigida às autoridades estatais, ela faz parte da norma ou não? Para Jhering, o imperativo é dirigido a todos, o não matar vale para todos os cidadãos. A coação o momento da sanção, esta sim, é específica para a autoridade. A coação não faz parte da estrutura da norma. A norma é dotada da sanção, mas ela é em si um imperativo, ela é regra, como vimos. E aí a diferença bem clara em relação a Kelsen, para quem a norma exprime o dever ser da sanção. Jhering, ao contrário, considera que a proibição de matar é norma, o que vem depois, a pena de tantos anos, isto sim é um complemento dirigido ao juiz para aplicar; o que caracteriza a norma, contudo, é esse imperativo dirigido a todos. A esta norma se acopla a coação enquanto presença indispensável do poder. Em outras palavras, Jhering separa os conceitos que, em Kelsen, aparecem interligados. A isto se associa outra diferença importante entre os dois autores, qual seja, a união kelseniana entre direito e Estado, conceitos distintos em Jhering.
Do outro lado da relação de comando, então, quando se diz que a norma é imperativo abstrato, vontade coletiva, coloca-se o problema de a quem se endereçam as normas jurídicas. Na história da teoria da norma há pelo menos duas posições marcantes, além das intermediárias. Existem aqueles autores que afirmam que a norma tem por endereço a vontade de todos os cidadãos, de todos aqueles que vivem dentro do Estado. E há a teoria que se desenvolve paralelamente, um pouco mais restrita, defendendo a ideia de que a norma não se endereça ao cidadão, mas sim ao aplicador da regra: a norma que proíbe matar alguém não está dirigida ao cidadão, ela está dirigida ao juiz, ao delegado, ao policial, a norma se dirige genericamente ao aplicador.
A idéia de que a norma é um imperativo abstrato e genérico e a ideia de que a norma tem a ver com o modelo do comando interindividual levam Jhering, e outros também, a concluir que o comando individual não é propriamente a norma jurídica, ele é apenas um ponto lá no fim do encadeamento dedutivo, cujo extremo oposto está na norma abstrata e genérica. Ora, se a norma tem essas características, não faz muito sentido estabelecer comandos para a generalidade das pessoas. Portam o esses comandos são, por assim dizer, indicações para que a autoridade possa, ela sim, estabelecer o comando concreto. Esta teoria surgiu à margem da outra que dizia que a norma, enquanto comando, tinha por endereçado todo cidadão.
Jhering não chega a desenvolver a questão, mas tem claramente como destinatário da norma o cidadão de um modo geral, sua vontade, isto é, ele não vai no caminho da autoridade aplicadora, mesmo com todas as dificuldades que isso traz, às quais já nos referimos, concernentes a uma conceituação precisa da vontade. O conceito, desenvolvido durante o século XIX pela psicologia individual, referia-se à vontade de cada um; muito mais complicado é definir em que consiste uma vontade coletiva, assim como precisar o que é uma vontade de todos, mormente quando ela se diferencia da vontade coletiva. Repare-se que, se de um lado é possível, ainda que forçadamente, dizer que a norma é um imperativo emanado da vontade coletiva dos legisladores, para o cidadão, o pressuposto é que esta vontade coletiva é unitária, atua numa única direção. Apurados os votos, a vontade é esta e o princípio da maioria vai estabelecer a norma jurídica. Só que não há propriamente uma vontade coletiva, do outro lado, mas sim a vontade individual: um pode cometer crime e o outro, não. A teoria de Jhering, uma das primeiras que se formulavam sobre o tema, passa um pouco como gato sobre brasas a respeito dessas questões.
Além do mais, Jhering usa uma metáfora complicada de ser trazida a um disciplinamento teórico quando diz que a norma tem a ver com a vontade mais forte se impondo sobre a vontade mais fraca. Aí o problema complexo, discutido na teoria moderna, de definir essa noção de vontade mais forte, como avaliá-la e situá-la diante de uma vontade mais fraca. Isso é uma metáfora e as metáforas têm uso didático, relações didaticamente elucidativas, mas que, do ponto de vista teórico, podem trazer dificuldades.
Numa tentativa moderna de definir a vontade mais fraca sob a mais forte, pode-se lembrar aqui o experimento feito por psicólogos sociais americanos na década de 50 – posteriormente esse experimento se vulgarizou e não pôde mais ser realizado por se ter tornado conhecido de todos. Mas na época, exatamente para tentar medir o que é uma vontade coletiva mais forte preponderando sobre a vontade de cada um, o experimento foi ilustrativo e serve à teoria da norma, embora não à de Jhering.
Dez pessoas são colocadas em uma sala diante de uma tela onde se projetam três linhas, das quais duas apresentam dimensões ostensivamente parecidas e a terceira é bem menor. Os entrevistadores começam então a perguntar às pessoas quais as linhas iguais e qual a diferente. A primeira pessoa responde, com a maior tranquilidade, que uma das linhas visivelmente semelhantes é a linha diferente; a segunda pessoa responde, sem pestanejar, da mesma maneira; e todos também, sucessivamente. A última pessoa a ser perguntada é a única que não está previamente instruída, é a cobaia da experiência. O infeliz fica duvidando do que está acontecendo e o observador fica examinando o que acontece. O interessante da pesquisa é que o sujeito fica nervoso, começa a se mexer, alguns se levantam e vão mais perto da tela, os que usam óculos tiram os óculos, põem os óculos, enfim, movimentos que demonstram que não se conformam com aquilo. Mas o mais trágico é que 70% das pessoas concordam com a maioria, isto é, embora ostensivamente as duas linhas sejam desiguais, a cobaia acaba afirmando que elas são iguais, apenas pela pressão psicológica do meio.
Posteriormente as cobaias são informadas do experimento e de que as linhas iguais são realmente aquelas duas, os outros todos estavam combinados. O entrevistador quer então saber o que o sujeito pensou, suas reações internas etc. Alguns irritam-se com o entrevistador, outros, curiosamente, continuam sustentando sua afirmação anterior e uma porcentagem razoável, aí sim, acaba reconhecendo que de fato se sentiu pressionada pela maioria. Isto é uma tentativa de explicar empiricamente o que significaria essa pressão de uma vontade grupal, se é que podemos chamar este fenômeno de vontade, a pressão do ambiente coletivo sobre a conformação da vontade, da opinião do outro. Percebe-se que a noção de vontade, mesmo nesse exemplo empírico, não é teoricamente definível. É possível tentar definir o comportamento de alguém se subordinando ao comportamento do outro, definir a capacidade de autodeterminação de alguém; difícil é a vontade do grupo.
Quando Jhering fala da vontade mais forte predominando sobre a vontade mais fraca está tratando de problemas desta natureza, embora usando metáforas e não amostragens e critérios empíricos. O que ele tem em mente é que uma coletividade acaba se impondo sobre cada uma das vontades individuais e que essa pressão impositiva é o interesse. A vontade que se impõe produz a norma jurídica, norma que não se confunde com as máximas da moral, e a diferença fundamental é que a norma jurídica é o imperativo de uma vontade sobre a outra, enquanto que as normas da moral são regras internas que cada um elege para si. O direito, nesse sentido, separa-se da moral, pois tem a ver com medida, mas uma medida externa para ser introjetada.
E aqui surge um problema de que Jhering também trata de maneira não muito clara, qual seja o problema da regra como direcionamento correto do comportamento. A introdução da noção de regra correta força a reconhecer que a norma não é apenas um imperativo, mas exige também parâmetros de avaliação, de valor, problema tipicamente moral, inclusive para Jhering. Percebe-se de repente que a moral, posta analiticamente para fora pela porta, entra pela janela. Afinal de contas, se a norma contém uma regra, e a regra contém o direcionamento correto do comportamento, a idéia do correto acaba envolvendo um problema de avaliação e de valor. Jhering não chega a entrar nesse detalhe ao separar o direito da moral.
Finalmente, como vimos ao discutir a questão da norma e ao definir o direito, Jhering fala da coação. Quando ele diz que o direito tem a ver com coação, está pensando imediatamente na figura do Estado, tanto que se refere às normas coativas válidas em um Estado. Ora, ao pensar a figura do Estado e a figura do poder em termos de coação, ao mesmo tempo definindo a norma jurídica como imperativo, Jhering é filho típico da teoria do Estado do século XIX, ao privilegiar quase que exclusivamente o aspecto proibição ou o aspecto obrigação no direito. Isto é dito com todas as letras: a norma é um imperativo impositivo, obrigação, ou negativo, proibição, vale dizer, a norma constitui sempre um proibir ou obrigar, ficando de fora um terreno imenso das normas jurídicas, o da permissão, das chamadas normas dispositivas ou permissivas.
Como um bom autor do século XIX, a permissão, para Jhering, não faz parte da norma, a permissão é a ausência de norma, ou seja, o direito é um conjunto de normas, portanto imperativos, e a permissão surge quando não há nenhuma norma, é justamente a ausência de normas que vai formar a permissão. É verdade que essa teoria foi ultrapassada no começo do século XX, na medida em que apareceram as normas permissivas com conteúdo próprio, normas inegavelmente jurídicas e extremamente importantes como, por exemplo, as chamadas normas de organização. A norma de organização não é necessariamente um imperativo, ela pode simplesmente definir certas situações e conceitos jurídicos, tal como a definição de tributo que está no Código Tributário Nacional ou a norma constitucional que afirma ser o Brasil uma República Federativa, normas sem qualquer sentido imperativo.
3. Jhering e o Século Depois.
Isto significa que a teoria do direito, já no século XX, foi reconhecendo que as normas jurídicas não são apenas imperativos, isto é, não são obrigações e proibições, são também permissões. Mas Jhering só via permissão na forma omissiva e, com isto, ele estava de acordo com a teoria do Estado do século XIX, uma teoria do Estado de natureza liberal, aquela ideia do Estado mínimo. Embora o Estado prussiano não fosse propriamente o que se poderia chamar de um Estado liberal, na teoria da época se imaginava um Estado coativo mas que coage minimamente e que, quando coage, fá-lo apenas para impedir que as pessoas interfiram negativamente umas sobre as ações das outras, para não permitir que a liberdade de um interfira sobre e diminua a liberdade do outro. Esta ideia do Estado mínimo é uma ideia típica do século XIX que o século XX vem então a recusar. A concepção do Estado, não apenas fiscalizador do comportamento humano, enquanto comportamento do cidadão, mas do Estado que age como um deles, o Estado-empresário, por exemplo, está fora da concepção que Jhering faz do Estado e, por consequência, da concepção de norma que tem.
Isto se observa quando Jhering define a norma jurídica como imperativo abstraio para o agir humano, tese típica da ideologia liberal do século XIX, estreitamente ligada à ideia de que as normas jurídicas se confundem com normas legais. A ideologia aí é que a norma nunca poderia ter conteúdo concreto, o que ensejaria os odiosos privilégios que a teoria jurídica do século passado queria combater. Ou as leis são gerais ou são eticamente ilegítimas, não são leis, não constituem o direito.
Para nós, hoje em dia, a distinção entre lei e norma é muito importante. Enquanto a tendência do século XIX é identificar as duas coisas, no século XX a lei passa a ser vista como um conjunto de normas e esse conjunto de normas pode conter normas abstratas e gerais, mas também normas individuais e concretas. A norma emanada de uma autoridade de trânsito, ordenando parar, não seria considerada uma norma jurídica, no século XIX, no máximo seria o produto de uma dedução na cabeça do guarda, era um trabalho da razão. Essa ideologia foi abandonada no século XX. Em primeiro lugar, porque se reconhece hoje que as normas jurídicas não são apenas abstratas, existem normas concretas: obviamente, a sentença do juiz é uma norma concreta, e é jurídica. Segundo, porque a própria noção de lei como norma necessariamente geral e abstrata foi superada, há muitos exemplos de leis que têm às vezes um único endereçado, ou leis que têm um conteúdo extremamente particular, não são genéricas, não são portanto imperativos abstratos do jeito que Jhering quer. A lei da câmara municipal, por exemplo, conferindo o título de cidadão honorário da cidade do Recife, dirige-se ao fulano de tal, é lei e não tem conteúdo geral, só aquele cidadão honorário tem este direito concedido por esta lei.
Finalmente: a teoria de Jhering, afinal um grande pensador, está de fato totalmente ultrapassada? Para que estudar Jhering, pelo menos no capítulo referente à teoria da norma, de que nos ocupamos aqui, nesse final do século XX, exatamente um século depois de sua morte? Por que fizemos uma comemoração em relação a este homem? Bem. A figura de Jhering é muito importante na teoria jurídica. É uma figura histórica, em alguns aspectos. Nesse sentido, como dissemos, ele é um dos autores mais importantes na chamada teoria imperativista da norma: tem ainda uma concepção simplificada da teoria imperativista, teoria que se sofisticou a partir das críticas posteriores. Mas foi Jhering quem a formulou de maneira clara pela primeira vez, daí sua importância na história da teoria.
Mais do que isso, porém, Jhering tem um papel importante na própria teoria da norma, não tanto pelas soluções que apresenta, mas muito mais pelos problemas que sua teoria levantou e levanta até hoje. Vimos que é perfeitamente possível partir de uma definição de Jhering a respeito da norma jurídica e daí perceber a atualidade dos problemas teóricos que ali estão imbricados. Nesse sentido, ele é um autor que ainda hoje pode ser lido, desde que possamos fazê-lo com espírito crítico, dirigido aos problemas. A contribuição do teórico não está tanto na produção da teoria pronta, da solução, a genialidade está muito mais, às vezes, em ter percebido os problemas. E isso ele faz com bastante arte, é um homem que levanta as questões e depois vai discorrer sobre as definições, tentando contornar os problemas que ele próprio vai apresentando. Nesse sentido a teoria de Jhering é uma teoria ainda atual. Os problemas que ela enfrenta são ainda os problemas de nossos dias.
Fonte: Jhering e o Direito no Brasil – Seminário Nacional em Comemoração ao Centenário de seu Falecimento, Universitária, Recife, 1996, pp. 211- 226.
Revisado por: Antônio Jerônimo Rodrigues de Lima.