Aposentadoria dos Servidores Públicos e a Legitimidade do Regime Contributivo da Emenda Constitucional n° 20

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

 

Do ângulo de sua história, a aposentadoria dos servidores públicos sempre foi considerada uma variável inerente ao seu trabalho, sendo assumida pelo Estado como um item de despesa presente no orçamento sob o ponto de vista da despesa. Isto é, os servidores, ao contrário dos demais trabalhadores, nunca foram obrigados a contribuir para a sua aposentadoria, assumida, então, pelo Tesouro do Estado como uma obrigação, desde que cumpridos certos requisitos de idade e tempo de serviço. Daí a noção de que o servidor, propriamente, não se desligaria totalmente de sua condição nem do seu "empregador", ao cessar suas atividades. Da condição de ativo, passaria à de inativo, mas submetido, ainda, a restrições, como a de ter cassada a aposentadoria por faltas cometidas quando em atividade, bem como usufruindo certas vantagens, como se ativo fosse, como, por exemplo, o valor integral da correspondente remuneração dos ativos.

Há, nessa história, uma condição estamental, um status, que não se rompe: ativo ou inativo, ele continua servidor. Sua relação com o responsável pelas prestações não se extingue, ao contrário do que sucede com os demais trabalhadores. A aposentadoria do servidor, no dizer de Gilberto Guerzoni ("A Previdência dos Servidores Públicos, a Questão Contributiva e os Institutos e Fundos de Pensão", Reforma Previdenciária, coleção Debates, da Fundação Konrad Adenauer, 1999, p. 59), ter-se-ia caracterizado, em termos jurídicos, como pró labore facto, isto é, seria vista como "uma extensão do fato de trabalharem para o serviço público e não porque contribuíram para tal".

Pode-se entender, neste sentido, que o custeio da aposentadoria dos servidores nunca tivesse conhecido um tratamento isolado do próprio orçamento, sendo considerado, ao contrário, um item da despesa pública. Daí um certo equívoco em se falar em "rombo" do sistema de previdência do servidor, como se este "sistema" fosse capaz de esgotar-se por si mesmo, quer por repartição quer por capitalização. Nunca houve, na verdade, um tal "sistema", autossustentável, de entradas e saídas, mas apenas um problema de verbas orçamentarias, tão suficientes ou insuficientes, como para qualquer item das despesas públicas. Custeio da previdência dos servidores ou custeio de obras públicas, tecnicamente, não tinham natureza diferente. Ambos dependiam da arrecadação e das políticas públicas. Havia, é verdade, contribuições para pensões e para a saúde, regidas por fundos próprios e geridas, muitas vezes, por institutos, que não se confundiam, porém, com a aposentadoria.

Esta situação pouco se modificou com a Emenda Constitucional n° 3, de 1993, que, pela primeira vez, previu uma contribuição do servidor para a sua aposentadoria. Dispunha o seu art. 1° que o art. 40 da Constituição Federal seria acrescido de um § 6°, passando a vigorar com a seguinte norma: "As aposentadorias e pensões dos servidores públicos federais serão custeadas com recursos provenientes da União e das contribuições dos servidores, na forma da lei." A Emenda, porém, não alterou a relação entre o valor da aposentadoria em face daquelas contribuições, pois aquele continuou atrelado à remuneração dos ativos, exigindo, continuadamente, uma previsão orçamentaria. Em outras palavras, a previsão de contribuição não chegou a constituir um regime contributivo, um sistema à parte de entradas e saídas, em que houvesse uma vinculação entre o servidor ativo e o inativo em termos de custeio. Tanto que a Emenda não excluiu uma contribuição para os militares, que, porém, por falta de regulamentação, jamais se tomou efetiva, o que não impediu que continuassem eles a passar para a reserva remunerada. Quando muito, portanto, passávamos a ter uma espécie de regime híbrido, em que, não obstante a previsão de contribuição, não existia qualquer relação necessária entre o valor da aposentadoria e o valor da contribuição ou da duração desta.

Com o advento da Emenda Constitucional n° 20, de 15 de dezembro de 1998, aparece, pela primeira vez a expressão regime de previdência de caráter contributivo, que passa a constar do art. 40, caput, da Constituição Federal. Determina-se também que sejam observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto naquele artigo. De resto, não toca na vinculação entre ativos e inativos nem na integralidade dos valores a receber a título de aposentadoria, apenas tornando mais rígidas as exigências para a sua concessão. Manda ademais que se apliquem àquele regime dos servidores os requisitos e critérios fixados para o regime geral de previdência social, no que couber (art. 40, § 12 da Constituição Federal).

Cabe, diante disto, a pergunta: de que regime previdenciário está falando, então, a Constituição?

Trata-se, em primeiro lugar, de um regime de previdência próprio, regulado pelas normas no art. 40, como se lê até expressamente em seu § 6° (... do regime de previdência previsto neste artigo). A expressão regime próprio aparece nos art. 201, § 5°, em contraposição ao regime geral de previdência social, de que trata a Seção III, artigos 201 e 202 da Constituição Federal.

Atente-se para a ambiguidade do termo geral, que ora significa generalidade pelo caráter abstraio da matéria (generalidade conotativa ou do conceito), ora generalidade pelo universo dos objetos que o compõem (generalidade denotativa ou dos indivíduos denotados).

A expressão geral referida no regime geral de previdência social refere-se à generalidade denotativa, não pela conotação. Regime geral é regime comum a todos, exceção feita aos que se submetem a regimes próprios. Como regime de filiação obrigatória, o regime geral é um dos instrumentos de viabilização de direitos sociais conferidos pelo art. 7° da Constituição Federal. Por ser de filiação obrigatória, contrapõe-se ao regime de previdência privada, este facultativo, complementar e peculiar àqueles que o elegem. Delimita-se, igualmente, em face de outros regimes, os próprios, em que não há filiação, mas uma pertinência inerente à condição dos destinatários pertencentes ao correspondente grupo.

A distinção entre regime geral e regime próprio é marcante no texto constitucional. Note-se, assim, que a Constituição Federal proíbe que o filiado a um regime próprio, inerente à sua condição, seja filiado, a título facultativo, ao regime geral (art. 201, § 5°). Aliás, para efeito de aposentadoria, a Constituição assegura a contagem recíproca do tempo de contribuição para regime de previdência social quer geral quer próprio, distinguindo, assim, entre administração pública e atividade privada, rural e urbana, como constituindo regimes de previdência social diferentes pêlos destinatários (art. 201, § 9°). Mas também determina que alguns servidores públicos, apesar de pertencentes àquele grupo funcional pela sua atividade, não se lhes aplique o regime próprio, mas o regime geral (art. 40, § 13).

Tanto o regime próprio como o geral preveem um conjunto de requisitos e critérios, respectivamente, para a concessão de benefícios e para a apuração de seu valor.

O regime próprio estabelece requisitos de aposentadoria por invalidez, compulsória e voluntária no § 1° do art. 40, reduzindo o § 5° em cinco anos os requisitos de idade e tempo de contribuição para professores (educação infantil e ensino fundamental e médio). O § 6° impõe como requisito que o servidor não perceba outra aposentadoria à conta do mesmo regime, ressalvadas as decorrentes de cargos acumuláveis. Os critérios para o cálculo dos proventos estão nos §§ 2° e 3°, com limite máximo no § 11. E os critérios de revisão estão no § 8°. O § 7° dispõe sobre os critérios para cálculo de pensões, equiparadas ao valor dos proventos do servidor falecido ou a que teria direito, quando faleceu. Não há contagem de tempo fictício (§ 10), mas o tempo de contribuição federal, estadual ou municipal é levado em conta (§ 9°).

A Constituição Federal manda, além disso, que, no que couber, se apliquem ao regime próprio dos servidores públicos os "requisitos e critérios fixados para o regime geral" (art. 40, § 12).

O regime geral vem disciplinado no art. 201, como o diz, expressamente, o disposto no art. 195-II ("... regime geral de previdência social de que trata o art. 201"). No art. 201, § 1°, veda-se a adoção de "requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos beneficiários do regime geral..." (a mesma vedação consta, aliás, do art. 40, § 4°, referente aos abrangidos pelo regime próprio). No art. 201, § 7°, enumeram-se as condições para a obtenção de aposentadoria pelo regime geral. Estas condições, como se lê no § 8° do mesmo artigo, são requisitos. No § 4°, assegura-se o reajustamento dos benefícios, para preservar o seu valor real, mas os critérios de reajustamento serão definidos em lei. Por sua vez, o valor da gratificação natalina dos aposentados e pensionistas tem um critério explicitado na própria Constituição: ela terá por base o valor dos proventos do mês de dezembro de cada ano (§ 6°). De critérios tratam, pois, os §§ 2° (nenhum benefício será inferior ao salário mínimo), 3° (os salários de contribuição, para cálculo dos benefícios, serão atualizados), 4° (o reajuste dos benefícios deve assegurar o seu valor real), 6° (gratificação natalina), 9° (critério de reciprocidade na contagem do tempo de contribuição para regimes próprios e geral), 11 (incorporação dos ganhos do trabalho, a qualquer título, para efeito de contribuição e consequente repercussão em benefícios). De requisitos, os §§ 5° (requisito negativo para filiação facultativa: não ser filiado a regime próprio), 7° (tempo de contribuição e idade para a aposentadoria), 8° (exceção, quanto à idade, para professores de educação infantil e no ensino fundamental e médio).

A par desses conjuntos de requisitos para obtenção de aprovação e critérios para cálculo do valor, caracterizadores dos regimes próprios e do regime geral, a Constituição diz que ambos terão caráter contributivo. Com efeito, o art. 201 determina que a previdência social seja organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória Por sua vez, o art. 40 fala igualmente em regime de previdência de caráter contributivo. Tanto o regime geral quanto o regime próprio do servidor público devem, pois, ter caráter contributivo.

Quanto a essa qualidade, fala-se em regimes de caráter contributivo (caso do regime geral, de filiação obrigatória, e do regime próprio dos servidores) e em regimes de participação facultativa, baseado "na constituição de reservas", como diz o art. 202, caput, da Constituição Federal. Nos primeiros, ao contrário destes, ocorre distribuição dos benefícios, independentemente de uma conta individualizada do participante. De qualquer modo, não obstante a distinção apontar para modalidades diferentes, tanto o regime de caráter contributivo quanto o de constituição de reservas referem-se a uma forma de custeio, da qual participa o próprio beneficiário. A observação é importante, pois é bom lembrar que, embora a previdência social sob regime geral seja custeada com base em regime contributivo, nem todos os benefícios da seguridade social dependem de uma tal participação, isto é, nem todos são organizados sob regime contributivo. Por exemplo, a assistência social, aos que dela necessitam, independe de contribuição (art. 203). O mesmo vale para a saúde (arts. 196 e seguintes).

Com isto ganha um primeiro sentido a expressão "regime contributivo", quando referida ou ao regime de previdência social, próprio dos servidores, ou ao regi-me geral. O reconhecimento, porém, de que ambos devam ter caráter contributivo, não significa que estejamos falando da mesma coisa. Quanto ao regime geral, a previdência é custeada nos termos do art. 195, com base em contribuições sociais. Trata-se de exações de competência da União, consoante o disposto no caput do art. 149 da Constituição Federal. Quanto à previdência dos servidores, com o advento da nova Carta, as pensões passam a receber um tratamento emparelhado com as aposentadorias e a questão da saúde ganha um estatuto de universalidade, esta independente de contribuição (Constituição Federal, art. 203). Assim, pensões e aposentadorias dos servidores passam a prever, para o seu custeio, contribuições, sem prejuízo da responsabilidade dos respectivos tesouros. De que contribuições fala, neste caso, a Constituição?

Note-se, em princípio, que o termo contribuição é usado tanto para as contribuições destinadas ao custeio da previdência dos beneficiários do regime geral, quanto para o custeio da previdência dos beneficiários dos regimes próprios. Esta destinação exige que haja aplicação nas finalidades para as quais foram criadas. As contribuições sociais do art. 195, de competência da União ao teor do caput do art. 149, destinam-se a instrumentalizar-lhe a atuação, a fim de assegurar, dentre outros direitos, a previdência social dos segurados sob o regime geral. Já as contribuições do art. 149, parágrafo único, destinam-se ao custeio, em benefício dos servidores de quem são cobradas, de sistemas próprios de previdência e assistência social dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, estendendo-se a competência ao sistema próprio dos servidores da União por força do disposto no art. 40, caput.

Uma importante consequência desta diferente destinação (referente ao regime geral e aos regimes próprios) está em que, conquanto sejam ambos regimes contributivos, a contribuição para um e para outro não tem a mesma natureza (cf. Marco Aurélio Greco: Contribuições - uma Figura "sui Generis", São Paulo, 2000, p. 82). Com efeito, como sustenta o autor, o que distingue uma contribuição de outra não é a "materialidade" do fato gerador mas sim a qualificação constitucional de uma finalidade e o fato de alguém participar de um certo grupo.

Contudo, quanto à pertinência a um grupo, temos, no que aqui interessa, de um lado o grupo: trabalhadores e demais segurados da previdência social, de outro, o grupo: servidores públicos, submetidos a um regime próprio. Estes, porém, como assinala Greco, consoante o ensinamento de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello (Princípios Gerais de Direito Administrativo, vol. II, Rio de Janeiro, 1974, p. 315), constituem um grupo peculiar, pois "o emprego público não se institui mediante contrato, mas sim mediante ato-união, figura que reúne uma parte tipicamente contratual e outra de natureza estatutária regida pelas normas legais" (p. 82).

Quanto à finalidade, as contribuições dos trabalhadores objetivam financiar o conjunto de ações destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social, apontando para a seguridade social como um todo. As contribuições dos servidores, o custeio de previdência e assistência social deles.

Em outras palavras, como esclarece Greco (p. 82), partindo-se "da noção de que a razão de ser da contribuição não está em certa materialidade [do fato gerador e da base de cálculo], mas sim na qualificação constitucional de uma finalidade e no fato de alguém participar de certo grupo, de algum modo ligado a esta finalidade, explica-se a previsão do parágrafo único do art. 149 da Constituição Federal, pois, a partir do momento em que a pessoa torna-se servidor público, pelo regime próprio que define o seu relacionamento com o Poder Público, vinculado a um regime de previdência e assistência social, justifica-se a exigência pelo fato de pertencer a tal grupo. É um instrumento pecuniário que viabiliza a participação de todos os integrantes do grupo (de servidores) no custeio de seus próprios planos de seguridade."

Em contraposição, quanto à contribuição social para a seguridade social (art. 149, caput, e art. 195) "a própria Constituição prevê universalidade de cobertura (todos integram o grupo) e a contribuição por toda a sociedade (todos participam)" (Greco, p. 242).

Em suma, chama a atenção um importantíssimo ponto nessa discussão. As contribuições sociais são imposições destinadas aos trabalhadores e demais segurados, decorrentes de um poder de império e, por isso, sujeitas a um regime tributário, nos termos do caput do art. 149. Já as contribuições dos servidores não são, propriamente, imposições, fruto de ato de império, dirigidas aos seus funcionários, mas componentes da condição mesma de ser servidor, portanto, de natureza contratual/estatutária ("ato-união"), não submetidas ao mesmo regime tributário, mas às condições de custeio/financiamento publico, próprias dos orçamentos fiscais. Daí não possuírem a mesma natureza. Afinal, não faz sentido algum dizer que a União ou os Estados, Municípios, Distrito Federal, quanto à contribuição para o custeio da aposentadoria e pensão dos servidores, estivessem cobrando tributos de seus servidores por serem servidores! Ou, mais estranho ainda, que a emenda constitucional do Presidente da República tivesse previsto, para o art. 40 da Constituição Federal, um parágrafo primeiro, em que o custeio do regime previdenciário próprio fosse feito mediante "contribuições dos servidores públicos ativos e inativos, bem como dos pensionistas e do respectivo ente estatal..."

Ora, a distinção entre regime geral e regime próprio, enquanto problema de requisitos e critérios de previdência, e a distinção entre regimes contributivos, um baseado em contribuições sociais, outro baseado em contribuições de servidores públicos, enquanto problema de custeio, são decisivas para a discussão referente à constitucionalidade da contribuição dos servidores inativos. Ou seja, regime de previdência e regime de custeio não se confundem.

Com efeito, quando a Constituição Federal (art. 40, XII) manda que o regime de previdência dos servidores públicos titulares de cargo efetivo observe, no que couber, os requisitos e critérios fixados para o regime geral de previdência social, está a referir-se a requisitos e critérios para a concessão de benefícios conforme o disciplinado no art. 201 para regime geral. Mas a imunidade conferida a aposentadoria e pensão diz respeito à fonte de custeio, sendo prevista, separadamente, no art. 195-II, que não compõe o regime geral (arts. 201 e ss.) mas menciona expressamente ser a fonte destinada ao seu custeio. Assim, o art. 195-II nada tem a ver com aqueles requisitos e critérios do regime geral. Caráter contributivo não é nem condição nem requisito do regime geral. É característica do seu custeio. E a não-incidência de contribuições sociais dos trabalhadores e demais segurados do regime geral sobre aposentadorias e pensões por ele concedidas, prevista pelo art. 195-II, é imunidade de exação destinada a financiar a seguridade. O que está em jogo, portanto, não é o dispositivo do inciso XII do art. 40 da Constituição Federal, que se refere a critérios e condições do regime, mas a questão de saber se a imunidade do art. 195-II, que se refere a custeio, poderia ser estendida aos servidores inativos e seus pensionistas.

Para discutir esta questão, é preciso analisar as semelhanças e diferenças entre os custeios. Observe-se, assim e em primeiro lugar, que, quanto à finalidade, deve-se distinguir entre as finalidades mediata e imediata das contribuições (Greco, p. 136). Aquela é atender ao interesse da área ou grupo (previdência, seguridade em geral). Esta é ser instrumento de atuação do Poder Público, tanto no sentido de efetivar uma atuação (por exemplo, contribuição de intervenção no domínio econômico) como no de financiar uma atuação. Neste último caso - financiar uma atuação -, atente-se para o fato de que, no custeio de ambos - regime próprio e regime geral -, o caráter contributivo exige a observância de critérios que preservem o equilíbrio financeiro e aruarial. Submetem-se, porém, as correspondentes contribuições, quanto à finalidade imediata, a critérios de compatibilidade entre os respectivos meios e fins. Neste sentido, eles devem ser necessários, adequados e proporcionais ao fim a que se destinam. Só assim haverá o equilíbrio exigido.

Em termos desse equilíbrio, as contribuições dos trabalhadores destinam-se ao custeio do conjunto de toda a seguridade social, inclusive no tocante à saúde e assistência social, que não são regidas por regime contributivo. É verdade que, pela sua lógica aparente, as contribuições do inciso I, do art. 195 da Constituição deveriam estar destinadas a saúde e assistência social; as do inciso II, à previdência; as do inciso III, a todas as finalidades, como uma espécie de complementação financeira. Assim, apesar de, na prática e na sua amplitude genérica, as contribuições do art. 195 serem destinadas à seguridade em geral, pode-se entender que, quanto às contribuições dos trabalhadores e demais segurados, a Constituição crie uma imunidade para as incidentes sobre aposentadorias e pensões concedidas pelo regime geral. Esta imunidade tem por contrapartida um poder geral de imposição, que sofre, por força dela, uma delimitação. Trata-se, assim, de uma evidente exceção a uma regra geral.

Já quanto às contribuições dos servidores públicos, a Constituição não estabelece nenhuma exceção patente. Na verdade, não se tratando de imposições de um poder de império tributante, mas de uma exação pró labore facto, uma imunidade não faria sentido. E, ademais, neste caso, as razões financeiras e atuariais podem fundamentar o silêncio. Afinal, enquanto para os trabalhadores a passagem para a situação de aposentado (com implicações para os seus pensionistas) implica a extinção da relação de trabalho ao teor do art. 453 da CLT (como vem decidindo o TST), o que torna plausível a ideia que deixem de contribuir, os servidores não perdem essa condição quando passam à inatividade, continuando sujeitos às normas de serviço público, podendo, até mesmo, ter a sua aposentadoria cassada em virtude de faltas cometidas quando em atividade (cf. Ministro Carlos Velloso, RE 163204-6/SP, j. em 9.11.94, DJU, 31.3.95: "Os servidores públicos aposentados não deixam de ser servidores públicos; são, como bem afirmou Haroldo Valadão, servidores públicos inativos")- Assim, enquanto o regime geral conhece uma distinção entre salário de contribuição e salário efetivamente recebido, para efeito de cálculo dos benefícios, no regime próprio os proventos de aposentadoria (e as pensões) são calculados com base na totalidade da remuneração percebida no cargo efetivo em que se dá a aposentadoria. Destarte, enquanto na concessão de benefícios de aposentadorias e pensões, o regime geral conhece limites, o regime próprio só vê autorizados equivalentes limites se instituir sistema de previdência privada para a complementação dos benefícios, obrigatório apenas para os que ingressarem no serviço após a sua instituição. Caso contrário, a responsabilidade dos pagamentos, na sua integralidade, é de inteira responsabilidade dos Tesouros.

Note-se assim, por essa última observação, que, enquanto o caráter contributivo do regime geral é, por assim dizer, puramente contributivo, o do regime próprio é, quando muito, híbrido: parte pró labore facto (extensão da condição de servidor público), parte contributivo. Somente que, a bem da verdade, é um regime de caráter contributivo, em que a contribuição do servidor integra o orçamento fiscal. Neste sentido, a permanência dos antigos institutos de pensão eventualmente remanescentes nos Estados e Municípios (o da União - Ipase - foi extinto antes mesmo da promulgação da Constituição) não passam, atualmente, de uma opção administrativa com vistas a otimizar a gestão de recursos públicos, isto é, "não passam de longa manus da Administração" (Guerzoni, p. 66).

Tratando-se, assim, quanto ao custeio, de regimes de caráter contributivo diferentes, de contribuições distintas quanto à finalidade mediata e imediata, de distinta pertinência a grupo, a exceção referente ao custeio e conferida à aposentadoria e pensões dos trabalhadores e seus dependentes pela norma do art. 195-II há de submeter-se a interpretação restritiva, não podendo aplicar-se, por analogia, às aposentadorias e pensões dos servidores públicos. Ou seja, se o art. 195-II proíbe a incidência de contribuição social sobre proventos e pensões concedidos pelo regime geral, isto não significa que a mesma proibição valha para a incidência de contribuições pró labore facto de servidores públicos A analogia é frágil porque:

1. as respectivas contribuições têm natureza distinta;

2. o caráter contributivo de um e outro regime não é o mesmo;

3. os critérios para equilíbrio financeiro e atuarial são distintos, posto que baseados em necessidades distintas;

4. proventos e pensões do regime próprio (servidor público) são uma extensão de uma relação peculiar ("ato-união"), enquanto proventos e pensões dos segurados do regime geral pressupõem relações contratuais típicas.

O não-cabimento da analogia ao caso pode ser confirmado pelo cabimento do argumento e contrario que, como se sabe, se aplica justamente aos casos em que não cabe a analogia.

O argumento e contrario, como o argumento por analogia, funda-se num princípio não formal. A analogia requer semelhança enquanto a contrariedade requer diferença. Para a verificação de ambas exigem-se critérios não formais (factuais, valorativos), para apurar-se quando um caso é semelhante/distinto de outro.

De um ângulo estritamente lógico, a implicação por contrariedade é indefinida: por exemplo, da proposição "a Constituição não define empresa nacional” tanto se pode inferir, a contrario sensu, que o legislador é livre para defini-la quanto que não pode discriminar entre nacionais e não nacionais. O fundamento do argumento, na verdade, é retórico, o que permite perceber nele graus de persuasão.

O argumento, neste sentido, admite, dois casos (cf. Klug: Juristische Logik, Berlin, 1966, p. 128): o primeiro ocorre quando há, entre os dispositivos normativos e as correspondentes consequências, uma relação recíproca (uma implica a outra); neste caso, o argumento é forte, pois é possível concluir, com razoável segurança, que, se um caso não preenche as condições da norma, isto é, está fora das relações recíprocas, a ele não se aplicam as suas disposições. Este é o caso das normas excepcionais, quando se admite que valem apenas para as situações por elas reguladas e correspondentes destinatários, estando excluídas, a contrario sensu, quaisquer outras hipóteses. Por exemplo: apenas para o servidor público o valor da

aposentadoria funcional será integral, sendo recíproca a implicação entre ser servidor público e ter direito à integralidade da aposentadoria funcional. Neste caso, a conclusão e contrario é forte: a qualquer trabalhador, que não seja servidor público, exclui-se a concessão do valor integral da aposentadoria.

Se, porém, a relação entre os dispositivos e as consequências não é recíproca, então o argumento é fraco. Pois não é possível concluir, com segurança, que, se um caso não preenche as condições da norma, então a ele não se aplicam as suas consequências. É o caso das normas gerais. Por exemplo, se a norma geral impõe limites à concessão de um benefício a todos os trabalhadores, isto implica, a contrario sensu, que, para o servidor público, tanto pode como não pode serem impostos limites à mesma concessão.

Ora, a inferência segundo o qual se para proventos e pensões concedidos pelo regime geral não incidirá contribuição, então, a contrario sensu, poderá incidir contribuição sobre proventos e pensões concedidas por outros regimes, é do tipo forte. Com efeito, a relação entre proventos e pensões concedidos pelo regime geral e não-incidência de contribuição social é recíproca. Pode-se dizer, então, que a norma do art. 195-II excepciona da incidência de contribuição os proventos e pensões concedidas pelo regime geral e, a contrario sensu, permite a incidência para proventos e pensões concedidos por outros regimes.

Mesmo em termos de argumento histórico, referido à mens legislatoris, não é diferente a conclusão.

Aliás, o argumento histórico, no caso, admite nuances significativas. Com efeito, se é verdade que não só no projeto original havia a expressa possibilidade de incidência de contribuição para os proventos de inativos e de seus pensionistas, mas, renovadamente, no curso do processo, isto foi outra vez tentado e rejeitado, também é verdade que, no mesmo processo, houve proposta de expressa exclusão dos inativos e pensionistas, a qual também foi rejeitada. Deste processo resultou uma omissão que, do ponto de vista da história do processo constituinte derivado, mais autoriza a dizer que a emenda finalmente aprovada, em termos de mens legislatoris, deixou a questão indefinida, sujeita à livre disciplina do legislador ordinário.

Com efeito, a proposta de emenda do Presidente da República continha dispositivo expresso (regra geral) sobre o custeio do regime próprio, que seria feito mediante contribuições dos servidores ativos e inativos, dos pensionistas e do respectivo ente estatal (art. 40, § 1°), com previsão igual para militares (art. 42, § 9°). No substitutivo do relator da Comissão Especial (Euler Ribeiro), já se falava apenas de servidores (e de militares). Este substitutivo acabou rejeitado no Plenário da Câmara dos Deputados. Mas, entre ele e a emenda aglutinativa do Deputado Michel Temer, que foi a aprovada, e que manteve a exclusão de inativos e pensionistas, remetendo a questão dos militares a um regime próprio, outros dados merecem destaque.

Na verdade é importante sublinhar que antes do texto afinal aprovado, houve um intenso contraditório de emendas que, de um lado, insistiam em manter a incidência das contribuições também sobre os proventos de aposentadoria de inativos e pensionistas e, de outro, emendas que procuravam explicitar, com toda clareza, que as contribuições não deveriam incidir sobre aqueles proventos. Veja-se, a propósito desta segunda orientação, dentre outras, a emenda substitutiva global do deputado

José Machado (Emenda n° 36-CE/98), que propunha para o discutido § 1° do art. 40 a seguinte redação: "§ 1° - As aposentadorias e pensões serão custeadas com recursos provenientes das contribuições dos servidores ativos e do respectivo ente estatal, na forma da lei, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão" (grifei). Igual redação já era proposta em emenda modificativa pelo deputado Paulo Rocha (Emenda n° 12-CË/98), pelo deputado Alexandre Cardoso (Emenda n° 45-CE/98).

Por esta via percebe-se porque a emenda afinal aprovada omitiu qualquer referência tanto à expressa inclusão quanto à expressa exclusão de incidência da contribuição sobre aposentadorias e pensões dos servidores. Esta omissão, em verdade, solucionava uma questão sobre a qual não havia consenso e desta falta de con-senso resultou uma proposta politicamente viável de indefinição, a ser preenchida pelo legislador. Aliás, na expectativa de que a emenda aprovada viesse a ter essa fórmula omissiva e com aquela consequência, até mesmo uma emenda preventiva, no tocante ao art. 195-II, surgiu. Assim, uma emenda supressiva (Emenda n° 68-CE/98) propunha a supressão, naquele inciso, tal como vinha no substitutivo aprovado no Senado da parte final: "concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201", com base na seguinte justificativa: "Esta emenda visa resgatar a proibição de incidência de contribuição previdenciária sobre a aposentadoria e pensão dos servidores públicos." A motivação, aliás, estava correta, posto que, com aquela parte final, o dispositivo conteria uma norma específica, sujeita a interpretação restritiva e à aplicação do argumento e contrario.

Deve-se admitir, em suma, que o argumento histórico também não é conclusivo para autorizar o entendimento de que a omissão de uma expressa exclusão de incidência de contribuições sobre aposentadorias e pensões do regime próprio dos servidores públicos significaria uma exclusão implícita. O que o embate das emendas mostra é que a omissão resultou da falta de consenso, quer sobre a incidência expressa quer sobre a imunidade expressa. E da omissão, como já exposto, não é conclusivo, e contrario, nem uma coisa nem outra. Mas é conclusivo, e contrario, do dispositivo específico do art. 195-II que ele se aplica apenas aos segurados do regime geral.

Conclusões

Pelo exposto anteriormente, entende-se que aquela imunidade tributária, constante do art. 195-II da Constituição Federal, diz respeito ao custeio do regime geral e não pode, quer por força do argumento por analogia, quer por raciocínio e contrario, não lhes dando maior supedâneo o argumento histórico.

Como esclarecido, a natureza das contribuições sociais (art. 149, caput, da Constituição Federal) e das contribuições previstas no parágrafo único do mesmo artigo, têm natureza diferente. Estas têm sua exigência justificada a partir do momento em que a pessoa se toma servidor público, passando a estar vinculado a um regime próprio de previdência e assistência social, por força do regime que define seu relacionamento com o Poder Público. Trata-se de instrumento pecuniário que viabiliza a participação de todos os integrantes do grupo (servidores) no custeio de seus próprios planos de seguridade. Neste sentido, sendo a aposentadoria e a correspondente pensão direitos do servidor, inerentes ao cargo e à carreira, a contribuição para o seu custeio não tem a mesma natureza (tributária) das contribuições sociais. Se para estas há previsão de imunidade, não há como aplicá-la às contribuições dos servidores. Afinal, ao exigir tal contribuição não faz sentido sustentar que o Estado-membro estaria, por meio de um Instituto de Previdência, cobrando tributo de seus servidores (cf. Greco, op. cit., p. 182).

Quanto à questão sobre se a mencionada imunidade é requisito ou critério, nos termos do § 12 do art. 40, da Constituição Federal, entende-se que tais requisitos e critérios, mencionados no § 12 do art. 40 da Constituição Federal, referem-se ao regime, não ao seu custeio. O próprio art. 195-II, da Constituição Federal, ao criar a imunidade para aposentadoria e pensões concedidos pelo regime geral, diz que ele é tratado no art. 201. É neste art. 201 que estão os critérios e requisitos do regime. A imunidade do art. 195-II refere-se a custeio da seguridade social, reporta-se a aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral, conforme requisitos e critérios para esta estabelecidos. Incluir a própria imunidade entre aqueles requisitos e critérios é ferir o princípio lógico de proibição de auto referência sob pena de um sem sentido: se a imunidade é sobre aposentadoria e pensões concedidos conforme certos requisitos e critérios, não faz sentido que a própria imunidade seja um requisito ou critério do regime! A falácia, denunciada por Bertrand Russell, fere o princípio, segundo o qual um enunciado que envolve a totalidade de um conjunto não pode fazer parte do conjunto, sob pena de gerar um sem sentido. Pois é como se estivesse dito: a imunidade é sobre aposentadoria e pensões desde que sejam imunes. Isto é, a imunidade seria condição de si mesma!

Ademais, como anteriormente esclarecido, ainda que se admitisse ad argumentandum o mencionado nonsense, a expressão no que couber, constante do § 12 do art. 40 da Constituição Federal, tem de levar em conta a exigência de que o caráter contributivo dos respectivos regimes previdenciários observem critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, obviamente sujeito a necessidades distintas, num e noutro caso (vejam-se, sobre estas distinções e. sua repercussão no equilíbrio mencionado, as considerações do Ministro Octávio Gallotti, na ADIn n° 1.441 - DF, RTJ 166/893).

Fonte: Revista Dialética de Direito Tributário, nº 91, Dialética, São Paulo: 2003, pp. 116-126.