Tercio Sampaio Ferraz Jr.
SUMARIO: 1 Introdução — 2 Questões analíticas — 3 Da norma revogadora — 4 Revogação e norma nova — 5 Do poder reformador e seus limites — 6 Limitações e exceções — 7 O "due process of law" e as ressalvas do art. 3.' da Emenda 11 — 8 Conclusão.
1 Introdução
A EC/11, de 13.10.78, estabelece no seu art. 3°: "São revogados os Atos Institucionais e Complementares, no que contrariarem a Constituição Federal, ressalvados os efeitos dos atos praticados com base neles, os quais estão excluídos de apreciação judicial".
É nosso objetivo, nesta oportunidade, analisar este artigo. Nosso foco de interesse está basicamente voltado para a última disposição, que contém a exclusão de apreciação judicial. A indagação que nos propomos diz respeito à sua exegese sistemática: em que sentido, no contexto constitucional, deve ser entendida a ressalva referente aos efeitos mencionados na Emenda e a sua exclusão de apreciação judicial?
2 Questões analíticas
O art. 3.° da Emenda 11 permite, preliminarmente, o levantamento de algumas questões analíticas. A primeira delas é: quantas normas contém o referido artigo? Tomado o seu dispositivo à letra, temos inicialmente uma norma revogadora: "São revogados os Atos Institucionais e Complementares, no que contrariem a Constituição Federal" (a). Em seguida, uma norma que excepciona a primeira: "ressalvados os efeitos praticados com base neles" (b). Por fim, uma norma de exclusão de competência: "os quais estão excluídos de apreciação judicial" (c).
A norma (a) releva importantes questões: qual a natureza da norma revogadora? Que significa, no texto, contrariedade? Que significa ainda Constituição Federal em oposição a Atos Institucionais e Complementares?
A norma (b) também suscita indagações: qual a relação entre a ressalva quanto a efeitos e a revogação? Que significa "praticados com base neles"?
A norma (c), por último, sendo norma de competência estatuída por Emenda, a qual repete o conteúdo de normas revogadas, como deve ser entendida em relação a elas?
3 Da norma revogadora
A norma (a) é uma norma revogadora, portanto norma dependente, no sentido kelseniano, que, assim, não estatui nem um ato nem uma omissão, isto é, nenhum dever-ser, mas, como diz Kelsen, estatui um "não-dever-ser" (ein Nicht-Sollen). Simplesmente significa isto que a norma revogadora apenas faz desaparecer a norma revogada enquanto norma válida, tendo seu sentido agregado ao sentido desta última. Daí a razão de ser a norma revogadora norma dependente, pois lhe falta sentido autónomo.¹
No caso em tela, revogados estão os Atos Institucionais e Complementares, no que contrariarem a Constituição Federal. Do ângulo lógico, duas normas contrárias se negam mutuamente quando, nas mesmas condições de aplicação, têm caráter deôntico oposto (uma obriga, outra permite) e seus conteúdos se negam internamente (um é uma omissão, o outro é uma ação) — exemplo: "é permitido confiscar" se nega por "é obrigatório a omissão de confiscar". Sua contrariedade significa que, em tese, ambas não poderiam ser válidas ao mesmo tempo, embora pudessem ser concomitantemente não-válidas. Do ângulo dos sistemas jurídicos, no entanto, é possível que normas contrárias, que se negam mutuamente, valham simultaneamente, na medida em que provenham de autoridades distintas que reciprocamente se excepcionam. Ou seja, na prática, os ordenamentos jurídicos contêm normas contrárias simultaneamente válidas. Afinal, normas são prescrições que encerram uma relação de autoridade, (cometimento) e um conteúdo (relato) as quais, embora incompatíveis, admitem pragmaticamente uma convivência. Este é o caso específico, a nosso ver, da ordem constitucional brasileira até a Emenda 11, quando, concomitantemente, tínhamos uma Constituição valendo ao lado de Atos Institucionais, cujos dispositivos, muitos deles, se negavam mutuamente. Na verdade, ordenamentos não são sistemas estritamente lógicos, obedecendo antes a uma racionalidade própria da chamada coerência retórica ou também lógica do razoável. 2
A norma revogadora (norma a) do art. 3.° da Emenda 11 admite explicitamente a contrariedade entre Atos Institucionais e Complementares e a Constituição Federal. Admite, pois, que havia, naqueles, dispositivos que negavam dispositivos desta, os quais, do ângulo lógico-formal, não poderiam valer concomitantemente, embora, pragmaticamente, coexistissem. Para explicar essa coexistência é preciso esclarecer a distinção entre ordem constitucional e constituição escrita, bem como em que sentido normas contrárias valiam ao mesmo tempo.
O art. 182 da Constituição, revogado pela Emenda 11, diz Manoel Gonçalves Ferreira Filho³, introduzia no Direito brasileiro a diferença entre ordem constitucional e constituição escrita. Via de regra, ambas se confundem, mas há casos, como o brasileiro, em que o conjunto das regras formalmente constitucionais, vigorantes em determinado momento em um Estado, (ordem constitucional) abrange mais normas que as da Constituição escrita. No caso poder-se-ia dizer ainda que a ordem constitucional conjugou a estabilidade estrutural da Constituição com a discricionariedade conjuntural dos Atos Institucionais e Complementares, os quais, destarte, valiam por uma condição especialíssima.
Como diz Miguel Reale4, os Atos Institucionais eram "atos de natureza constitucional, com duração temporária, a fim de atender à situação excepcional emergente do processo revolucionário". Nesta condição, eles apenas traduziam "o trânsito da ordem jurídica antiga para uma ordem jurídica futura imposto pelo sentido ou espírito da revolução vitoriosa". Sabendo-se, como dissemos, que normas jurídicas não são apenas um texto estatuído, mas uma relação de comando (conteúdo ou relato e relação ou cometimento), pode-se afirmar que os Atos Institucionais e Complementares (estes equivalentes às Leis Complementares) são nitidamente atos revolucionários, emergenciais, de cunho autoritário (cometimento), constituindo um sistema normativo extraordinário, destinado, como eles próprios proclamavam, ao combate à subversão e à corrupção, tendo o efeito de suspender a Constituição no que com ela colidiam mas apenas no que fosse dirigido àquelas finalidades (relato). 5
A Emenda 11 opõe estes atos à Constituição Federal. Que se deve entender por "Constituição Federal"? A resposta óbvia seria: a Constituição vigente, isto é, aquela que traça a ordem constitucional em vigor no Brasil, a partir, pois, do ato de um poder constituinte originário.
Ora, o País sofreu uma alteração revolucionária da ordem constitucional vigente desde 1946 em 31.3.64. O AI/1, no seu art. 7.°, § 1.°, positivou o Comando Supremo da Revolução e, após a posse, o Presidente da República como um poder extraordinário, acima dos poderes constitucionais da Constituição de 1946, não obediente a nenhum poder superior, limitado apenas ao que ele próprio estatuía. Daí se seguiram os Atos 2, 3 e 4. Este último, convocou o Congresso Nacional, extraordinariamente, para a discussão, votação e promulgação do projeto de Constituição apresentado pelo Presidente da República. Do ângulo positivista e formal, o poder revolucionário detinha o poder constituinte originário. Dele o Congresso recebeu a incumbência de dar conteúdo à nova Constituição. A partir de 1967 cessou, então, o regime revolucionário, saindo o País da discricionariedade constitucional conjuntural, entrando na estabilidade constitucional estrutural.
Em 13.12.68, reaparece o poder revolucionário, através do AI/5. Na sua esteira vieram outros, até que a Junta Militar, no exercício da presidência, proclamou, com base nos atos institucionais, a EC/1 de 1969. Esta Emenda, apesar do nomen júris e da referência ao art. 49, I da Constituição de 1967, foi, na verdade um ato do poder revolucionário. Tratava-se, pois, de uma emenda constitucional revolucionária que consolidava uma ordem constitucional em que coexistiam e conviviam a Constituição de 1967 e os AI/5 e ss. Isto ficava claro pelo disposto no art. 182 das disposições Gerais e Transitórias, conforme a Emenda de 1969, a qual reformulou e reformou mas não revogou a Constituição de 1967.
O período que vai de 1968 até 1978, quando tivemos a Emenda 11, é, portanto, revolucionário, cuja ordem constitucional está contida numa Constituição excepcionada por Atos Institucionais. Pode-se dizer, neste sentido, que o ordenamento brasileiro manifestava um sistema (em termos de um conjunto coeso, mas não necessariamente unitário, de normas — vide nossa Teoria da Norma Jurídica) com pelo menos dois grupos ou cadeias de normas-origem básicas: a Constituição de 1967 na formulação da Emenda de 1969 e os AI/5 e posteriores.8 Ora, a Emenda 11, nos termos do art. 49 da CF, vem e revoga os Atos Institucionais e Complementares no que contrariam a "Constituição Federal". Qual? Obviamente a Constituição de 1967, conforme a formulação da Emenda 1/69, eliminado, desta formulação, o que contrariasse também a Constituição de 1967.
Ou seja, ao revogar os Atos Institucionais em vigor, inclusive aqueles que embasaram a Emenda 1/69, a Emenda 11 teve por fim estabelecer uma estabilidade constitucional estrutural. A Emenda 11, assim, foi um ato do poder reformador conforme a Constituição de 1967, na formulação da Emenda de 1969, sem levar em conta o que esta continha de discricionariedade conjuntural. Isto é, o regime revolucionário de 1968 a 1978 apresentava a convivência de dois editores constitucionais: o poder revolucionário, excepcional e emergencial, e o poder constitucional, estável e estrutural, ambos positivando competências reformadoras da ordem constitucional até o ponto de se conferirem poderes mútuos de revogação (vide art. 2.°, § 1.° do AI/5 e o art. 49 da Constituição). Em conformidade com isto, a Emenda 11 revogou os Atos Institucionais, com base no referido art. 49.
4 Revogação e norma nova
Contudo, a revogação que se estabeleceu no art. 3.° da Emenda 11 (vide norma a) foi acompanhada de duas outras normas (b) e (c), circunstância esta que merece mais detida atenção. O que se deve prevenir é eventual confusão entre o referido art. 3.° com uma norma revogadora, pura e simplesmente, sobretudo porque a Emenda, conforme o art. 49, foi ato regulado pela própria Constituição, a qual, para sua reforma, fixa o procedimento, configura a competência e estabelece limites.
Kelsen, como vimos, analisando a norma revogadora, observa com grande acuidade, que esta tem um efeito único: estatuir um não-dever-ser. Sua função se esgota em fazer desaparecer a norma revogada. Isto posto, a norma revogadora, preenchida sua função, desaparece também, pois sua eficácia também se esgota: ela para mais nada serve. No que se refere à norma revogada, diz Kelsen, esta deixa de existir (não vale mais) e sua existência (validade) não mais se recupera. Ou seja, mesmo que viesse uma outra norma, repristinando a norma revogada, com todos os seus efeitos — por exemplo: "fica restabelecida a norma x, antes revogada pela norma y" — não seria a mesma norma revogada que voltaria a valer, mas estaríamos diante de norma nova, posto que sua vigência decorreria na dinâmica do ordenamento, da norma repristinadora. Em outras palavras, dado o caráter dinâmico dos ordenamentos, as normas que perdem sua validade não mais a recuperam. O que se recupera, eventualmente, é o seu conteúdo, através de uma nova norma.
Ora, isto tem uma consequência importante. Quando, num mesmo artigo de lei, ocorre a revogação de uma norma e, ao mesmo tempo, alguns dos efeitos desta são mantidos, através de ressalva, estes efeitos são decorrência da validade da norma que os mantém e não da norma revogada. Note-se que não estamos falando de derrogação, caso em que haveria uma revogação parcial. Aí, é óbvio, o que não foi revogado continuaria valendo por força da norma derrogada. Estamos, outrossim, falando de revogação total, mas com ressalva de efeitos.
É evidente que isto repercute na análise que estamos procedendo. O art. 3.° da Emenda 11 não apenas revogou os Atos Institucionais e Complementares, mas também manteve os efeitos dos atos praticados com base neles e os excluiu de apreciação judicial. Ora, ao fazê-lo, de um lado repetiu o conteúdo de dispositivo constante do AI/5, art. 11, e atos subsequentes (AI/6, art. 4.°; AI/7, art. 9.°; AI/11, art. 7.° etc.) no que se refere à exclusão de apreciação judicial, e estabeleceu a aprovação dos efeitos dos atos praticados com base neles. Estas duas normas, pelo exposto, constituem norma nova: a de exclusão de apreciação judicial, posto que os Atos Institucionais que a continham, foram revogados e desapareceram; e da aprovação dos efeitos, posto que deu força normativa a efeitos anteriores a partir dela, Emenda, e não mais a partir dos próprios atos revogados.
Examinemos cada um dos casos.
A ressalva dos efeitos significa, uma aprovação deles. Esta aprovação, contudo, não quer dizer uma ratificação, com sentido de convalidação7. Assim como a revogação se distingue da extinção, posto que a primeira se refere à vigência e a segunda, à eficácia, do mesmo modo convalidação é ato diferente de aprovação. Assim, o art. 3.° da Emenda 11, ao revogar os Atos Institucionais e Complementares e os atos praticados com base neles apenas ressalvou a sua eficácia, mas não a sua vigência, que foi eliminada. Destarte, a ressalva passa a ser o novo fundamento, em termos de vigência, da referida eficácia. A ressalva mencionada é, pois, norma nova.
O mesmo se diga da exclusão de apreciação judicial. Neste caso, é verdade que este conteúdo constava não só dos Atos Institucionais revogados, mas também do art. 181 da Constituição. Note-se, no entanto, que este art. 181 é redação da EC-1/69, como vimos, emenda revolucionária e, neste ponto, diferente da Emenda 11. Ora, esta última, ao revogar os Atos Institucionais e Complementares, com base no art. 49, no que contrariavam a Constituição Federal, não incorporou (nem implicitamente) a validade de atos revolucionários. Destarte, se manteve algum conteúdo de suas normas, como é o caso da exclusão de apreciação judicial, o fez motu próprio. Portanto, a vigência desta norma de exclusão decorre não do art. 181, mas do art. 49. Ou seja: a exclusão constante do art. 3.° da Emenda 11 não é a mesma do art. 181, mas sim o conteúdo de uma norma nova.
Pois bem: tratando-se, em ambos os casos, de norma nova estabelecida com base no art. 49 da CF, o qual dá competência para a sua reforma, é preciso examinar os termos em que foi exercido este poder reformador.
5 Do poder reformador e seus limites
A questão nos reporta, imediatamente, à noção de poder reformador. Trata-se de um poder, cuja competência deriva da própria Constituição. Em face da ambiguidade da palavra poder (que significa: 1) força, dominação, poderio político; mas também 2) faculdade, atribuição, competência) 8 é preciso esclarecer que ò termo, no caso de poder reformador, tem basicamente o sentido de poder-competência. Numa primeira aproximação, portanto, ele é, negativamente, um poder que nem é autónomo, nem originário nem incondicionado. 9 Ao contrário, pois, sendo poder-competência, exige fundamento em normas que lhe dão, lhe configuram e lhe limitam uma atribuição. Há quem admita que o chamado poder reformador é o próprio poder constituinte que permanece. Mesmo nessa concepção, contudo, não se pode ignorar, como diz Miguel Reale, que o poder, quanto mais concorre para a positivação do direito, mais se prende e se delimita pelo direito declarado.10 Ou seja, mesmo que se entendesse o poder reformador como o próprio poder constituinte originário, este, ao exercer-se, conforme normas de competência que ele estabeleceu para o seu exercício, ao menos estas tem ele de respeitar, sob pena de estarmos diante de uma nova Constituição. Isto é uma decorrência lógica até para um direito constitucional, como o norte-americano, que não conhece, em princípio, nenhum limite ao poder de emendar11.
De qualquer modo, como diz Manoel Gonçalves Ferreira Filho,12 não é difícil dar por reconhecida a existência de limites ao poder de reformar. O que exige maior acuidade é a sua especificação. Quanto a eles, fala-se em limites formais e materiais.ls Os formais são os estabelecidos pela Constituição, a qual determina o procedimento reformador. Este procedimento visa à reforma das demais normas da Constituição, algumas das quais, no entanto, estão excluídas do seu alcance, estabelecendo-se, destarte, o limite material. Este pode ser, diz a doutrina, explícito e implícito. É explícito quando está expresso. Implícito quando deriva do tê-los constitucional, contido na sua estrutura global, em termos de fundamentos cuja alteração implicaria uma nova Constituição, portanto, o exercício de um ato revolucionário. Nelson de Sousa Sampaio refere, quanto ao limite .implícito quatro matérias: 1.°) as relativas aos direitos fundamentais; 2.°) as relativas ao titular do poder constituinte; 3.°) as relativas ao titular do poder reformador e 4.°) as relativas ao próprio processo do poder de reforma.14 As três últimas parecem-nos uma decorrência de princípios inerentes à própria linguagem normativa: as normas que estabelecem competência formal para a edição de outras normas não podem ser objeto de si mesmas, sob pena de inconsistência e de estatuição de um sem-sentido. Já a primeira decorre ou de um superdireito (direito natural, para quem o aceita como suprapositivo) ou de um compromisso básico que, se rompido, faz desaparecer a ordem constitucional vigente (origem contratual). Assim se expressa, comumente, a doutrina. Mas é possível alinhar ainda um terceiro fundamento que, independentemente de hipóteses jusnaturalistas e contratualistas, admite que todo o corpo normativo que se instaura, estabelece, concomitantemente, uma razão interna, orientadora e logicamente necessária, como pressuposto da interpretação dogmática, e que preside o mínimo de certeza e segurança exigido pelo ato hermenêutico no Direito.
Isto posto, é preciso verificar se, no caso em tela, algum limite implícito foi tocado quando do exercício do poder reformador pela Emenda 11.
6 Limitações e exceções
Antes de mais nada, assinale-se que, como a Emenda 11 revoga Atos no que contrariarem à Constituição Federal, é óbvio, conforme vimos, que devemos nos reportar à Constituição de 1967, de acordo com a formulação da Emenda 1/1969, expurgada de incompatibilidades dos Atos Institucionais e Complementares, não só no que se refere ao conteúdo de suas normas ("relato" normativo, isto é, a descrição da ação e das condições da ação) como também ao espírito prevalecente em sua relação de autoridade ("Cometimento" normativo, isto é, o sentido, o alcance, o modo, o telos da sujeição que se impõe).
Em seguida deve-se reconhecer que a aprovação de efeitos de atos revolucionários e a sua exclusão de apreciação judicial já havia constado duas vezes do texto constitucional, antes da Emenda 11. A primeira, por ato do poder constituinte originário, em 1967, quando, nitidamente, se pôs fim ao processo revolucionário e se aceitou, nas disposições transitórias, a aprovação de efeitos e a exclusão de apreciação judicial de atos do Comando Supremo da Revolução e daqueles praticados com base nos AI l, 2, 3, 4. A segunda vez, em 1969, quando, reaberto o processo revolucionário desde a edição do AI/5, em 13.12.68, a Junta governante promulgou a Emenda 1. Nos dois momentos, tivemos atos do poder constituinte originário. Mas com uma diferença importante quanto ao espírito, ao "cometimento" normativo. Em 1967, instaurava-se um regime de estabilidade estrutural, com pretensão de continuidade, nos moldes do constitucionalismo ocidental. Já em 1969, atuava um poder que se reconhecia como emergencial, extraordinário, que estatuía uma ordem de exceção, provisória, de caráter transparentemente autoritário.
Em face disto, indaga-se: estaria a Emenda 11, ao reportar-se à "Constituição Federal", repetindo, no mesmo espírito e com igual alcance, o estatuído anteriormente?
Preliminarmente, uma premissa: a hermenêutica jurídica aceita, unanimemente, que não há normas sem interpretação, donde decorre que uma Constituição é inseparável de uma prática interpretativa; esta prática deve ser colhida na jurisprudência e na doutrina que, desde Savigny, corporificam, em termos de segurança e certeza, o chamado "espírito do povo" (Volksgeist); ademais, também desde Savigny, o "espírito do povo" não manifesta uma razão paralisante, sob pena de irrealismo; ou seja, ele é inseparável do "espírito do tempo" (Zeitgeist), devendo o ato interpretativo atentar à sucessão dos momentos da realidade, que é sempre memória e projeto.
Isto significa que a resposta procurada deve atentar às condições históricas em que as normas foram estabelecidas. Parece evidente que o constituinte de 1967, atuando como poder originário, dentro do espírito de uma estabilização constitucional, houve por bem estabelecer a regra do então art. 173, como um dispositivo válido para aquele momento, para aquele objeto e para aquela finalidade. Tanto que o incluiu entre as disposições gerais e transitórias, fazendo ver, claramente, que não se estatuía uma regra ampla para situações futuras. Tratava-se de uma norma excepcional, cuja finalidade era pôr uma pedra no passado, desde que o regime readquiria sua normalidade constitucional. Nestes termos, não poderia nunca ser tratada como um princípio inerente à Constituição, a ser estendido, analogamente, a situações futuras. Se, em 1969, a norma foi confirmada e ampliada, isto já aconteceu, de novo, dentro de um quadro revolucionário, emergencial e conjuntural, que também não pode servir de padrão, ademais que a Emenda 11 objetivava restabelecer a normalidade constitucional pela revogação dos Atos Institucionais e Complementares. Portanto, a aprovação de efeitos de atos revolucionários e sua exclusão de apreciação judicial não se tornou um princípio a ser seguido pelo poder reformador, mesmo porque isto seria inserir na estrutra da Constituição um conflito de princípios e não, como foi feito, apenas uma exceção conjuntural. Ora, tratando-se, como é evidente, de uma exceção para aquele momento, a sua repetição, pela Emenda 11, enquanto ato de poder reformador, só pode ser entendida muito restritivamente.
Consideram-se excepcionais, sujeitas destarte à interpretação restritiva, as disposições que "restringem ou condicionam o gozo ou o exercício dos direitos civis ou políticos".15 Os termos restritivo e extensivo, diz Maximiliano, exprimem o efeito conseguido, o resultado a que se chega.16 Assim, a exegese estrita consiste em atingir menos do que a letra da norma à primeira vista traduz. No caso do Direito Constitucional, observa o mesmo autor, "interpretam-se estritamente os dispositivos que instituem exceções às regras firmadas pela Constituição".17
Isto posto, é preciso verificar, por fim, qual o entendimento da norma que aprovou os efeitos dos atos praticados com base nos Atos Institucionais e Complementares e a que os excluiu de apreciação judicial.
7 O "due process of law" e as ressalvas do art. 3." da Emenda 11
O princípio do due process of law, contido no art. 153, § 4." da Constituição, é no Direito Constitucional moderno, a mais forte proteção aos direitos fundamentais contra as incursões do Poder Público.18 Trata-se de uma proteção processual que estatui, primeiro, que ninguém pode ser alcançado por medidas do Poder Público sem que seja notificado em caso de serem atingidos os seus direitos e, segundo, que a todos é garantido o direito de ser ouvido. Ademais é também uma proteção substantiva, pois exige que os atos do Poder Público, no seu conteúdo, sejam razoáveis e proporcionados. Neste sentido, como diz Manoel Gonçalves Ferreira Filho 19 se o princípio da legalidade é a base do estado de direito, o preceito do art. 153, § 4." é a sua garantia.
Pontes de Miranda, comentando o art. 153, § 4.°, diz que quando o seu texto fala em "lei" ("A lei não poderá excluir. . ."), refere-se a leis ordinárias no sentido lato, isto é, "quaisquer leis, que não sejam constitucionais".20 Poderia uma Emenda Constitucional estabelecer a exclusão quanto a efeitos de atos já praticados? A resposta coerente teria de ser: sim. Afinal, como diz o mesmo autor, o princípio da vedação da retro-eficácia não se impõe à Constituição. 21 Mas em que termos?
Como vimos anteriormente, a ressalva, pelo art. 3 da Emenda 11, dos efeitos dos atos praticados com base nos Atos Institucionais e Complementares, significou a sua aprovação. Esta aprovação, contudo, não significa uma ratificação, com sentido de convalidação. Assim como revogação se distingue de extinção, a primeira referindo-se à vigência, a segunda à eficácia, do mesmo modo convalidação é distinta de aprovação.
Ora, a vigência daqueles atos, não tendo sido ratificada por uma norma superior, acima de quaisquer condições infranormativas de validade, permaneceu sujeita a critérios de nulidade ao menos por vícios formais existentes à época em que foram praticados. Pontes de Miranda é explícito a propósito, quando comenta igual dispositivo constante do art. 181 da Constituição: "Quando se diz que os atos de algum poder, praticados no passado, em virtude de alguma regra jurídica de competência, não podem ser objeto de apreciação judicial, tal enunciado não pré-exclui a competência da Justiça para verificar se o ato foi praticado com observância ("com base") ou se a resolução foi tomada com a observância ("fundada") do estatuto que menciona".22 Este é, pois, o primeiro sentido da norma (c) do art. 3." da Emenda 11, a qual estatui a exclusão de apreciação judicial os atos praticados com observância dos Atos Institucionais e Complementares.
Poder-se-ia contra-argumentar, no entanto, dizendo-se que os próprios Atos Institucionais revogados continham a regra de exclusão de apreciação pela Justiça dos atos praticados, o que os punha acima de qualquer legalidade. Isto, porém, seria conceder aos atos revolucionários um caráter de arbítrio total que iria contra até mesmo o espírito revolucionário de 1964, que buscava a institucionalização de uma ordem nova. Afinal, como diz Miguel Reale, o poder, quanto mais concorre para a positivação do direito, mais se prende e se delimita pelo direito declarado. 2S Nem mesmo o estado nazista, com toda a arbitrariedade totalitária que o caracterizou, eximiu-se de um mínimo de submissão formal ao "direito" por ele declarado.24 Em consequência deve-se reconhecer que os próprios Atos Institucionais, mesmo contendo o dispositivo da exclusão, não o estatuíam a pré-exclusão da competência da Justiça para verificar a legalidade do ato praticado com base neles. Isto, ademais, decorre do sentido mesmo das chamadas normas de competência que são, no dizer de Ross25 normas de conduta indiretamente formuladas, posto que têm por conteúdo imediato as condições para o estabelecimento de outras normas. Nestes termos, elas têm por efeito a anulabilidade, quando as condições não são respeitadas, ou a responsabilidade, quando ocorrer abuso. Se uma norma de competência não tem nenhum destes efeitos então, diz Ross, ela não é norma jurídica, mas apenas um ato de força, um ato de imposição de vontade que não estabelece pauta de espécie alguma; é mera coação.
Do exposto decorre até agora que o art. 3.° da Emenda 11 revogou os Atos Institucionais e Complementares, ressalvando os efeitos dos atos praticados com base neles, os quais ficam excluídos de apreciação judicial, obviamente, desde que a sua legalidade intrínseca tenha sido respeitada. No caso, porém, à exigência de interpretação restritiva nos obriga a ir mais além. Senão vejamos.
Há uma diferença entre o art. 173, da Constituição de 1967, o art. 181, da reformulação da Emenda 1/69 e o art. 3." da Emenda 11. O art. 173 aprovou e excluiu de apreciação judicial os atos praticados pelo Comando Supremo da Revolução, bem como outros atos de autoridades instituídas, com base nos Atos Institucionais e Complementares de ns. l, 2, 3 e 4. O art. 181 aprovou e excluiu de apreciação judicial os atos com base nos Atos Institucionais e Complementares, sem especificações, salvo a menção expressa ao AI/12. O primeiro encerrou a série revolucionária. O segundo a deixou em aberto, ademais que, no art. 182 mantinha o AI/5. O art. 3.° da Emenda 11, à semelhança do art. 173 e em contraste com o art. 181, também encerrou a série revolucionária. Mas, à diferença do art. 173, foi ato do poder reformador, enquanto aquele foi ato do poder originário.
No art. 173, com caráter de excepcionalidade, pôs-se uma pedra no passado. Daí por diante, tínhamos uma nova ordem constitucional. Não havia necessidade de qualquer menção a eventuais compatibilidades. Foi um ato originário, autônomo e incondicionado, que simplesmente instaurou uma ordem nova, com incidência plena. Já o art. 3." da Emenda 11, ato do poder reformador, reportou-se à Constituição Federal e, expressamente, revogou os Atos Institucionais e Complementares no que a contrariassem. Esta menção é importante e uma justificada e autêntica interpretação restritiva tem de atentar para este detalhe.
8 Conclusão
Em face do exposto, resta-nos concluir. Propusemo-nos o exame exegético do art. 3." da Emenda 11. Algumas premissas foram, para isso, estabelecidas. Procuramos mostrar que a norma revogadora nele constante era seguida de duas outras que constituíam norma nova. Por ser o poder que as estabeleceu, de natureza reformadora, deveria ele subordinar-se aos ditames da Constituição Federal, sobretudo quanto aos chamados limites explícitos e implícitos. Dentre estes últimos, é de aceitação clara o respeito aos direitos fundamentais.
Note-se, no entanto, que a análise não procedeu a nenhuma avaliação de caráter ideológico da ordem constitucional. Isto é, procuramos não emitir juízos de valor sobre a ideologia constitucional vigente. Apenas descrevemos esta ideologia, em suas variantes na Constituição e nos Atos Institucionais, como instrumento de análise. Na verdade, centramos a interpretação no telos imanente a duas situações constitucionais opostos pelos seus objetivos: o da normalidade estrutural, típica do constituinte de 1967 e do poder reformador da Emenda 11, e o da excepcionalidade conjuntural, típica do poder revolucionário dos Atos Institucionais e da Emenda 1/1969.
Em vista destas duas situações constitucionais, que conviveram, em muitos momentos, fizemos ver que, em 1967, o constituinte originário excepcionou efeitos de atos com base nos Atos Institucionais e Complementares, mas não fez desta exceção um princípio geral da Constituição. O mesmo espírito prevaleceu na Emenda 11. Como, porém, neste caso, tínhamos um poder reformador, este teve de se conformar aos limites da Constituição. A exceção que estabeleceu tem, pois, contornos próprios. Em face dos pressupostos, são as seguintes as conclusões a que chegamos:
1) Para todo e qualquer caso, como bem diz Pontes de Miranda, a ressalva da apreciação judicial não pré-exclui o exame da legalidade dos atos, mormente porque o texto da Emenda 11 é claro em afirmar que os referidos atos deveriam ter sido praticados com base nos Atos Institucionais e Complementares.
2) Não se pode esquecer que a Emenda 11 revogou os Atos Institucionais e Complementares apenas no que contrariassem a Constituição Federal; ora, no que com ela compatíveis, foram mantidos e, pois, convalidados; mas, se foram convalidados, é porque estão conformes com os seus preceitos, não podendo ter gerado efeitos contra os princípios constitucionais, sob pena de os ter integrado de forma principiologicamente contraditória. Nestes termos, parece-nos que a exclusão de apreciação judicial não pré-exclui a competência da Justiça tanto para verificar aquela compatibilidade, como também para examinar, de caso para caso, se, na produção dos efeitos, os atos com base na parte compatível dos Atos revolucionários, agora integrados, não feriram a Constituição Federal da qual fazem parte num todo coerente.
3) Por último, quanto à parte incompatível e revogada, os efeitos dos atos praticados com base nela não só não estão pré-excluídos, com respeito à competência formal, mas também quanto à eventual violação de direitos fundamentais declarados na Constituição Federal. Um entendimento diferente deste estaria concedendo ao poder reformador a possibilidade de contrariar a Constituição naquele cerne inviolável que lhe dá um mínimo de sentido aceito pelo constitucionalismo brasileiro, o qual se reporta à Declaração de 1789, na França, cujo art. 16 dizia expressamente: "Toda sociedade na qual não está assegurada a garantia dos direitos nem determinada a separação dos poderes, não tem Constituição". Ou seja, um poder reformador, depois de ter-se submetido à Constituição, revogando disposições contrárias a ela, não poderia deixar permanentes efeitos que a violentam na sua essência mínima: a vida, a liberdade e a propriedade.26 Quando, portanto, se estabelece a exclusão da apreciação judicial não se pode pré-excluir a competência da Justiça para verificar se os atos foram praticados com aquele mínimo: o respeito aos direitos fundamentais. Outra exegese colocaria o poder reformador acima das limitações implícitas à sua competência.
NOTAS
1.Hans Kelsen, Allgemeine Theorie der Normen, Viena, 1979, p. 84 e ss.
2.Tércio Sampaio Ferraz Júnior, Teoria da Norma Jurídica, Rio, 1967, n. 3.8.
3.Comentários à Constituição Brasileira, S. Paulo, 1973, vol. III, p. 231.
4.Da Revolução à Democracia, S. Paulo, 1977, p. 41.
5. Manoel Gonçalves Ferreira F.°, Curso de Direito Constitucional, S. Paulo, 1984, p. 33.
6.Tercio Sampaio Ferraz Jr., ob. cit., p. 139 e ss. A teoria das normas-origem, que desenvolvemos fundados em Hart, von Wright e Capella, tenta resolver o problema da multiplicidade de fontes primárias e incompatíveis num mesmo ordenamento, cujo sistema prescinde, então, da hipótese de uma única norma fundamental (Kelsen) para formar um todo coeso, como é o caso específico do regime constitucional brasileiro em que conviviam uma Constituição e Atos Institucionais revolucionários.
7. Manoel Gonçalves Ferreira F.°, Comentários, vol. III, p. 227.
8. Ver Niklas Luhmann, Macht, Stuttgart, 1975.
9. Manoel Gonçalves Ferreira F.°, Curso, p. 35.
10.Miguel Reale, Teoria do Direito e do Estado, S. Paulo, 1970. p. 340.
11.Cf. Alf. Ross, El Concepto de Validez y Otros Ensayos, B. Aires, 1969.
12.Curso de Direito Comparado — O Poder Constituinte, S. Paulo, 1974, 1/150.
13.Nelson de Sousa Sampaio, O Poder de Reforma Constitucional, 1961, p. 75 e ss.
14.Nelson de Sousa Sampaio, ob. cit., p. 94 e ss.
15.Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio, 1979, p. 230.
16.Maximiliano, ob. cit., p. 198.
17.Maximiliano, ob. cit., p. 313.
18.Karl Loewenstein, Verfassungsrecht und Verfassungspraxis der Vereinigten Staaten, Berlim, Gottingen, Heidelberg, 1959, p. 510.
19. Comentários, 111/85.
20.Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda n. l de 1969, V/105.
21.Pontes de Miranda, Comentários, VI/392.
22.Pontes de Miranda, Comentários, VI/425.
23.Miguel Reale, Teoria Geral de Direito e do Estado, p. 340.
24.Hans Peters, Geschichtliche Entwicklung und Grundfragen der VerfaMOIlg, Berlim,
Heidelberg, New York, 1969, p. 102 e ss.
25.Alf. Ross, Sobre el Derecho y Ia Justicia, B. Aires, 1970, p. 50.
26.Loewenstein, ob. cit.. p. 512.
Digitação corrigida por Luis Fernando Santos das Neves.