Tercio Sampaio Ferraz Jr
A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, finalmente, está realizando sua reunião, após uma situação patética, às voltas com os empecilhos que lhe foram postos pelo governo. O local foi achado, mas sua busca, quase de chapéu na mão, foi um tanto quanto deprimente. A reitoria da USP, por exemplo, sem saber o que fazer, optou pela saída diplomática tendo consciência de que havia pressa em se definir o lugar do encontro, alegou impossibilidade de uma resposta a curto prazo. A reitoria da PUC, por sua vez, foi mais direta: ofereceu seu campus, desde que o governo não se opusesse.
Não há dúvida de que, hoje, se está apertando o cinto da ciência. Primeiro, foram os rebaixamentos nos níveis salariais, que os professores das universidades oficiais partilham com os demais funcionários públicos. Depois, vieram os cortes nas verbas destinadas à pesquisa; em seguida, as pessoas alfabetizadas foram brindadas com a censura na importação de livros e periódicos. Agora o que se viu foi o boicote a uma reunião tradicionalmente realizada entre os cientistas brasileiros, tanto os da área de humanas quanto os da área de exatas. Mas por que é que se teme o homem debruçado sobre livros e experiências? Por que se encara a universidade como um centro potencial de subversão da ordem política? Em que medida uma reunião de cientistas chega mesmo a se constituir numa ameaça a não se sabe bem o quê?
Essas questões nunca foram tão atuais e a verdade é que as relações entre a ciência e a polí- tica jamais foram muito estáveis. A História, nesse sentido, está cheia de exemplos, quase todos tristes — como o de Sócrates, condenado a beber cicuta e a morrer em nome da verdade que ensinava. Ou o de Galileu, queimado por não saber como negar o movimento da Terra, tal como descobrira. Ou, então, o de Descartes, banido da própria pátria, tendo de morrer no desterro. Por isso mesmo, as grandes e mais antigas universidades alemãs sempre foram localizadas em pequenos burgos, a uma relativa distância da sede política, dos feudos a que pertenciam, uma vez que os príncipes — ainda que homens esclarecidos e cultos— não viam com bons olhos a presença da intelectualidade junto aos governos.
A história do conflito entre a ciência e a política é antiga e complexa. No seu transcurso, os que perseguem e os que contam a verdade sempre tiveram consciência dos riscos de sua atividade. Enquanto não interferiam no curso do mundo, eram cobertos de ridículo, apontados como "poetas" e "românticos distraídos"; homens sem os pés no chão. No entanto, quando forçavam seus concidadãos a levá-los a sério, procurando pô-los a salvo do engano e das ilusões, corriam o risco de vida. Não que sua própria atividade fosse a política. Mas sim pelo fato de que ela repercutia politicamente, todas as vezes em que se tornava uma pedra no caminho do agente político.
Apesar de tudo, as academias, os centros de estudo, pesquisa e ensino, e as universidades, de há muito foram reconhecidas pelo domínio político como instituições exteriores a luta pelo poder. Mas esse reconhecimento, nos dias de hoje, tende a ser-camuflado pela preeminência da pesquisa tecnológica, sobretudo das ciências naturais, tornada vital para o desenvolvimento e sobrevivência da sociedade.
Por isso, não há, atualmente, governo que negue a utilidade social e técnica da ciência. Essa sua importância, porém, não é diretamente política. As ciências humanas, a filosofia, e as letras - cuja obrigação é a de descobrir, conservar e interpretar a verdade dos fatos humanos — têm uma relevância política maior. Ora, como refúgio da verdade, todas elas estão expostas à intervenção do domínio político, que nem sempre tolera a objetividade, esta curiosa paixão pela integridade intelectual a qualquer preço, que está na raiz da ciência, e que faz o cientista muitas vezes dizer verdades bem desagradáveis ao político.
Isso não justifica, contudo, as reações do governo brasileiro à realização do encontro promovido anualmente pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. O Estado promove, exalta e sente a utilidade da pesquisa científica na área das ciências exatas e naturais. Todavia, pode chegar a ver como incerto e politicamente perigoso o pronunciamento de cientistas sociais que, já na última reunião da Sociedade, não deixaram de criticar programas políticos, sociais e econômicos governamentais.
Mas, dificultar ao máximo a realização do tradicional encontro é, da parte do domínio político, perder a sensibilidade para a importância desses homens e dessas instituições, sobre os quais ele não detém nenhum poder. Ou seja, de fato, materialmente, esses homens e essas instituições dependem, seja como for, da boa vontade do governo. No entanto, a verdade que eles buscam -- o compromisso que têm com a objetividade — tem de estar acima do campo de batalha dos interesses parciais e antagônicos, onde contam o prazer e o lucro, o partidarismo e a ânsia de domínio.
Confundir uma coisa com outra, portanto, é institucionalizar esta cegueira em que mergulhamos, quando perdemos todos os critérios e não sabemos mais nos localizar num mundo em mudança. Por isso, a civilização ocidental reconheceu, ao menos em países governados constitucionalmente, a importância da busca desinteressada pela verdade como atividade de proa para seu desenvolvimento material e espiritual.
É triste, sem dúvida, o espetáculo de urna entidade — como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência — caminhando rudemente aqui e ali, na busca de uma sede para realizar seu encontro anual. A consciência deste drama foi bem expressa pelo professor Luiz Edmundo de Magalhães, ao afirmar que, se a USP e a PUC não cedessem algum lugar, "a SBPC não procuraria mais". "Trata-se de uma questão de dignidade. A entidade não é uma sociedade de aprendizes, mas de cientistas."
Tudo isso, creio, só pode conduzir a um texto de Hobbes, um insuspeito teórico do poder, que soube observar, realisticamente, a propósito das relações entre ciência e política, este aspecto: "Não duvido que se a equivalência dos três ângulos de um triângulo a dois ângulos de um quadrado fosse algo contrário ao direito de soberania de algum homem, ou aos benefícios de homens que têm o poder, não duvido que esta doutrina tivesse sido, não controvertida, mas suprimida, ainda que pelo incêndio de todo os livros de geometria, na medida das forças e da capacidade do interessado".
Fonte: Sexta-feira 8-7-77 — o Estado de S. Paulo.