Como entender esse Decreto-Lei?

 Tercio Sampaio Ferraz Jr

Se a legislação brasileira que proíbe a importação de bens de capital e produtos pe­sados, que já são fabricados no Brasil é tradicional e suficientemente clara, como en­tender, então, a validade for­mal e material do decreto-lei do Executivo que autorizou o governo federal a comprar equipamentos ingleses para a construção da Ferrovia do Aço?

Embora a questão tenha sido levantada nos meios jurí­dicos no instante em que o relacionamento entre o setor público e o setor privado se mostrava extremamente ten­so, poucas foram as respostas conclusivas. Para alguns, es­se é um problema exclusiva­mente de Direito Administra­tivo, uma vez que toda a autorização para importar é de responsabilidade direta da CACEX. Para outros, esta é uma discussão fundamental ao Direito Constitucional, na medida em que a atual Cons­tituição formalmente impede os decretos-leis de derroga­rem leis ordinárias.

No entanto, há quem pre­fira análises mais abrangen­tes e menos formais, ava­liando a aplicação da Lei da Similaridade, no caso da Fer­rovia do Aço sob uma pers­pectiva não apenas jurídica mas, igualmente, econômica e política.

O problema não tem contornos legais, uma vez que é muito mais amplo, na me­dida em que o País está na dependência direta de multi­nacionais com sede em nações desenvolvidas. Conse­quentemente, todos os víncu­los jurídicos desaparecem diante das atuais necessida­des da economia brasileira e das pressões externas. Foi as­sim no episódio do Banco Mundial e da Companhia Siderúrgica Nacional. Tem sido assim no caso da Ferrovia do Aço. E será assim em outros grandes projetos.

A opinião é do advogado paulista Dalmo do Vale Nogueira Filho, especialista em Direito Econômico e profes­sor da Escola de Administra­ção de Empresas da Funda­ção Getúlio Vargas. Para ele, além de todos estes aspectos, haveria ainda um outro fator pouco mencionado até agora nas diversas análises já efetuadas: a passividade do empresariado brasileiro nos últi­mos anos, cuja submissão acabou permitindo ao go­verno baixar inúmeros decre­tos ao nível da política econô­mica a curto prazo, sem qual­quer resistência.

Também o advogado Tércio Sampaio Ferraz Jr., pro­fessor das Faculdades de Di­reito da USP e da PUC, tem uma visão bastante abran­gente. Partindo da tese de que o moderno Direito Cons­titucional ainda não se apare­lhou para enfrentar a veloci­dade das transformações eco­nômicas e das mutações so­ciais, ele afirma que o resul­tado tem sido a criação de certas tensões que surgem ao nível das empresas, põem de lado o indivíduo como tal e ainda tumultuam o sistema de mercado tradicional.

— Deste modo, a fixação dos preços acaba sendo fruto de uma atuação direta dos grandes empresários, ca­pazes de manobrar ampla­mente, quase sempre em fun­ção de critérios de utilidade. Daí a formação de um Direito Econômico preocupado não apenas em garantir arbitral-mente o indivíduo contra o poder econômico, como também em tutelar esse mesmo poder contra o Estado.

A análise de Sampaio Ferraz Jr. concentra-se espe­cificamente sobre o artigo 163 da atual Constituição, o qual confere à União a faculdade de intervir na economia, limi-tando-a a casos expressos. Segundo ele, ao facultar a ação estatal, o texto constitu­cional assume uma posição ideológica que exclui as cor­rentes estatizantes, tanto totalitárias como não-totalitárias. Por outro lado, o legislador constitucional pro­põe uma intervenção em ter­mos de um planejamento apenas parcial, conforme cri­térios de eficiência e respeito aos direitos individuais. Tudo isso, entretanto, conduz a um dilema.

— O artigo 163 faculta a intervenção na medida em que não a impõe juridica­mente. No entanto, esta intervenção acaba transformando-se em regra, gerando uma quase obrigação da ação esta­tal, seja por motivos de segu­rança nacional ou de inefi­ciência da iniciativa privada em certos setores. Estes dois motivos configuram conceitos discricionários, sendo fá­cil apontar o caso de sua apli­cação, mas demasiadamente difícil descobrir quando não cabe a intervenção.

Para ele, a Constituição não revela quem deve interpretar os conceitos de segurança e eficiência, o que permite pensar que tal função caberia ao próprio intervertor. Além disso, ela também não explica como tudo isto deve ser feito, exigindo-se apenas que o seja por uma lei federal, o que não exclui possibilidade de normas vagas (especificadas por decretos-leis, resoluções, portaria e pareceres).

— Ampliando desta maneira o jogo legal, a Constituição acaba por conceder ao Estado limites puramente formais, que se revelam potentes em termos operacionais. A verdade é que esses 1imites foram concebidos como instrumentos capazes de regular relações até certo ponto estáveis, não estando preparados para transformações demasiadamente rápidas.

Segundo Sampaio Ferraz Jr., é justamente isso que estaria acontecendo no episódio da Ferrovia do Aço, uma vez que toda a responsabilidade pela aplicação da Lei e Similaridade foi praticamente deixada a um único órgão do governo — a CACEX:

Como se vê, esta inadequação entre a norma e o texto conduz a uma curiosa situação em que os verdadeiros limites constitucionais, intervenção estatal são deslocados para a própria práxis política e econômica do Estado, no sentido de que são obrigados a ver como ele age para, então, saber o que dele se pode exigir.

Data: 1976.