Tercio Sampaio Ferraz Jr.
A questão do sistema jurídico também chamada de questão da unidade sistemática do Direito de longa data vem interessando a teoria jurídica. Esta, por sua vez, nem sempre tem se manifestado coerentemente sobre o problema. Arthur Baumgarten, por exemplo, (cf. Die Wissenschaft vom Recht und ihre Methode, 3 vols., Tübingen, 1920, 1.°, p. 364), ao discuti-la, mostra-se perplexo. O sistema jurídico, diz ele, mais parece um destes guias de viagem, em cuja leitura ora encontramos informações sobre câmbio e moeda, e logo outras sobre geografia e história e arte e cultura, etc. Para a antiga "Jurisprudência dos Interesses", escola de larga influência na metodologia jurídica, o Direito não constituía unidade sistemática de espécie alguma. A moderna "tópica jurídica" de Viehweg, Esser, Ballweg, Perelman e outros, põe radicalmente a questão, mostrando-se bastante cética quanto à possibilidade de se obter uma unidade sistemática, de natureza cabal e abarcante do Direito. Isto, entretanto, não os leva a negar importância ao conceito de "sistema" para a teoria jurídica.
De fato, não é preciso ir muito longe para comprová-lo. Basta atentar para as técnicas de interpretação ainda hoje aceitas e usadas pela hermenêutica jurídica, para notar-se a posição de relevo ocupada pela noção de "sistema". Horst Bartholomeyzik, num pequeno manual destinado aos que se iniciam na arte da interpretação jurídica (cf. Die Kunst der Gesetzauslegung, Frankfurt/M, 1971, p. 32), lembra o seguinte conselho: na leitura da norma legal, nunca leia o segundo parágrafo sem antes ter lido o primeiro, nem deixe de ler o segundo depois de ler o primeiro; nunca leia um só artigo, leia também o artigo vizinho. A ideia de um sistema legal, aqui presente, aponta, porém, para uma unidade mais profunda, na medida em que os diferentes processos interpretativos devam se complementar e se exigir mutuamente. Na verdade, mesmo entre aqueles que se mostram céticos sobre a possibilidade de um sistema jurídico, reconhece-se que a ordem jurídica não pode dispensar a unidade sistemática. E se estamos aqui a falar no sistema jurídico como um sistema de enunciados de dever ser, na formulação de Karl Engisch (cf. Die Einheit der Rechtsordnung, Heidelberg, 1935, p. 4 ss.), também não podemos esquecer, embora a questão se complique sobremaneira, do sistema jurídico como o conjunto das instituições, judiciárias e administrativas, ligando o conjunto das normas à própria vida social por ele regulada, bem como do sistema da Ciência do Direito ou Dogmática Jurídica.
A multiplicidade dos aspectos parece dificultar a abordagem. Um levantamento das diversas concepções de sistemas ali implicadas, historicamente alinhadas no sentido da cronologia, nos conduziria, talvez, a uma sequência inexpressiva, a um amontoado de opiniões incapaz de nos guiar no labirinto do problema. Como não é esta a, nossa intenção, restringimo-nos à análise e investigação historicamente localizada de um só autor, cujas reflexões, no início deste século, tiveram o dom de mostrar os vários aspectos do problema num quadro definido. Referimo-nos a Emil Lask, pensador neokantiano da Escola de Baden, cuja obra representa um meio caminho entre o jus-naturalismo e o positivismo, entre a Escola Histórica, e a fenomenología, entre as diversas formas de empirismo jurídico e o culturalismo nascente. Ela nos permite, assim, uma investigação histórica do problema, que não obedece a uma cronologia estrita e restritiva. Ao contrário, dá margem a um encadeiamento sincrônico das diversas posições que marcam a concepção de sistema da teoria jurídica moderna.
Emil Lask morreu jovem, na Primeira Guerra Mundial. Nascido em Wadowice, em 1875, viveu sua infância e adolescência em Berlim. Seus estudos superiores foram realizados em Heidelberg, tendo começado um curso de Direito, que não acabou, pois, realizando, concomitantemente, um curso de Filosofia, acabou por obter um doutoramento neste campo e, em 1905, com a publicação de seu trabalho "Rechts-philosophie" (Filosofia do Direito), obteve a livre docência, sendo, pouco depois, chamado a substituir Wilhelm Windelband na cátedra de Filosofia da mesma Universidade.
Seu magistério não deixou de ter a sua repercussão. Rickert, que foi seu mestre, sentiu-se influenciado pela finura de seu pensamento, chegando mesmo a modificar alguns pontos de vista de sua obra, que Lask tão sutilmente criticava. No campo jusfilosófico, sua obra teve imediata influência sobre Gustav Radbruch, que o considera o fundador do chamado Culturalismo Jurídico, de largas consequências para o Direito Penal alemão. Sua obra filosófica (Die Logik der Philosophie und die Kategorien'ehre, 1910, e Die Lehre vom Urteil, 1911) alcançou as especulações de Luckacs, Mannheim e mesmo Heidegger, sem mencionar a obra de Max Weber que pertenceu ao seu círculo, quando em Heidelberg. Morreu em 1915, como soldado, aos 40 anos.
Este artigo, que oferecemos à meditação do leitor, propõe-se, inicialmente, a um levantamento resumido da problemática em que o pensamento de Lask se insere, para depois passarmos à consideração do tema, qual seja, à noção de sistema jurídico. É claro que, dadas as proporções do assunto, nossa discussão ficará limitada a um ou dois pontos centrais. A concepção de sistema jurídico envolve uma concepção do próprio Direito no sentido de uma delimitação do seu âmbito, conforme as preocupações típicas do neokantismo, mas sempre atuais, se nos colocamos na perspceíiva da moderna Filosofia da Ciência. Lask é um dos primeiros jusfilósofos a tomar consciência da relação entre o Direito e a Ciência do Direito, da entremeação que ocorre entre ambas, quando falamos em Sistema Jurídico. Só por isso, um estudo de seu pensamento se justifica, porque nos pôs em meio a uma das questões cruciais da Filosofia do Direito de nosso tempo, como se verá a seguir.
1. A concepção pluridimensional do Direito e sua importância.
É preciso que se diga, antes de mais nada, que a concepção de sistema jurídico de Lask mais revela o impasse da teoria jurídica moderna do que a capacidade de superá-lo cabalmente.
Lask capta a problemática jurídica de seu tempo, resumindo-a em três direções fundamentais. Em primeiro lugar a tentativa da Escola do Direito Natural que reclamava, para a investigação jurídica, uma referência expressa a uma experiência transcendente ao próprio Direito. Em segundo lugar, os movimentos que ele denomina, grosso modo, de empiristas, caso em que o Direito é reduzido à fatalidade histórica, descambando-se em última análise para uma visão positivista e legalista. Por fim, o neokantismo de Marburgo, que intentava uma concepção conciliadora, mas não integrada das demais, resvalando para um formalismo transcendental desligado da experiência concreta.
Diante disto, Lask procura repensar o problema jurídico. A categoria central que alimenta suas investigações é a da validade. Observa, assim, uma incapacidade nas tendências tradicionais para a captação da validade peculiar ao Direito. Todas elas acabam por estudá-la, dissolvendo-a em fundamentações teoréticas emprestadas de outras regiões epistemológicas. Assim, as Escolas de Direito Natural insistiam numa validade racional, cujo fundamento, ademais, é extra-jurídico, tendo de ser encontrado numa esfera superior e abarcante, de natureza ética. Lask nota aí uma confusão entre o fundamento da validade da norma e o seu conteúdo. Para os jusnaturalistas, uma norma jurídica vale porque tem um determinado conteúdo: vale porque é racional e é racional pelo seu conteúdo. Esta concepção da validade da norma é, ao mesmo tempo, um critério para distinguir entre as normas "verdadeiramente" jurídicas e as que o são apenas na aparência. Lask tenta pôr a descoberto as limitações deste critério com a ajuda de dois conceitos emprestados do positivismo: o de positividade formal e material. A positividade formal da norma jurídica, reconhece ele, ou seja, o seu caráter obrigatório, resulta, no Direito Natural, da sua racionalidade: uma norma, cuja posição nos conduz a consequências logicamente absurdas não teria validade no sentido de ser obrigatória. A validade em termos de positividade formal significaria, pois, validade lógico-racional. A positividade material refere-se ao conteúdo da norma. As Escolas de Direito Natural admitiriam a possibilidade de uma dedução completa e perfeita dos conteúdos jurídicos a partir de um conjunto de princípios fundamentais, donde a concepção da norma jurídica como um enunciado cujo conteúdo manifestaria uma evidência racional incontestável.
Nas concepções que Lask chama de empiristas, o Direito é reduzido à realidade empírica, dela extraindo as suas condições de validade. Aqui se mesclam diversas tendências que buscam sua fundamentação teorética em outras ciências, como a psicologia, a sociologia, a biologia, a história. A norma jurídica é entendida como expressão de uma vontade que tem, por contrapartida, o reconhecimento por parte dos indivíduos que vivem em sociedade, os quais, através de um comportamento contínuo e habitual, respeitam as normas. O conceito de reconhecimento tem aqui um papel importante, qual seja, o de mostrar como as estruturas da sociedade ou psíquicas dos indivíduos podem articular-se em funções que se dão a si mesmas, pelas normas, condição de possibilidade de existência e limites de exercício. Algumas destas concepções valem-se, por exemplo, de um modelo econômico, no qual o homem é um ser dotado de desejos e necessidades que podem surgir, na vida social, sob a forma de conflitos, cuja solução provoca o aparecimento de regras obrigatórias. Esta tendência Lask observa na antiga Jurisprudência do Interesse que considera o Direito como proteção de interesses.
O neokantismo de Marburgo redescobre para o Direito a dimensão transcendental. Rompe-se, assim, com os diversos empirismos que viam a norma como expressão simples de uma realidade fática primária. Apoiando-se na distinção kantiana de forma e matéria, Stammler concebe a vida social e econômica do homem como matéria, da qual a ordem jurídica é forma, no sentido de ser a priori lógico-transcendental. O Direito positivo, nota Stammler, é constituído de conteúdos condicionados de vontade, os quais têm a qualidade do "querer jurídico". A validade do Direito, contudo, nada diz da "justeza" do seu conteúdo. A validade, isto é, a possibilidade da imposição da norma, existe apenas quando um "querer jurídico" tem o poder de atuar sobre os seres humanos. Sua "justeza" determina-se em relação à "ideia de Direito". Estabelecendo, entretanto, como faz, de um lado, um abismo entre a "ideia" e o "conceito" de Direito, e acentuando, de outro, a relação meramente formal entre o "conceito" e a validade positiva, Stammler esvazia a própria norma jurídica.
É neste quadro que se articula, para Lask, a sua proposta de uma compreensão integral do Direito. Apoiando-se nas teorias de Windelband e Rickert, observa que o fenômeno jurídico não é um simples dado, mas uma estrutura complexa que tem de ser analisada. Rikert, voltando-se para a problemática axiológica, havia distinguido, no Direito, um aspecto real e um valorativo, ao mesmo tempo que os relacionava. Neste relacionamento o fenômeno jurídico adquiria o seu estatuto próprio, como um objeto pertencente ao mundo intermédio da cultura, o qual resulta da referibilidade do mundo real ao mundo dos valores. Estes dois mundos não se identificam e têm natureza diversa. O valor, diz Rickert, não é, mas vale. A realidade é um consistente, é. Por sua vez, a ordem jurídica é um "fato cultural", uma realidade correspondente a um valor. Da validade do valor não se pode deduzir a existência da ordem jurídica positiva. Daí a negação das teorias jusnaturalistas. O Direito, enquanto algo referido a valores, é algo real. Apenas o valor, ao qual ele se refere, vale. Não se pode, porém, negar que a ordem normativa tem também uma validade. O sentido desta validade, porém, permanece, no pensamento de Rickert, bastante obscuro.
O empenho de Lask revela-se, nestes termos, como uma investigação do sentido do valor jurídico, da significação peculiar que toma a sua validade, distinguindo-a de outras.
Lask vê esta questão, em princípio, como uma questão metodológica. Para ele, o caráter peculiar da metodologia jurídica deve repousar no sentido cultural da Ciência do direito, em termos de Rickert. O seu procedimento deve ser o da referibilidade a valores. Da Ciência do Direito para ele a Teoria Social do Direito que tem por objeto a delimitação dos fenômenos jurídicos na sua faticidade, selecionados a partir de uma perspectiva de valor, e a pesquisa da eficácia social da ordem normativa. O Direito aparece, do ângulo da Ciência do Direito propriamente dita (jurisprudência) como um reino de significações, distintas dos seus suportes, embora a eles relacionadas.
O isolamento teorético da norma jurídica, percebe Lask, é tarefa deveras complicada. Ele nota o caráter complexo dos fenômenos jurídicos, onde estão confundidos conteúdos abstratos e suportes concretos. Daí a constante tentação sofrida pelo jurista de entender a norma, reduzindo-a aos elementos aos quais ela se refere. Um isolamento possível, então, se partimos de uma consideração global do Direito, segundo um procedimento especial que ele denomina de "dualismo metódico". Lask reconhece que o termo Direito só cabe a um fenômeno real, empírico, que se desenvolve historicamente. Real significa para ele algo que é. Por de trás deste "é", esconde-se, entretanto, uma estrutura complexa, que compreende dois componentes fundamentais; o momento da forma válida "ser" e o momento "daquilo que é", o "ente". Lask chama-os de momento "formal" e "material". A "realidade", portanto, não é uma massa amorfa de acontecimentos e coisas (como para Rickert), mas tem sempre uma "forma". O momento "material" da "realidade jurídica" é percebido como o "viver que estabelece finalidades", ainda não envolvido por nenhuma "forma". Este "material", conforme a "teoria dos dois elementos e do valer-para", está aberto para uma "forma" que "vale-para" ele. Esta "forma" que dá validade ao "material" jurídico chama Lask de "norma".
A norma jurídica, para Lask, é pois uma "forma" que "vale". Na totalidade de "sentido" composta por "forma" e "material", a "forma" é a responsável pela "validade". Embora toda e qualquer "forma" constitua um "valer", nem todas as "formas" valem do mesmo modo. Aquilo que distingue o "valer" das "formas" e, pois, as "formas" umas das outras, é o "material" para o qual elas "valem". Assim, a "forma" de validade mais geral é a categoria do "valer" (Gelten), que vale-para o "material" mais amplo que é a "matéria em geral". Mas entre estes dois extremos, existem camadas constituídas por especificações do "valer", ditadas por "materiais" específicos, cujo relacionamento é historicamente variável. Assim, o "valer" puro e simples, em si mesmo uno e imutável, experimenta, ao "valer-para" algo, uma certa historicidade. Não se trata de uma "forma absoluta" com "conteúdos variáveis", à moda de Stammler, pois, para Lask, sendo toda "forma" um "valer-para", donde sua ligação com um "material", o próprio "valer" se torna histórico.
Ora, o componente "formal" da realidade jurídica, a norma, é um produto específico no processo de diferenciação das "formas". Trata-se de um "valer” dotado de uma nuance significativa que aparece quando este "valer" é referido ao "reconhecimento a ele devido por parte de um comportamento pessoal". Em outras palavras, a norma é um "valer-para" a esfera do comportamento humano. Neste ponto, entretanto, ela não se distingue ainda da norma moral, por exemplo. O que lhe dá a especificidade do seu "valor" é o fundamento desta especificidade, que Lask localiza na "vontade da comunidade". Esta não é responsável pelo próprio "valer" da norma, mas pelo modo específico do "valer", que se torna, então, histórico. Nestes termos, uma norma, cuja validade foi especificada, jamais perde o seu "valer", embora possa perder sua eficácia, sua vigência, seu fundamento num valor, tornar-se mera norma histórica de um acervo cultural ultrapassado.
Esta análise, contudo, não esgota o fenômeno jurídico. Esta estrutura "norma"-"viver que estabelece finalidades" não se dá imediatamente ao teórico do Direito. Entre este e a estrutura "norma-viver" introduz-se uma "categoria teorética", uma "forma" da Ciência. Isto é, a relação estrutural "norma-viver" torna-se "material" de uma outra "forma", constituindo, assim, uma nova relação estrutural. Esta nova relação estrutural não se distingue facilmente da primeira, donde o risco, apontado por Lask, de o cientista do Direito (e do cientista social em geral) tomar por "realidade" as suas próprias construções. Entretanto, podemos dizer que a nova relação estrutural é mais "abstrata" que a primeira pois enquanto esta resulta do "valer" da "norma" para um "material sensível" (o comportamento do viver finalístico), aquela resulta do "valer" de uma "forma teorética" para um "material" não sensível. Por isso, diz Lask, o mundo do cientista do Direito é, imediatamente, um mundo de "significações abstratas" e, apenas mediatamente; o comportamento concreto.
Ora, em razão desta estrutura em camadas do fenômeno jurídico é que vamos colocar a questão do sistema jurídico em Lask. As conclusões a que chegamos nos mostram, em primeiro lugar, que o sistema jurídico não se confunde com o sistema normativo ou das normas. A estrutura complexa da própria norma nos obriga a falar em encadeiamento de "significações normativas", expressão esta que bem resume as múltiplas camadas dimensionais que compõem o fenómeno jurídico. Nelas se compreendem não só as normas como "formas" válidas para o "comportamento finalístico", mas também "formas" categoriais, válidas para as "formas" anteriores. Este sistema de "significações normativas" constitui uma estrutura não unitariamente hierarquizada, embora gradualmente escalonada conforme dois princípios sistematizadores, o da validade emanente e o da diferenciação material, que nos proíbem uma visão quer "formalista" à moda de Kelsen, quer "dedutivista" à moda de Puchta, quer "fática" à moda do Realismo Escandinavo de Olivecrona, por exemplo.
O estudo da obra de Lask apresenta, assim, a vantagem de mostrar os pontos críticos da questão do sistema no Direito. Alinhando-se na tradição jurídica de seu tempo, mas procurando uma visão sintética e superadora, Lask acabou por descobrir no fenômeno jurídico uma complexidade peculiar. Pela sua teoria do "valer-para", constata ele a mencionada correlação entre "formas" válidas e o "substrata do material" amorfo. Mas a heterogeneidade irredutível entre ambos tem consequências para uma visão do "sistema final", "abarcante" do Direito. Sendo "material" o princípio diferenciador das "formas", dá-se a constituição de diferentes esferas significativas, eventualmente paralelas, mas assimétricas, donde a possibilidade de se falar em sistema da Ciência do Direito, sistema da Teoria Social do Direito, sistema da História do Direito, da Antropologia Jurídica, etc., não havendo, porém, uma "forma" que seja capaz de atravessar todos os sistemas constitutivamente e instaurar o sistema jurídico como um todo acabado. A própria lógica formal, regida pela categoria da "identidade" não tem esta capacidade. Deste modo, sua concepção de sistema jurídico vai apresentar peculiaridades, que também podem ser vistas como dificuldades que toda concepção de Direito enfrenta, ao pensar-se sistemática.
2. O sistema jurídico como uma sistema plural e assimétrico.
O conceito de sistema, no Direito, está ligado ao de totalidade jurídica. No conceito de sistema está, porém, também implícita a noção de limite. Falando-se em sistema jurídico surge assim a necessidade de se precisar o que pertence ao seu âmbito, bem como de se determinar as relações entre o sistema jurídico e aquilo a que ele se refira, embora não fazendo parte do seu âmbito, e aquilo a que ele não se refira de modo algum.
Existem diferentes possibilidades de se encarar a questão. Admitindo-se, por exemplo, que todo sistema constitui uma ordem interna, podemos perguntar se o conjunto dos elementos que compõem a ordem (repertório do sistema) é fixo ou variável ou se o conjunto das regras que relacionam os elementos entre si (estrutura do sistema) é estável ou instável. Tomemos, deste ângulo, o que Kelsen chama de "sistema dinâmico" do Direito (cf. Hans Kelsen: Reine Rechtslehre, Viena, 1960, p. 196 ss.). Trata-se de uma relação hierárquica de norma de diferentes escalões. As normas constituem os elementos, o repertório do sistema. A relação entre elas é presidida pela regra segundo a qual toda norma vale em razão de outra que lhe é superior no escalão. Esta última dá validade à outra na medida em que dá competência a alguém para positivá-la. Daí se falar também em ordem escalonada de competências. Isto significa que uma norma, para ser reconhecida como jurídica, tem que passar pelo crivo da autoridade ou da vontade autorizada. Note-se que o sistema, embora de repertório ilimitado — não é possível dizer-se quantas normas jurídicas pertencem ao sistema —, tem uma ordem interna estável e fechada. Nestes termos, a entrada de um elemento "de fora", isto é, que não se submete à regra do sistema, por exemplo, a norma estabelecida por um bando de assaltantes que aterroriza uma comunidade e força-a, assim, a submeter-se, não estando posta por nenhuma vontade "autorizada" do e pelo sistema, a ele não pertence. Observe-se que Kelsen não se refere ao comportamento do bando ou à sua vontade, mas à norma por ela posta. Isto é, a ordem interna do sistema kelseniano é de normas e não de comportamentos ou vontades. Ora, o sistema assim entendido é fechado ao mundo circundante, na medida em que sua estrutura exclui variáveis no seu interior. Isto porque à regra da vontade autorizada Kelsen acrescenta uma segunda, a da plenitude do Direito, segundo a qual, as normas postas por vontades sociais ou individuais são, em razão da regra anterior, expressamente proibidas ou, em caso contrário, permitidas. Isto possibilita Kelsen afirmar que as normas postas pelos assaltantes, embora não façam parte do sistema normativo como jurídicas no sentido de normas obrigatórias ou permitidas, dele fazem parte como normas proibidas. Elas não são antijurídicas mas juridicamente proibidas. Assim, apenas num sentido figurado se pode falar de elementos que vêm "de fora". Um tal sistema constitui, pois, uma totalidade perfeita e permanente, não importando em quantas partes ele se divida. Tudo se resolve na vida interna do sistema. Entende-se, nestes termos, que Kelsen não admita a possibilidade de normas nulas, mas penas anuláveis. Assim, mesmo uma norma posta por uma vontade autorizada mas não autorizada a estabelecer aquele tipo de norma, não é a priori nula, sendo apenas anulável irretroativamente. Pensar de outro modo seria quebrar a ordem interna do sistema e, pois, a sua perfeição, a qual repousa na regra da obediência à vontade autorizada, expressa; pela "norma fundamental", e na regra da plenitude.
Neste sistema a noção de lacuna não passa de uma ficção. Kelsen reconhece apenas a existência de lacunas axiológicas ou de natureza política, o que pode ser explicado como o caso de uma norma que o sistema qualifica como proibida, mas que julgamos devesse ser permitida ou obrigatória. Vale dizer, há um comportamento que o sistema regula, proibindo-o, mas alguém deseja, por razões de política jurídica, aceitá-lo, propondo uma outra norma que o tornasse permitido ou obrigatório. Ou então se trata de um comportamento regulado negativamente, isto é, nem proibido nem obrigatório, mas que julgamos, por razões também de política jurídica, devesse ser regulado positivamente. Em ambos os casos, o sistema possui a norma que regula o comportamento. Apenas não estamos satisfeitos com o modo (positivo ou negativo) pelo qual ela o faz.
A obra de Lask não se propõe o tema da lacuna. Entretanto na concepção de sistema das significações normativas implícita em seu pensamento há subsídios para tratar da questão. Para encontrá-los, é preciso retomar alguns pontos apresentados no parágrafo anterior. Ora, foi dito que para ele, o Direito é um fenômeno complexo, uma estrutura de diversas dimensões, com um repertório variado. Na sua composição sistemática entram, pois, elementos "formais" e "materiais" que me impedem, por exemplo, de dizer que se trata de um sistema de normas, à moda kelseniana, pois os elementos "materiais" fazem parte das "significações normativas". De outro lado, as regras do sistema não são apenas "supostas", como diz Kelsen, pela Ciência do Direito, mas todas elas postas, havendo não uma correlação entre o sistema da ciência jurídica e o sistema não teórico da realidade jurídica (Kelsen, aliás, nega este segundo "sistema", pois as normas só se sistematizam graças à ciência do Direito que é quem fornece a regra da "norma fundamental" e a regra da plenitude), mas uma continuidade de um para o outro.
Tomemos um exemplo para melhor explicar. Quando dizemos que o entrelaçamento das múltiplas relações entre os membros de uma família entre si e para com a comunidade conforme um conjunto de disposições pessoais e patrimoniais constituem o Direito de Família, é preciso, segundo Lask, distinguir neste complexo diversos elementos e relações. Em primeiro lugar, cabe determinar o fator "material" de natureza "alógica", isto é, aquele fator que nunca é "forma". No caso da realidade jurídica, o comportamento imediato (não através de uma "forma" teórica) dos seres humanos perante outros seres humanos – pais e filhos e outros membros da comunidade –. Este comportamento, enquanto um “viver imediato em 'valores'”, embora não dotado de nenhum sentido teórico – por isso é “alógico” – bem como não localizado em nenhuma hierarquia axiológica – aí já haveria um “logos” –, já possui, entretanto, uma certa articulação que Lask chama de “pré-formal” e “pré-material”, o que nos permite dizer, por exemplo, que um homem, admitimos, sem nenhuma consciência jurídica, é capaz de construir uma família e “entendê-la” no sentido de pura “vivência” e não de “conhecimento”. Chamemos, com Lask, este primeiro fator de “fator-substrato”.
O "fator-substrato", para tornar-se família no sentido jurídico tem de deixar de ser massa amorfa e receber uma "forma" que lhe dará "validez". Lask não olvida que substratos "puros" são meras abstrações, pois, para ele, tudo é constituído por "forma" e "matéria". A “forma", no caso, são os diferentes dispositivos, não importa se costumeiros ou legais, que aderem ao viver em família e que nos permitem falar em família como realidade jurídica. Na expressão "jurídica" esconde-se, entretanto, um outro fator, também de natureza "formal", mas diferente da "norma". Trata-se de uma "categoria" da ciência do Direito — uma "significação jurídica" como diz Lask — que é uma "forma teórica". Podemos falar, neste sentido, no conceito jurídico de Família, isto é, no conceito da Ciência do Direito, que não está fora, mas dentro do complexo que expressamos ao falar em "Direito de Família".
Distinguidos, por obra de análise, os três fatores, é preciso mostrar, então, como eles se relacionam. O "fator-norma" não é um simples "valer", mas um "valer devido", "exigência de cumprimento". Assim, ao aderir ao "fator-substrato", a "norma", diz Lask, "esgarça" o "material alógico", empobrecendo-o como "vivência". Isto é, o "viver em família" tem nuances vivenciais que não se permeiam à "forma normativa". Isto é, embora todos os comportamentos familiares passem a estar dentro da "norma", nem por isso eles se transformam em "formas". O mundo do Direito é sempre de "formas" e de "materiais alógicos". O mesmo se diga para a relação entre a "norma" e o "conceito ou significação jurídica". Embora dentro de uma “categoria", a "forma normativa" não se torna "forma teórica". Deste modo, no complexo denominado "Direito de família", os três fatores estão presentes, referidos uns aos outros, sem se reduzirem uns aos outros. A sua referibilidade me impede de ver o Direito como um sistema apenas de comportamentos ou apenas de normas ou apenas de conceitos. Mas a sua irredutibilidade também me impede de falar em um sistema único e unitário.
Esta relação entre os três fatores é inferida a partir da teoria da irracionalidade de Lask. Este distingue, entre "nudez lógica", que é pura abstração e significa que um "material" qualquer está fora de uma "forma"; por exemplo, uma pura "vivência"; em segundo lugar temos "alogicidade" que é a qualidade de um tipo de "material", aquele que só é "material" e nunca é "forma"; por exemplo, o comportamento familiar; e, finalmente, a "não-racionalidade", isto é, a impossibilidade de se transformar um "material" em "forma" pela sua referibilidade; por exemplo, a impossibilidade de se dizer que urna norma jurídica possa ser verdadeira ou falsa só porque foi conceptualizada pela Ciência do Direito.
Com o auxílio destes três sentidos da irracionalidade acreditamos poder inferir uma explicação para a questão da lacuna, segundo Lask. Inicialmente, é preciso abandonar qualquer tipo de consideração estática do problema. Assim, qualquer tentativa que procure definir e classificar lacunas resulta insatisfatória. Tomemos, por exemplo, um célebre trabalho de Ernst Zitelmann (Luecken im Recht, Leipzig, 1903, p. 27 ss.). Assumindo a possibilidade da sua existência, ele classifica as lacunas em "autênticas" (echte) e "inautênticas" (unechte). As primeiras ocorrem quando a partir do conjunto das normas vigentes (que Zitelmann admite apenas no sentido de regulamentação positiva, isto é, expressamente obrigatório ou proibido, mas não implicitamente permitido), não é possível obter-se uma decisão para um caso dado. As segundas ocorrem quando os casos são previstos pelo ordenamento, mas a solução possível é considerada falsa ou insatisfatória. A doutrina costuma aceitar como lacuna propriamente dita apenas as primeiras, ditas de lege lata, considerando as segundas, ditas de lege ferenda, lacunas da política jurídica.
Notemos que Zitelmann, ao usar um método classificatório, não consegue perceber com clareza os aspectos "genéticos" enquanto distintos dos "sistemáticos". O sistema jurídico é visto como o conjunto das normas vigentes e dadas que, em confronto com a realidade dos casos, pode revelar-se como inadequada. É a inadequação "autêntica". Quando a inadequação se refere a possíveis avaliações que se façam da justiça ou injustiça da solução permitida, ela é "inautêntica". Subentende-se aqui que o sistema jurídico é distinto, embora se relacione ao sistema da realidade dos casos e ao sistema das avaliações possíveis. O sistema jurídico, de lege lata, tem um caráter acabado, ainda que não perfeito. O sistema da realidade, que dá a dimensão da sua imperfeição, é, ao contrário, inacabado, dinâmico, em constante mutação. O mesmo se diga do terceiro sistema. A distinção dos três sistemas, porém, está apenas subentendida no trabalho de Zitelmann. Ademais, sua tentativa de classificação, por isso mesmo, não deixa perceber se o sistema jurídico é ou não lacunoso ou se ele tem lacunas que são continuamente preenchidas pela jurisprudência, etc.
Ora, a concepção de Lask nos permite uma visão dinâmica da questão, capaz, contra Kelsen e com a maioria da doutrina, de explicar a possibilidade da lacuna sem incidir nas dificuldades das concepções estáticas do sistema jurídico.
O conceito de "nudez lógica" somado ao de "não-racionabilidade" permite-nos dizer que a relação entre o "fator-substrato", o "fator-norma" e o "fator-conceito" é dinâmica e não estática. Isto é, pode ocorrer que comportamentos que estavam em uma norma deixem de estar, bem como normas que estavam dentro de um conceito também deixem de estar. Isto quer dizer que as regras que relacionam os diversos elementos do sistema jurídico, segundo Lask, e que compõem a sua estrutura (chamemo-las de regra do "valer-para", regra da "irredutibilidade" e regra da "nudez lógica"), não me permitem separar, ao contrário, exigem que se identifique a estrutura com o processo do sistema. Assim, para Lask não há como falar de um sistema de normas referido a um sistema de fatos e outro de avaliações, sendo o Direito não uma relação mas uma integração (processo estrutural) de "formas" e "materiais", de "formas" que "valem-para" um "material" e que deixam de "valer" e de "materiais" que se abrem para "formas" e deixam de se abrir. Deste modo, o Direito é sempre lacunoso, mas é, também, sempre sem lacunas. Isto parece um paradoxo ou uma antinomia no sentido kantiano apenas porque o conceito de lacuna é proposto por uma metodologia estática, incapaz de captar o fenômeno jurídico na sua dinamicidade. A antinomia resulta de que tanto é possível dizer, com Kelsen, que lacunas não existem e são uma "ficção técnica", como dizer com Zitelmann que elas existem e devem ser colmatadas. Ou seja, o conceito de lacuna é próprio de uma metodologia que concebe o sistema jurídico de modo unilateral, não integrado quando o classifica em subsistemas, e estático. A concepção de Lask, ao contrário, nos conduziria a abandonar o conceito de lacuna, substituindo-o, por exemplo, pelo conceito de "problema" enquanto alternativas capazes de mobilizar um conjunto de soluções, o que daria ao sistema jurídico uma certa instabilidade "dialética", certamente diferente da dialética hegeliana que Lask rechaça, e que se aproxima daquilo que Miguel Reale chama de "dialética de implicação-polaridade" (cf. O Direito como Experiência, São Paulo, 1968, p. 36, 164). O conceito de "problema" teria, sobre o de "lacuna", a vantagem da dinamicidade, pois obrigaria a uma concepção do sistema jurídico como uma ordem interna instável, onde se postularia uma dependência direta entre "formas" e "materiais", "fator-norma", "fator-substrato" e "fator-categorial", dependência esta não determinista, mas aberta e descontínua. Problemático seria o sistema jurídico no sentido de que a tensão dialética (Lask fala em "valer-para") entre "formas" e "materiais" estaria continuamente, sempre, ainda que não sequencialmente, provocando soluções temporárias, possíveis, que serviriam de base para uma decisão.
Não há dúvida que a concepção de Lask, ao permitir à questão da lacuna uma solução deste gênero, introduz no sistema jurídico marcantes modificações. Neste sentido, rompe ele a possibilidade da hierarquia como padrão único da organização sistemática. Isto pode ser visto a partir da própria análise da estrutura da norma que ele sugere. Lask reconhece que a norma é basicamente imperativa. Observamos, neste sentido, que o "fator-substrato", o viver em família, por exemplo, é um "objeto transcendente ou supra-oposicional", isto é, em si não problemático ainda, e, portanto, nem positivo nem negativo, nem verdadeiro nem falso, nem válido nem inválido, o qual, ao ser "apoderado" pela "vontade da comunidade" através da "norma jurídica", passa a constituir um "artefato", uma criação da "subjetividade" jurídica. O sentido imperativo da norma, porém, não é expressão de mero comando de vontade. A vontade representa, na concepção de Lask, apenas o princípio diferenciador, isto é, o seu poder é tão somente o de especificar a sua validade. Nestes termos, a "vontade da comunidade" é fundamento específico da validade da norma, mas não o seu princípio emanador que só pode ser um outro “valer”. Isto é, a “vontade da comunidade” apenas determina o âmbito da validade mas não a própria validade. Toda norma, assim, é positiva, pois ela é posta por uma “vontade”, mas a positividade só explica a especificidade do valer da norma, não a própria validade. Nestes termos, que um homem e uma mulher passem a viver juntos e participem dos seus bens, isto é o “fator-substrato”. A escolha ou decisão ou posição do regime dos bens depende da “vontade da comunidade” (vontade das partes ou do legislador ou de ambos), que especifica a validade do regime. O princípio emanador desta validade, porém, se localiza num valer mais indiferenciado, digamos no princípio da autonomia da vontade que é um “valor”, “apoderado” mas não posto pela “vontade da comunidade”.
O sistema jurídico sugerido por Lask rompe, assim, com o escalonamento hierárquico à moda kelseniana, ao tirar a exclusividade determinante da regra da vontade “autorizada”, isto é, da regra que diz ser norma jurídica aquela que passa pelo crivo da positivação oficial. Isto porque, embora ele caracterize a norma por sua validade específica, nesta expressão estão contidos dois princípios sistematizadores. O primeiro diz que só é norma jurídica a que for especificadamente válida, isto é, diferenciada pela “vontade da comunidade” (legislador, juiz, vontade difusa no caso do costume, etc.). O segundo afirma, porém, que só é norma jurídica aquela cuja validade emana de um valer mais indiferenciado. Ora, isto quebra não só com a hierarquia, mas também com o sentido unitário do sistema. Isto porque no “topo” do sistema nunca estaria apenas um “valer fundamental”, uma espécie de “norma fundamental” kelseniana, mas, conjuntamente, uma espécie de “material” ou “vontade” fundamental. Teríamos, assim, um sistema com dois princípios, além do mais, assimétricos. Isto é, como a relação entre princípio emanador e diferenciador, para Lask, não é simétrica, poderia haver normas cuja validade específica dependesse de mais de um ato da “vontade da comunidade”, por exemplo, do legislador, do juiz, de partes contratantes, cada um deles determinando diferentes regiões de validade, portanto, uma pluralidade de sistemas. Não há, nestes termos, no Direito, uma “positividade única, unitária e hierárquica”, mas “positividades” diferentes, graduadas, no sentido vertical, mas não simétricas, no sentido horizontal.
A concepção de sistema sugerida por Lask nos conduz, assim, àquilo que Miguel Reale chama de “efetiva gradação da positividade jurídica” (cf. O Direito como Experiência, São Paulo, 1968 p. 171), onde o conceito de "positividade" necessariamente inclui o momento da vigência e da eficácia jurídicas, "com distintos índices de obrigatoriedade, assim como diversificadas áreas de incidência" (idem, ibidem, p. 170). Embora graduada, a positividade perde o sentido de hierarquia escalonada kelseniana, pois mesmo uma ordem estatal deve levar em conta não só a esfera dos membros ativos da administração, seus interesses e motivações, mas também a esfera do público a serviço do qual ela está, e a esfera dos processos políticos e sua organização, que preparam para as decisões administrativas, por exemplo, as suas bases de poder e legitimidade. Justamente estas três esferas não são simétricas embora coordenadas, sendo o sistema jurídico por isso dotado de uma estrutura plural e complexa, capaz de combinar a técnica da formação de hierarquias com a institucionalização de valores comuns e formas de cooperação.
A ideia de um sistema plural e assimétrico obriga-nos, por último, a uma reflexão sobre o problema da unidade do sistema. Esta questão, em Lask, nos conduz ao plano da Filosofia Jurídica. Entretanto, mesmo o "sistema" filosófico do Direito, final e fundante, no sentido tradicional de sistema, perde seu sentido de unidade última e irredutível. Existe nele, não só uma pluralidade assimétrica entre diferentes esferas, mas um movimento descontínuo, não necessariamente evolutivo e progressista, de "formas" que aparecem e desaparecem, concepções de justiça, cosmovisões ideológicas que passam do sistema da Ciência do Direito para o sistema da História Jurídica e que retornam através da Teoria Social do Direito ao próprio mundo das significações normativas, num processo sem cessar. Este processo, em Lask, é regido pela teoria do "valer-para". Sendo "histórico" ele não é puramente "diacrônico", pois manifesta, em cada momento, uma ordem, uma expressão de um estado de coisas, uma estrutura "sincrônica", um "valer-em -geral" que "vale-para" um "material-em-geral", mas simultaneamente dotado de um fator dinâmico, a própria mobilidade "material" que dá ao fenômeno jurídico o seu caráter acidental e particular de uma "irracionalidade" irredutível a uma "racionalização" cabal.
3 . Conclusão
A obra de Lask, como pudemos perceber, revela dados importantes para a compreensão do sistema jurídico. O decisivo nela, nos parece, é a possibilidade de se entender, num quadro único, o labirinto em que se meteu a teoria jurídica neste século, com suas formas pluralísticas, reducionistas, sintéticas e ecléticas. A concepção de Lask é tanto mais reveladora deste quadro quanto mais ela salienta a dificuldade de se conceber o sistema jurídico como um conceito geral e único, válido para todo e qualquer caso, mostrando, outrossim, o inter-relacionamento — multidimensional e assimétrico — de suas diferentes esferas significativas.
A esta dificuldade se refere René David (Los grandes sistemas jurídicos contemporâneos, trad. Pedro Bravo Gala, Madrid, 1973, p. 10 ss.), ao salientar que a consciência que temos da continuidade de um Direito nacional põe em relevo a existência, em cada sistema jurídico, de algo mais que as normas, válidas só em um país e em uma época determinados, acrescentando que nesta expressão estão contidos conjuntos conceituais e metódicos, bem como o conjunto das relações sociais, dos valores vigentes e uma certa concepção do mundo que os preside. Ora, como vimos, a grande dificuldade não é trazer isto tudo a um conjunto classificatório ou sintético, mas é produzir uma concepção operacional, que nos permita agir sobre estes diferentes planos de modo eficaz. A obra de Lask não nos dá esta operacionalidade, mas abre, sem dúvida, caminho para ela.
Fonte: FERRAZ JR., Tercio Sampaio. "As Origens do Estado Contemporâneo ou o Leviathan Gestor da Economia". Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, vol. XXXVI, fasc. 148, p. 298-313, outubro - novembro - dezembro de 1987.
Texto organizado e corregido por: Victor Alexandre El Khoury M. Pereira.