Conduta Discriminatória e Cláusula de Exclusividade Dirigida

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

 

Note-se, inicialmente, que o fulcro do tema a ser discutido está no problema de uma restrição à concorrência por meio de uma exclusividade dirigida, a qual importa numa forma de discriminação. O tema tem a ver com o princípio da isonomia que, no direito constitucional brasileiro, tem uma perspectiva nova, a afetar diretamente a defesa da concorrência. Isto é um dado importante na configuração da infração contra a ordem econômica caracterizada por discriminação.

Princípio da Isonomia

Tenha-se em conta, inicialmente, que a igualdade ganha no texto constitucional de 1988 um relevo todo especial que não havia nas constituições anteriores. Note-se, nesse sentido, que o caput do art. 5° não apenas previu que "todos são iguais perante a lei ...", mas garantiu, superlativamente, "a inviolabilidade do direito... à igualdade". Esse texto generaliza uma aspiração bem mais ampla que alcança também as desigualdades de fato, na medida em que desvaloriza a existência de condições empíricas discriminantes e exige equalização de possibilidades. A igualdade, assim, como conteúdo da norma constitucional, deve ser tomada, de um lado, num sentido negativo, como direito de não ser discriminado. Mas, de outro e num sentido positivo, é também conteúdo do direito ao máximo de condições e oportunidades e de participação nos benefícios da vida social, ao que corresponde o dever de todos no sentido de agir de modo a propiciá-los (cf. o nosso Legitimidade na Constituição de 1988, in Ferraz, Diniz, Georgakilas “Constituição de 1988: Legitimidade, Vigência e Eficácia, Supremacia”, Atlas, São Paulo, 1989, p. 31 s.).

Esse tratamento superlativo traz importantes consequências. A atual disciplina constitucional, ao contrário do que sucedeu no passado, deixou de ver a igualdade como um direito individual, como os demais, para encabeçar a lista desses direitos, que foram transformados em parágrafos. Como tal, ela garante o indivíduo contra toda utilização indevida que possa ser feita da ordem jurídica (cf. Celso Bastos/Ives Gandra da Silva Martins, Comentários à Constituição do brasil, São Paulo, 1989, 2º volume, p. 13).

Assim, se no passado o princípio só se dirigia ao legislador (impedindo-o de emanar leis arbitrárias), agora ele atinge também os particulares, (na forma de um autêntico direito subjetivo” (id.ib.). As pessoas (físicas e jurídicas) possuem o direito de não ser diferençadas por outros particulares nas mesmas situações em que a lei também não poderia discriminar. Isto não derroga o princípio da autonomia da vontade, mas quando “for possível flagrar um particular na prática de um ato, com caráter nitidamente discriminatório”, à parte prejudicada estará aberto “o acesso aos Tribunais para a devida reparação” (id.ib. p. 14 – grifei).

Isto toca de perto em um dos fundamentos da República (art. 1º - IV) e da Ordem Econômica (art. 170): a livre iniciativa, protegida particularmente pelo princípio da livre concorrência (art. 170 – IV).

Com base na igualdade assegurada como princípio e como direito subjetivo pela Constituição Federal (art. 5º), entende-se que a concorrência entre as empresas não deve ser falseada por condições desiguais de acesso ao mercado. Portanto, se a concorrência vier a ser desvirtuada por alguém que transgrida o princípio, com prejuízo de direito constitucionalmente garantido, pode ser devidamente promovida a correspondente representação junto à autoridade constituída, que deverá encaminhá-la nos termos da lei. E ao nível constitucional, ferir a igualdade equivale não só a aplicar ou induzir à aplicação de tratamento desigual a pessoas que se encontram em situação comparável, mas fazê-lo também em relação a pessoas que se achem em situações diferentes quando o tratamento desigual não seja justificável por aquela diferença.

O mesmo bem jurídico – a isonomia – também está além disso resguardado na legislação antitruste.

Constata-se de imediato que condutas limitativas da igualdade de oportunidade ou expressamente discriminantes estão previstas, por exemplo, entre outros, nos incisos IV,VI,XII do art. 21 da Lei 8.884/94, que dispõem o seguinte:

“Art. 21. As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurarem hipótese prevista no artigo 20 e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica:

(...)

IV – limitar ou impedir o acesso de novas empresas ao mercado

(...);

VI – impedir o acesso de concorrente às fontes de insumo, matérias-primas, equipamentos ou tecnologia, bem como aos canais de distribuição;

(...)

XII – discriminar adquirentes ou fornecedores de bens ou serviços por meio de fixação diferenciada de preços, ou de condições operacionais de venda ou prestação de serviços;

(...)”.

Conduta limitativa da igualdade de oportunidades, conduta discriminatória e posição dominante.

Ora, essas condutas se tornam graves restrições à concorrência quando ocorre infração da ordem econômica consubstanciada, especialmente, em exercício abusivo de posição dominante no mercado, nos termos do inciso IV do art. 20 da Lei 8.894/94. Leia-se o dispositivo:

“Art. 20. Constitui infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:

(...)

IV – exercer de forma abusiva posição dominante”.

(...).

Tenha-se em conta, ademais, que o abuso por prática limitativa da igualdade de oportunidades ou por discriminação no exercício de posição dominante é algo que a lei repele fortemente. A doutrina internacional (cf. R.Bechtold: GWB, München 1993, p. 329) reconhece, nesse sentido, que, para empresas em situação dominante, a discriminação é conduta infrativa que fere de plano o princípio da concorrência, por constituir uma inaceitável restrição à livre iniciativa. Tal comportamento discriminador não é guiado pela concorrência pois, havendo posição dominante, presume-se que a discriminação toma a configuração de uma arbitrariedade que prejudica uns em relação a outros. Na verdade, embora a posição dominante não seja incriminada por si mesma, ela é vista como um estado perigoso, isto é, como a “antecâmara do delito” (cf. F.-Ch. Jeantet: Vers um contrôle européen de la concentration, JCP, 1975). Por isso, mesmo em sistemas que não conhecem os chamados delitos de per se, a mais leve e, aparentemente, usual prática anticoncorrencial cometida por empresa em posição dominante corre forte risco de ser tratada como infração.

Como se sabe, a posição dominante vem definida por dois caracteres fundamentais: a possibilidade de a empresa (hegemônica) praticar condutas independentes que a colocam em condições de agir sem levar em conta necessariamente o comportamento de concorrentes ou de fornecedores ou de compradores ou distribuidores – independência – e encontrar-se em situação tal que faça dela um parceiro obrigatório – parceria obrigatória (cf. Glais et Laurent: Traité d’économie et de droit de la concurrence, Paris, 1983, p. 263 ss.). À independência da empresa dominante costuma, pois, corresponder a dependência de outros. A presunção é, assim, de que, embora a concorrência até exista no mercado, ela está sensivelmente enfraquecida. Por isso que qualquer prática restritiva, por meio da dominante, é toda como potencialmente capaz de enfraquecê-la mais ainda, constituindo o abuso de posição dominante.

Leve-se em conta, no entanto, que a posição dominante não é uma situação estático no interior de uma estrutura, mas depende fortemente do fator temporal, o qual deve ser ligado ao estágio de desenvolvimento de um mercado. Assumindo-se com Williamson (The Scope Of Antitrust And The Economic Regulatory Policies, in Harvard Law Review, 82, 1969, p. 1207) que um mercado pode conhecer ao menos três fases de desenvolvimento, um estágio exploratório, cercado de incertezas, um estágio intermediário, já mais calibrado, e um estágio de maturidade, em que o crescimento continua, porém com quadros mais definidos, pois então se revelam as posições de liderança e os resultados mais expressivos e constantes, é neste último que uma posição dominante toma o seu sentido. Esta não se mostra propriamente pela perenidade de um certo estágio estrutural, mas por um conjunto de práticas e decisões que a empresa dominante consegue impor aos outros agentes econômicos.

A lei brasileira presume a posição dominante por meio de um critério horizontal de participação no mercado acima de 20%. Isto não exclui, obviamente, outros critérios reveladores. Dentre eles mencione-se, no plano vertical, sua facilidade de acesso a fornecedores ou clientes, obtida por meio de relações contratuais ou por suas vinculações a sistemas de distribuição próprios ou de terceiros. Em terceiro lugar estão barreiras de entrada, de fato ou de direito, para outras empresas. Em seguida, a flexibilidade para modificar ou alternar a oferta de produtos ou serviços. De qualquer modo, estes critérios não precisam ser tomados na sua totalidade, podendo ser encontrados até isoladamente dentro de uma situação dada.

Pode-se entender destarte que uma “inocente” cláusula contratual, que, para um concorrente em posição competitiva, mas não dominante, possa parecer mera estratégia de mercado, em caso de empresa em posição dominante leva imediatamente à presunção do abuso. E este é o caso, particularmente, das chamadas cláusulas de exclusividade dirigida (“selektive Vetriebspolitik” – cf. Kleinmann/Bechtold: Kommentar zur Fusionskontrolle, Heidelberg, 1989, p. 213), em que a restrição parece, de um lado, ainda garantir a competição e, de outro, induz, por pressão constrangedora e incontornável, a uma pseudo opção por parte do constrangido, levando-o a uma discriminação entre concorrentes. A posição dominante exerce-se por força de independência – a empresa dominante sabe que terá condições de estabelecer a cláusula sem possibilidade de discussão – e por força da parceria obrigatória – a “opção” ocorrerá entre ela e uma outra que lhe seja compatível pois ela, por força da dominância, não pode ser descartada. Assim a conduta discriminatória ocorre, pela via indireta, por alijamento de concorrentes indesejáveis; isto é, por meio de uma exclusividade manobrada de fora, força-se ou induz-se um distribuidor, por exemplo, a discriminar. Em outras palavras, a empresa dominante A celebra com a empresa B (dependente) um contrato em que B se obriga, além de A, a ter apenas mais um único concorrente como cliente: exclusividade dirigida.

Posição dominante, estrutura oligopolista e cláusula de exclusividade dirigida.

Há de se acrescentar que a exclusividade dirigida tem uma implicação até mais sutil dependendo do mercado e sua estrutura. Em situações de oligopólio, as empresas dominantes, ao estabelecer com clientes, fornecedores, distribuidores cláusulas restritivas, como é o caso de exigência de um limite máximo de parceiros, por exemplo não mais que dois, fortalece abusivamente a dependência e a parceria necessária, pois a empresa dominante dentro da estrutura oligopolista impõe-se como um deles e, assim, cria condições para dirigir a escolha dos demais. Ora, a igualdade é princípio que “visa a duplo objetivo, a saber: de um lado propiciar garantia individual (não é sem razão que se acha insculpido em artigo destinado à rubrica constitucional “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”) contra perseguições e, de outro, tolher favoritismo” (cf. Celso Antônio Bandeira de Mello: Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, São Paulo, 1993, p.23 – grifei). Tolher favoritismo significa atribuir benefícios a um, excluindo para outro, injustificadamente, a mesma oportunidade. E, nos temos da lei concorrencial, nem é preciso que a exclusão se realize, basta que a possibilidade seja criada (Lei Nº. 8884/94, art. 20 caput).

Poder-se-ia imaginar que, para atender o preceito, bastaria redigir uma cláusula em termos tais que a fórmula garantisse a competição: escolhida a empresa X fica a critério da parte contratante escolher o segundo parceiro. Esse atendimento à mera forma não cumpre, porém, o preceito. É preciso verificar se a norma clausulada prefigura a situação particular que garante o exercício indireto da discriminação ao arbítrio do dominante. E o exercício deste arbítrio, nos termos da lei concorrencial, como visto, nem precisa ocorrer, bastando que fique criada potencialmente a sua possibilidade.

Este comportamento, numa estrutura oligopolista, é particularmente prejudicial à concorrência. Pois ele tem reflexos no interior do oligopólio e para o seu exterior. Aqui é importante destacar quais empresas pertencem e quais não pertencem a ele. Para isso distingue-se a relação interna e a externa (Kleinmann/ Bechtold, op. cit. p. 215). Assim, do ponto de vista interno, uma empresa pode pertencer ao mercado relevante sem ser um membro do oligopólio, ou seja, pode estar no oligopólio sem ser oligopolista. O critério básico mostra que, mesmo quando uma empresa atrela sua conduta à conduta das oligopolistas, isto não significa que ela própria seja uma delas. Para sê-lo é preciso que ela seja capaz de limitar o espaço de ação das demais em termos de uma vinculação mútua de reações. Ora, ocorrendo esta divisão em que (no mínimo) duas empresas têm condições de forçar outras a comportamentos uniformes mas essas outras não podem influenciar a uniformidade, dentro do oligopólio a conduta discriminatória tem por efeito fortalecer abusivamente a posição dominante das oligopolistas num duplo sentido: ela falseia a concorrência entre as dominantes e elimina da concorrência as de fora.

Ora, uma cláusula contratual, ao se constituir numa exclusividade dirigida, tem peculiarmente este efeito. O caráter discriminatório da conduta ocorre de forma sutil, mas visível. A restrição imposta ao número de parceiros acaba por constituir-se numa condição operacional que trata diferentemente a parte que a aceita em face da que a recusa, pois esta fica excluída do relacionamento comercial com a empresa dominantes e dos benefícios que aquela posição, mormente pelo fator parceiro obrigatório, possa significar. Veja-se, por exemplo, o caso em que duas concorrentes, das quais uma detêm mais de 70% do mercado relevante, já se utilizam da quase totalidade dos clientes disponíveis. Nessa condição, as duas atuam como oligopolistas cuja competitividade, entre si, é, no mínimo, altamente enfraquecida com expressivo potencial de falseamento, mormente quando, decididamente, empresas menores têm limitado o seu acesso às mesmas condições de competição e que poderiam vivificar a concorrência dentro do oligopólio.

Ora, uma cláusula contratual que impunha não mais que dois parceiros à empresa dependente, é, a toda evidência, um instrumento de exclusão. Sua abusividade está na possibilidade, por seu intermédio, de se desestabilizar, de modo fortemente iníquo, a posição de mercado de outras empresas que estão no oligopólio mas a ele não pertencem. Além disso a cláusula por ter por efeito o favorecimento de certos parceiros em detrimento de outros, pode estar prejudicando consumidores finais sem que o prejuízo possa ser justificado pela estratégia utilizada pela empresa dominante.

Além do abuso de posição dominante, mais detidamente esclarecido, a cláusula de exclusividade dirigida pode provocar um falseamento da concorrência dentro de um oligopólio, na exata medida em que o consolida de uma forma estável e mais confortável do que aconteceria com a entrada de novos concorrentes. A dominação de mercado, ainda que compartilhada, é disto uma conseqüência inevitável. Do art. 21 da Lei 8.884/94 destaquem-se, pois, os incisos III, IV, V, e XII. O primeiro porque a estrutura oligopolista do mercado faz com que a imposição da cláusula de exclusividade dirigida conduza a uma consolidação do mercado entre os maiores concorrentes, que entre eles fica dividido. O segundo, na medida em que a cláusula termina por constituir-se numa barreira de entrada a outros concorrentes menores. Por conseqüência, nos termos do inciso V, a cláusula cria dificuldades de funcionamento para as empresas que tenham necessidade, nas condições do mercado relevante, de disputar com as dominantes o acesso à dependentes. Por fim, nos termos do inciso XII, ocorre uma discriminação das próprias empresas dependentes e seus clientes, pois só as que suportam a cláusula da exclusividade dirigida terão acesso aos benefícios proporcionados pela dominantes e, por força da mesma exclusividade, a uma segunda empresa do oligopólio, desfavorecidas as que a recusarem.

CONCLUSÃO

Em síntese, uma cláusula contratual que restringe o número de parceiros possíveis, aponta para uma exclusividade dirigida que dá à empresa em posição dominante, mormente num oligopólio, a possibilidade de conduta discriminatória, prejudicando marcadamente os demais concorrentes. Ademais, num oligopólio, ela não procura atingir um outro membro que a ele pertença, pois isto aqueceria a concorrência de modo riscante, preferindo concentrar-se em concorrente menor que, justamente, traria para o oligopólio a desejável efetiva concorrência. Trata-se, intuitivamente, de reação típica de dominância num oligopólio estabilizado.

Fonte: Revista do Instituto Brasileiro de Estudos das Relações de Concorrência e de Consumo, vol. 4, nº 1, Janeiro de 1997, ______, pp. 21-32.

Digitalizado e conferido por Rafael Augusto Galvani Fraga Moreira.