Tercio Sampaio Ferraz Junior
A Constituição brasileira é intervencionista, autoritária e fortalece a presença do Estado na sociedade. Isto poderia ser tomado como uma observação sobre um dos caracteres ideológicos da Carta de 69 (a). Se disséssemos que a Constituição consagra o princípio republicano e que, se assim for, o decreto-lei, em decorrência, tem de ser usado muito restritamente sob pena de inconstitucionalidade, isto poderia ser considerado como uma compreensão ideológica da Constituição (b). Se ainda disséssemos que, em nome da Constituição, ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, estaríamos reproduzindo um texto total, cabal e abarcante e, simultaneamente, estaríamos produzindo um efeito de encobrimento posto que é como se o resto não precisasse ser dito e muita coisa, senão tudo, encontrasse base de justificação desde que legal: este efeito de encobrimento que qualificariam também de ideológico (c). Se disséssemos também que uma Constituição deve manifestar consenso político fundamental enraizado num pacto social em que o povo e só o povo manifesta os princípios do seu autogoverno, não se negaria que estaríamos formulando uma proposição de ordem ideológica no que diz respeito ao constitucionalismo dito autêntico (d). Se disséssemos que a Constituição consagra princípios de ordem superior, como o respeito à vida, à liberdade, que configuram o seu núcleo básico e incontrastável, aqui também falaríamos em ideologia (e).
Todas estas proposições são lugares comuns da retórica jurídica e, de um modo ou de outro, constituem o que, via de regra, chamamos de ideologia. Uma observação mais alenta, contudo, exige certas discriminações: é óbvio que os enunciados supra referidos são distintos entre si e, num grau maior de abstração apenas, permitem uma generalização no sentido de que sejam todos ideológicos, ou seja, o tema exige análise e síntese.
Comecemos pelas discriminações. Entre a primeira (a) e as demais (b — c) pode-se distinguir entre um enunciado sobre a ideologia e um enunciado ideológico. Discute-se se é possível esta distinção. Afinal, nada impede que um enunciado sobre a ideologia seja, ele próprio, patente ou ocultamente, ideológico, e também se diz, que um enunciado ideológico, patente ou ocultamente, diz algo sobre uma ideologia. Não obstante, a distinção é possível e tem, ao menos, um valor operacional. Assim, em tese, um enunciado sobre a ideologia, não importa seja ele mesmo ideológico, tem uma ideologia como seu objeto. Já um enunciado ideológico não fala de uma ideologia, mas tem uma carga ideológica: emite, ideologicamente, um valor, ou seja, um símbolo de preferência para ações indeterminadamente permanentes, uma fórmula integradora e sintética para a representação do consenso social.
Muito embora, como reconhecemos na prática, esta distinção seja confusa, poder-se-ia resumi-la dizendo que, numa alusão a Hart, um enunciado sobre a ideologia manifesta um ponto de vista externo, enquanto um enunciado ideológico manifesta um ponto de vista interno. O primeiro é aquele que é emitido por um observador que, em tese, não tem um compromisso com a ideologia que menciona, ao passo que o segundo é emitido por um observador que se compromete.
Isto posto, do ponto de vista interno, pode-se distinguir entre diversas funções ou efeitos produzidos pelo enunciado ideológico, E de pronto, mencionem-se dois principais: a função positiva ou de representação de uma uniformidade, pressuposta, posta ou imposta, e a função negativa, de encobrimento. Também aqui, na prática, a distinção é obscura e de análise difícil. Para efeitos didáticos, diríamos que, em tese, a firmação da legalidade (c) tem uma função negativa, cujo efeito é o encobrimento. As demais (b, d, e) têm uma função positiva: o enunciado sobre o princípio republicano (b) e suas consequências para o entendimento do decreto-lei determina, põe, estabelece finalidade, propósitos, metas da Constituição, permitindo um juízo de valor e o controle da mens legis e sua interpretação; já o enunciado sobre a necessidade do enraizamento da Constituição num pacto social (d) pressupõe fontes geradoras, causas, origens, permitindo um juízo de valor sobre valores reconhecidos, ligados ao espírito do constitucionalismo de tradição democrática e liberal; o enunciado sobre o respeito à vida e a liberdade impõe um núcleo básico, uma propriedade fundamental, permitindo um juízo de valor essencial, uma essência que tem de ser reconhecida, sob pena de inviabilidade.
Se quisermos, agora, tomar os dois grupos de distinções - a discriminação entre o ponto de vista externo e interno, de um lado, e a discriminação, deste último, entre uma função negativa e positiva - podemos alinhar uma terceira ordem da análise que nos levará mais de perto ao fenômeno da ideologia. De modo geral, podemos dizer que, pelo que foi afirmado, a ideologia atravessa a Constituição em vários planos, criando condições para o preenchimento de certas funções sociais. Assim, a ideologia permite, simultaneamente, a análise de uma Constituição, o entendimento de uma Constituição e uma prática constitucional. A análise da Constituição só é possível se se consegue observá-la de diferentes ângulos, a fim de explicitar lhe os diferentes sentidos. A conhecida distinção entre o sentido social, político e jurídico da Constituição, ou seja, o seu relacionamento explícito ou implícito com práticas sociais de variada gama, a ideia de uma decisão fundante do poder político, a compreensão como uma formulação normativa primordial, é produto de análise em cuja base está uma prática ideológica de encobrimento (com o que combinamos o ponto de vista externo, com a função negativa do ponto de vista interno). O encobrimento ocorre na medida em que substituímos fórmulas valorativas (preferências, consensos, juízos de superioridade) por fórmulas que parecem neutras, como a distinção entre o social, o político e o jurídico ou, mais tipicamente, por fórmulas abstratas como a ideia de uma fundamental e a distinção entre constituição em termos de premissa lógica fundamental e constituição em termos de premissa posta, como está em Kelsen. Ocorre também este encobrimento, quando o autor se oculta por detrás do seu enunciado analítico, dando a impressão de que não é ele, mas a doutrina, a comunidade acadêmica, os melhores autores que estão falando da Constituição.
É a ideologia que permite também o entendimento de uma Constituição no sentido de um mútuo-entendimento, isto é, da criação de pressupostos básicos em torno dos quais parece ocorrer um consenso implícito, p. ex., no estabelecimento de certas finalidades apropriadamente expressas em fórmulas generalizadas do tipo "bem comum", "ordem constitucional", e a partir dos quais se permitem decorrências óbvias, supostamente lógicas e/ou razoáveis. Neste caso, o entendimento ocorre por forca de uma generalização que permite tratar daquelas finalidades como se fossem dados objetivos, abstração feita das diferenças factuais de opinião na sociedade.
Por fim, a ideologia permite também a prática constitucional, assegurando a correspondência entre normas, conteúdos normativos e institucionalizações da conduta social. Neste sentido, entende-se que uma Constituição esteja sendo vista, simultaneamente: 1 . Como um conjunto de normas, isto é, de expectativas sociais fundantes, estabilizadas de modo contrafático, no sentido de que valem independentemente de seu cumprimento ou descumprimentos; 2. Como um conjunto de conteúdos significativos básicos, estabilizados de modo generalizante, ou seja, constituindo sentidos avaliados de modo suficientemente abstratos para que possam ser chamados de comuns à sociedade; 3. Como um conjunto de procedimentos institucionalizados, isto é, sistemas sociais básicos de ação que se supõem conforme normas e que permitem uma antecipação bem-sucedida do consenso de terceiros, ou seja, de todos ou da maioria. Assim, p. ex., uma Constituição é norma quando estabelece que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (expectativa contrafática), é conteúdo significativo básico quando estatui a legalidade (expectativa de um sentido comum), é procedimento institucionalizado quando se pratica o respeito à lei na suposição bem-sucedida de que qualquer um, na mesma situação, o faria e o aprovaria também.
Pois bem: a ideologia permite uma prática constitucional, no sentido de se obter uma congruência entre estes diversos planos constitucionais. Ela faz com que, para efeitos desta prática, isto é, do agir constitucional e do agir conforme a Constituição, normas valham conforme conteúdos significativos comuns, em procedimentos que são uma suposição do consenso de todos. Isto é possível porque, num sentido global, a ideologia é uma espécie de valoração neutralizadora, ou seja, um ponto de vista avaliativo que tem por efeito básico a neutralização, entendendo-se por neutralização não a eliminação, mas a possibilidade de fazer com que outras possibilidades (de ação, de valoração, de procedimento) não sejam levadas em conta nem sejam tomadas como relevantes. Assim, numa formulação sintética, diríamos que a ideologia neutraliza a Constituição, possibilitando, em grau variado, o seu funcionamento como norma dita fundamental. E a neutraliza no sentido de que, ao tornar irrelevantes avaliações e comportamentos contrários, instaura uma prática social, política e jurídica contrafática (isto é, válida), comum (em tese, de sentido geral) e consensual (com o apoio suposto de todos).
Este efeito neutralizador, isto é, de tornar irrelevante o que lhe é contrário, autoriza uma palavra conclusiva sobre ideologia e Constituição. Em primeiro lugar entende-se que, por causa deste efeito, uma ideologia é um ponto de vista globalmente final c derradeiro, que não admite um outro, pois qualquer outro só pode sê-lo dentro do universo ideológico e nunca fora dele. Neste sentido, ideologias disputam hegemonias e, quando polemizam, desfazem os adversários no seu próprio interior, neutralizando-os. Nesse sentido, uma posição liberal assumida só "aceita" uma posição comunista em seus termos, isto é, desde que o comunista se submeta à tolerância de opiniões e lute lado a lado com outros posicionamentos. E vice-versa, uma posição comunista assumida só "aceita" uma posição liberal desde que convenientemente denunciada como manifestação de classe e de má consciência política. Em segundo lugar, portanto, entende-se que uma ideologia é muito difícil de ser percebida, posto que, por ser global, se está sempre dentro dela. Salvo quando se toma "ideologia" num sentido externo, quando é então possível ver a "ideologia" dos outros. Uma análise, aliás, de ideologia, como estamos fazendo, não deixa de ser uma análise ideológica de grau de abstração superior.
Por último, mas não menos importante, por seu caráter global e de difícil percepção, a ideologia projeta sobre a Constituição um efeito neutralizador que faz vê-la como uma totalidade dentro da qual os comportamentos sociais ou são conformes ou são inconstitucionais, excluído um terceiro. Por exemplo, a recente disputa em torno da posse do presidente eleito, se deveria caber ao Vice-presidente ou ao Presidente da câmara, revela uma neutralização ideológica que faz com que a polemica se dê dentro da Constituição e não fora dela, ficando excluída qualquer posição de antagonismo como sendo irrealista, imoral, contra as instituições, revanchista, violenta etc. Assim a polêmica se dá dentro da Constituição, pois qualquer argumento que levasse a ignorar os seus mandamentos é repelido porque, de plano, considerado irrelevante (p. ex., o argumento de que nem um nem outro, mas uma nova eleição e um novo Presidente).
Este efeito global da neutralização, por sua vez, pode ser mais ou menos flexível. É tanto mais vigoroso quanto mais irrelevante são as percepções de que outras posições são possíveis. P. ex., uma ideologia vigorosa faz com que, no episódio Watergate, nem se cogite de um golpe contra as instituições. Menos vigorosa é a situação em que, diante de uma crise, inúmeras são as manifestações de apoio às instituições e ao seu respeito. Mais flexível é uma ideologia que permite, no seu interior, um maior câmbio de valorações, como é, em tese, a ideologia liberal-democrática. Mais rígida, obviamente, é uma ideologia tachista. Enfim, em conformidade com isto, teremos Constituições igualmente mais ou menos vigorosas, mais flexíveis ou mais rígidas e, em consequência, mais ou menos estáveis e duradouras.
No limiar de um processo constituinte, parece-nos que esta análise tenha uma certa relevância. Ela não nos conduz à prática constituinte, mas pode ajudar-nos a exercê-la. No curto espaço desta reflexão faremos menção por último a um aspecto desta função globalizante e neutralizadora da ideologia que parece presidir as Constituições brasileiras. Para isso nos valemos de apontamentos extraídos do clássico de Sérgio Buarque de Hollanda, Raízes do Brasil.
Distinguimos, analiticamente, entre dois tipos básicos de organização social que correspondem a duas formulações ideológicas preponderantes; aquelas baseadas na competição e na cooperação e aquelas baseadas na rivalidade e na prestância. Sociedades competitivas e cooperativas são aquelas cujo comportamento social tendem para objetivos comuns, não subjetivados e, por isso, abstratos, sendo a relação para com eles que mantém os indivíduos separados ou unidos entre si. Isto exige ordens claras e impessoais, capazes de responder pela coesão das organizações.
A desigualdade nutre os membros é garantida e medida pelas posições que ocupam em face dos objetivos, ora de supremacia, ora de inferioridade. Daí a necessidade de princípios e regras que impliquem a solidariedade mecânica e orgânica e a exigência de associar permanentemente forças ativas. Na competição e na cooperação os interesses objetivos se destacam dos subjetivos, donde se segue uma ideologia que privilegia a atividade utilitária e o trabalho comum. Esta ideologia valoriza um;, ética de trabalho comum, donde a razoabilidade ser o princípio da disciplina, valorizando-se concomitantemente as ações cotidianas e rotineiras, o ganho persistente e a longo prazo, dando-se mais espaço à estabilidade, à paz, à segurança, ao proveito bem repartido e conseguido passo a passo. Valorizam-se como virtudes máximas a exatidão. o espírito de organização, o cumprimento coerente dos ritualismos, o interesse coletivo. Isto significa que a administração pública e os encargos de direção e governo são considerados meios funcionais para a obtenção de fins heterônomos, e os conflitos resultantes do seu exercício são controlados por uma concepção de justiça mais estrita, em termos de igualdade formal.
Em oposição ao tipo descrito, observamos nas sociedades baseadas mais na prestância e na rivalidade certa tibieza das formas de organização que impliquem solidariedade mecânica e orgânica. Nelas, os objetivos comuns são subjetivados, aparecendo como importante a afirmação da personalidade e o dano ou benefício que alguém possa fazer a outrem. Aqui, o personalismo afetivo, inerente às relações sociais, dificulta os acordos coletivos duráveis, a não ser por uma força exterior concreta, respeitável e temida. Isto se explica pela necessidade de se conterem e refrearem as paixões, posto que a rivalidade, ao contrário da competição, é uma disputa por aquilo que cada um é, e não por aquilo que pode obter. Em consequência a desigualdade entre os membros e o câmbio social não é estabilizado por princípios de alternância, mas pelo prestígio pessoal, variável pela fortuna e permanente pelas tradições.
Diríamos, pois, que na base da ideologia da prestância e da rivalidade está a exaltação da renúncia: a entrega radical a um bem considerado maior, ao qual, no limite, se presta obediência cega e não proporcionalmente sopesada. Todos os membros sociais são medidos na sua capacidade de entrega e quanto mais isto é generalizado, mais se realiza a justiça em termos de igualdade.
Assim, a valorização dos vínculos afetivos familiares, que unem chefes patriarcais, descendentes colaterais e afins faz com que a ideologia privilegie o comportamento moral rígido, superior aos utilitarismos, mas cuja flexibilidade é então obtida graças a interpretações casuísticas de suas regras vagas e ambíguas. Segue se o culto à amizade, pois de amigos tudo pode ser exigido, prevalecendo a lealdade a superiores e um modo de encarar a lei abstrata como um princípio inferior aos laços personalistas. Daí o apreço pelas virtudes inativas como a gravidade, o termo honrado, o proceder sisudo do homem sério, que são superadas apenas pela audácia, pela esperteza, pelo proveito rápido, diante do que há uma atitude complacente.
Nesta ideologia, a justiça é preenchida em termos de uma bondade espaçosa e sem limites, donde a aceitação e o reconhecimento de que a administração pública é um bem em si, um patrimônio a ser explorado em proveito da amizade e da lealdade. Nesta ideologia da prestância e da rivalidade, portanto, as instituições de competição e cooperação, como as sociedades mercantis, os contratos de serviços, as relações trabalhistas, a burocracia governamental, os processos eleitorais, os regimes políticos tendem a ser vistos como projeções de instituições personalistas, como a família, o casamento, a religião que trazem, para aquelas, os traços típicos do seu modo de encarar as coisas.
Em conclusão, diria que, com perdão pela excessiva generalização, a organização constitucional brasileira mostra a prevalência de uma ideologia da prestância e da rivalidade, combinada com uma ideologia cooperativa, e competitiva de cunho oligárquico. Historicamente se observa, assim, que a formação do Estado, no Brasil, foge à concepção clássica do Estado como reflexo da sociedade civil. De um lado, o Estado não é síntese idealizada da sociedade civil existente; de outro, tem um papel importante na formação das elites dirigentes. Como disse Tristão de Ataíde, o Brasil teve Estado antes de ter tido sociedade. Ou seja, o Estado se formou precocemente, enquanto o ritmo de expansão da sociedade civil foi lento e restrito (Trindade, in Lamounier, Roulquié, Schvarzer: Como renascem as democracias, 1985). Isto favoreceu desde logo a internalização e consolidação de estruturas monárquicas e, em consequência, a centralização precoce, enquanto a mobilização política da sociedade civil só vai ocorrer um século depois (1920-30). Isto marcou também uma forte e receptiva penetração do Estado na vida econômica, desde cedo. Dotado, desde a época colonial, de um aparelho administrativo que continuou após a Independência, o Brasil conquistou em poucos anos a sua unificação política, para a qual a ideologia da prestância e da rivalidade conferiam razoável estabilidade e legitimidade. Em compensação, teve-se a emergência de partidos políticos regionais e oligárquicos, de forte clientelismo rural, de ausência de camadas médias organizadas politicamente. O que ocorre, depois, com a República, em termos de uma ideologia básica, não altera o quadro institucional muito profundamente. A troca de uma estratégia liberal à inglesa e à europeia, por uma estratégia norte-americana, preserva a dominação oligárquica e acentua o pouco espaço concedido à estruturação autônoma da sociedade civil. É como se dissesse: "tudo para o povo, mas nada por intermédio do povo".
Em suma, na perspectiva de uma Constituinte, cremos que esta permanente hibridez ideológica, que combina práticas de prestância e rivalidade (função positiva da ideologia) com estratégias de cooperação e competição (função negativa ou de encobrimento), há de ser o desafio renovado que estaremos enfrentando.
Fonte: Constituição e constituinte - Constituição e ideologia, Tércio Sampaio Ferraz Júnior, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1987, pp.29-36.