Tercio Sampaio Ferraz Jr.
Não se fala obviamente da eficácia global da constituição, mas da eficácia das normas constitucionais. Tomamos eficácia como uma expressão que, dentro da técnica jurídica, permite um controle sobre a produção de efeitos jurídicos. Este controle diz respeito a condições de oportunidade, conveniência, necessidade na produção de efeitos. Nesse sentido, a eficácia pode ser suspensa, ser imediata, ser postergada.
O caráter extremamente conciso desta exposição exige, contudo, uma definição estipulativa, ainda que rapidamente. A eficácia é tratada aqui, primeiramente, em dois sentidos distintos que se referem, de um lado, à chamada eficácia sociológica e, de outro, à eficácia jurídica. No primeiro caso, diz-se eficaz a norma que encontra na realidade social as condições de obediência (relação semântica entre a norma e a realidade). No segundo caso, diz-se eficaz a norma que, tecnicamente, tem condições de aplicabilidade, podendo produzir efeitos (relação sintática entre a norma e outras normas do sistema). Englobando estes dois sentidos num só diríamos que, pragmaticamente, eficácia é um conceito que diz respeito ao sucesso da disposição normativa (eficácia como instrumento de controle). Este sucesso é medido pela possibilidade de se alcançarem os objetivos da edição da norma, sendo que estes objetivos podem estar numa concreção efetiva (obediência), num apaziguamento da consciência política (encobrimento ideológico), na transposição de efeitos para momentos oportunos (instrumentalidade do direito) etc. Assim, em termos pragmáticos, uma norma pode objetivar, por exemplo, não o seu cumprimento imediato, mas apenas assegurar um ponto de vista ideológico. Nesse sentido, conquanto pudessem existir as exigíveis condições sociais de obediência da parte do destinatário da norma, não convém, ao interesse do editor, que a concreção ocorra. Nesse caso, em nome do sucesso da comunicação normativa implementa-se uma limitação da eficácia que, em termos de controle jurídico, fica proposta.
No que se refere à constituição, a eficácia é obviamente uma noção primordial. Graças à eficácia, no plano constitucional, é possível atender-se, às vezes, a pressões políticas diversas, estatuindo-se certas normas que postergam, contudo, a produção de efeitos para o futuro. Com isso a eficácia se torna um regulador ideológico importante para as constituições, pois autoriza a concomitância de princípios, finalidades, obrigações, permissões, sem que esta concomitância resulte numa simultaneidade real.
Não obstante, há momentos políticos em que a postergação permanente da concreta produção de efeitos pode gerar insatisfações sociais muito fortes. A doutrina, mas nem sempre as próprias constituições que, neste ponto, não encontraram dispositivos definitivos, tem chamado a atenção para estes problemas, sobretudo na discussão das chamadas normas programáticas.
É nossa ideia que o assunto, porém, não deva circunscrever-se à doutrina ou limitar-se às regras hermenêuticas, devendo, ao contrário, receber um tratamento constitucional positivo.
Nossa intenção, nestes termos, é propor que a futura constituição tenha, nas suas disposições gerais, algumas normas que tomem por objetivo regular algumas das funções eficaciais das normas constitucionais. O problema diz respeito a dispositivos, como o da atual Constituição portuguesa de 1976, cujo art. 18 dispõe: "Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas". A nosso ver, um dispositivo desta ordem, conquanto politicamente saudável, traz complicações jurídicas de não pequena monta. E ademais, há outros casos que merecem também a nossa atenção.
Distinguimos, nesse sentido, entre três funções eficaciais: a função de bloqueio, a função de programa e a função de resguardo. De um modo geral, os preceitos constitucionais que estatuam princípios e finalidades, ainda que não sejam positivamente consagrados na legislação ou nas normas de administração ou nas decisões judiciais, impedem que tanto legislação quanto administração ou justiça, disponham de forma contrária ao que eles propõem. Esta função eficacial negativa resulta numa espécie de bloqueio para a atividade do poder público que, não podendo ser obrigado a expedir normas que tornem efetivos os princípios e as finalidades, não pode, ao menos, contrariá-los. Para esta função de bloqueio nossa proposta é de que, nas disposições gerais conste um dispositivo que estabeleça claramente esta função, conferíndo-se a eventuais prejudicados o direito de exigir, perante o Judiciário, a declaração de inconstitucionalidade de quaisquer atos normativos soberanos que venham a contrariar os princípios e finalidades acolhidos pelos preceitos constitucionais.
Além deste caso (função de bloqueio), que abarca inclusive as normas fundamentais de modo geral, há outro que se refere às normas que traçam esquemas gerais de estruturação e àquelas que instituem programas de ação visando à realização dos fins sociais do Estado mas dependendo de integração legislativa. Neste caso (função de programa) parece-nos que a constituição deva conter um mecanismo capaz de, com certo equilíbrio e prudente procedimentalização, permitir que estas normas possam vir a adquirir eficácia em face de alterações sócio-políticas e económicas. Nossa sugestão, nesse sentido, é que para essas normas se reconheça a possibilidade de integração legislativa através de iniciativa popular. Esta iniciativa poderia ser conferida a um certo número de cidadãos e ser exercitada por associações, atribuindo-se ao Poder Judiciário a função de controlar-lhes a competência bem como de verificar a qualificação eleitoral dos proponentes. Ademais, a lei aprovada poderia ainda ser submetida a um referendo. Com isto, a função de programa teria, por assim dizer, uma válvula capaz de controlar a pressão social em favor de uma real e positiva produção de efeitos quanto a normas cuja eficácia demanda integração legislativa.
Por último, naqueles casos em que a própria constituição estabelece a possibilidade de a eficácia de uma norma vir a ser futuramente limitada por uma norma de escalão inferior, cremos que se deva pensar num mecanismo capaz de resguardar os direitos ali em jogo (função de resguardo), criando-se, por exemplo, uma regra segundo a qual sempre que qualquer direito agasalhado pela constituição pudesse, em conformidade com o permitido pela mesma constituição, ser limitado por lei, esta deveria ter validade geral e nunca para casos particulares, devendo, alem disso, mencionar expressamente o direito (de ordem constitucional) por ela limitado. Um dispositivo dessa espécie encontramos, por exemplo, no art. 19 da Lei Fundamental da República Federal da Alemanha.
Em suma, e apenas como sugestão para debate, propomos os seguintes textos normativos, conforme os casos antes enumerados.
1. Função de bloqueio:
Art. As normas desta Constituição que instituam programas e estabeleçam princípios e finalidades são vinculantes para o poder público, constituindo limites para a expedição de atos normativos soberanos, conferindo aos prejudicados o direito de exigir a abstenção da prática dos atos que as contravenham.
2. Função de programa:
Art. As normas desta Constituição que instituam programas visando à realização dos fins sociais do Estado e que demandem integração legislativa, poderão ser objeto de iniciativa direta do povo, desde que seja subscrita por no mínimo 50.000 (cinquenta mil) eleitores, promovida por associações privadas constituídas legalmente há mais de dois anos e que tenham incluída em suas finalidades institucionais a defesa de interesses compatíveis com o conteúdo da propositura.
§ 1.° Caberá à Justiça Eleitoral fazer a verificação prévia da autenticidade e da qualificação eleitoral dos subscritores.
§ 2.º Caberá ao STF examinar e decidir previamente da legitimidade do interesse da associação promotora.
§3º O projeto de lei, se aprovado pelo Poder Legislativo, deverá ser submetido a referendo popular antes de ir à sanção presidencial.
3. Função de resguardo:
Art. Sempre que um direito, estabelecido por esta Constituição, puder ser, em conformidade com ela, limitado por lei, deverá esta lei ter validade geral e nunca para casos particulares, devendo além disso mencionar expressamente o direito por ela limitado.
São estas as sugestões que gostaríamos de trazer à consideração a fim de estimular a discussão em torno deste tema crucial que é o da eficácia das normas constitucionais.
Dezembro 1985.
Fonte: Revista de Direito Público, n. 76, São Paulo: 1985, pp. 67-69.