Convocação da Constituinte como problema de Controle Comunicacional

Tercio Sampaio Ferraz Jr

 

Há algum tempo atrás, o Jornal da Tarde (15.2.86) publicou uma resenha crítica de um livro de minha autoria — Constituinte — Assembleia, Processo, Poder (Ed. RT, 1985) — em que o Prof. Paulo Bonavides, além de referências que muito me honraram, levanta algumas dúvidas significativas sobre pontos que tocam de perto a questão do poder constituinte originário e derivado.

Uma das observações do ilustre Professor se referia à minha afirmação de que a ordem constitucional norte-americana não conhece a ideia de poder constituinte derivado. Reconheço que o texto, como está, é passível de objeção. É irrefutável que a Constituição dos Estados Unidos da América dispõe no seu art. V sobre a forma como se deverão processar as emendas constitucionais. Ao afirmar, porém, que a ordem constitucional daquele País só admite o poder constituinte originário, referia-me a um dos aspectos da noção de poder constituinte derivado: ao fato de que este poder se exerce sob limites estabelecidos pelo poder originário. Nesse sentido esclareço em meu texto que o constituinte (americano) é uma instituição corporificada no Congresso — certamente num processo que inclui a participação dos Estados-membros — a qual exerce funções constituintes sem limitações. Ao fazê-lo, respaldei-me, em parte, em observações de Karl Loewenstein (Direito Constitucional e Praxis Constitucional dos Estados Unidos, em alemão, 1959, p. 38) segundo o qual a ideia de limites materiais a uma mudança constitucional não existe no pensamento jurídico americano. Perguntar-se-ia, obviamente, não obstante, se não existiriam limites formais (o processo de emenda). O jurista Alf Ross (La Nocíón de Validez y Otros Ensayos) discute este ponto, ao indagar se seria possível, através dos dispositivos processuais do art. V da Constituição, uma emenda que viesse a alterar os próprios dispositivos do mesmo art. V. Quer-me parecer, sobre essa complicada questão, que, de fato, nada obsta que o processo de emenda seja alterado, permitindo a conclusão de que um poder que pode alterar as condições de seu próprio exercício não conhece limitações. Reconheço, no entanto, que o problema é complexo e envolve dois sentidos que fazem da expressão "poder constituinte" um conceito ambíguo, posto que contém, de um lado, a ideia de poder-força e, de outro, a ideia de competência jurídica. Ora, do ponto de vista da competência há um limite: mesmo a alteração do art. V teria de ser feita com respeito ao próprio art. V. Mas do ponto de vista da força (política), este limite não existe.

O assunto merece uma reflexão mais detida, pois tem uma repercussão curiosa sobre a forma como foi feita a convocação da constituinte no Brasil. De fato, a EC 26, de 27.11.85, votada, aprovada e promulgada conforme a atual Constituição, confere aos membros da Câmara e do Senado, a partir de 10.2.87, o poder de se reunirem unicameralmente em Assembleia Nacional Constituinte livre e soberana. Pelo art. 2.° dessa Emenda, a Assembleia será instalada pelo presidente do STF e, pelo art. 3º, a Constituição será promulgada após a aprovação do seu texto em dois turnos de discussão e votação, pela maioria absoluta dos membros unicamente reunidos, parece-me claro que, com base nos atuais arts. 47, 48, 49 cria-se, por emenda, uma competência que os revoga com eficácia a partir de 10.2.87, quando o Congresso Nacional, eleito conforme a atual Constituição, passa a ter um poder diferente do de emendar. O curioso é que temos, em tese, o exercício de um poder derivado para atribuir um poder originário.

A questão que se vislumbra no caso da Constituição americana toma aqui uma configuração bem explícita: um poder derivado, como é reconhecido no caso brasileiro, pela nossa doutrina, pode, sem perder seu caráter de derivado, instituir um poder originário? Se a resposta for afirmativa, pergunta-se: teria então havido uma espécie de renúncia à competência derivada? Isto é, estaríamos, na verdade, diante de um poder aparentemente derivado, mas realmente originário? Ou estaríamos, ao contrário, diante de dois poderes realmente derivados, de tal modo que a futura Constituição estaria legitimando o poder revolucionário de 64?

Comecemos por examinar o problema do seu ângulo formal. O citado Alf Ross, em seu Sobre el Derecho y la Justicia (trad. de Carrió, B. Aires 1963, p. 78) sustenta que as normas que outorgam competência jurídica para estabelecer outras normas formam uma série que não pode ser infinita regressivamente: há que se chegar a uma autoridade suprema. Embora esta tese lembre a norma fundamental de Kelsen. Ross a discute de um modo original, indagando se é possível que uma norma que preveja o procedimento de reforma constitucional possa se aplicar a si mesma, limitando, juridicamente, a autoridade suprema. Para negar essa possibilidade, o autor escandinavo invoca a carência de significado das proposições ou normas autorreferentes (por exemplo, não teria sentido uma norma que dissesse: é obrigatória esta obrigatoriedade). Invoca ademais que se uma norma de procedimento de reforma é alterada, a validade da nova norma teria de derivar sua validade da anterior, o que não seria possível, pois essa não seria mais válida, pois é com ela incompatível: estaríamos diante de um raciocínio em que as conclusões contradizem as premissas (derivaríamos a validade de uma norma de uma norma que não tem mais validade).

Pode-se contra-argumentar, como faz Bulygin ("La Paradoja de la Reforma Constitucional", in Alf Ross — Estudios en su Homenaje, Valparaiso 1984, t. I. p. 329 e ss.) que as duas normas, a antiga e a nova, não coexistem no tempo, sendo, pois, possível que a antiga fosse válida no momento em que se realiza o ato de promulgar a nova. Nesse caso estaríamos diante de dois sistemas sucessivos, entre si contraditórios, o que não impediria que a validade da nova constituição pudesse efetivamente derivar da antiga, que fica revogada. Esclarece, contudo, que a aplicabilidade da nova Constituição deveria derivar de um critério pertencente ao sistema vigente. Talvez se pudesse explicar isto de uma outra forma, como o faz Santiago Nino ("Ross y la reforma del procedimiento de reforma constitucional", in Alf Ross — Estudios en su Homenaje, t. II, p. 361), ao dizer que a posição de Ross é infundada desde que admita um juízo normativo inicial do raciocínio do tipo: "deve observar-se toda norma editada por um procedimento estabelecido por uma norma que deve observar-se no momento de editar a primeira".

Não me sinto à vontade, nem o desejo, para entrar na complexa questão lógica e semântica sobre proposições significativas que sejam genuinamente auto-referentes. Não obstante, a admitir-se o raciocínio de Bulygin e de Nino, teríamos de reconhecer que, no caso brasileiro, a futura Constituição estaria derivando a sua validade da anterior. Mas como ficariam, nesse caso, as noções de poder originário e poder derivado?

A noção de poder originário é, sabidamente, controvertida. De um ângulo estritamente normativista, há quem sustente que o conceito é extrajurídico. Juridicamente só podemos encarar o poder constituinte como competência. A força (social, política) que produz normas primeiras e fundantes da ordem sistematicamente encarada, sendo um momento pré-normativo, não pode ser juridicamente conceituada (assim Vunossí, Teoria Constitucional. I, 336; Carrió, Sobre los Limites del Lenguage Normativo, pp. 48-58). Na verdade, esta concepção toma a palavra "poder" na sua ambiguidade e distingue entre poder-força e poder-competência, não encontrando um meio de tratá-las na sua convergência. Ao contrário, como diz Carrió, quando se tenta atribuir ao conceito de poder originário a qualidade de "natureza híbrida" (Burdeau), ocorre uma impropriedade por desconhecimento da ambiguidade vocabular.

Na verdade, as teorias sobre o poder constituinte, p. ex., as democráticas, sustentam que o poder originário tem um titular imediato que é o povo. Elaborada a constituição pelo povo (em realidade pela assembleia que congrega os representantes constituintes) e estabelecido o procedimento de reforma, alterações subsequentes são executadas, aparentemente, por outro tipo de representantes (os que compõem, digamos, o Congresso Nacional), os quais, porém continuam sendo representantes do menino titular: o povo. Ora, pergunta-se, por que, no primeiro caso, os representantes constituintes hão de ter uma uma qualidade potestativa diferente dos representantes constituídos? A resposta só poderia ser: porque o titular de ambos os poderes (afinal, todo poder emana do povo...) no caso de poder originário age ilimitadamente e, no segundo caso — poder derivado — age conforme limites que ele próprio estabelece: autolimitação.

Esta autolimitação comporia, porém, um problema semelhante ao das normas auto-referentes. Autolimitar-se significa conferir normativamente restrições ao próprio exercício do poder. Ora uma norma que tem por emissor um agente que é o próprio emissor fere o princípio da alteridade: não é norma jurídica, quando muito norma moral. Assim ou estamos diante de uma ambiguidade vocabular e é preciso abandonar a noção de poder originário (que é carente de significado jurídico numa forma análoga à carência de significado das normas auto-referentes) ou reconhecemos que são dois poderes distintos — um força, outro competência — devendo-se aceitar que, em certas circunstâncias, o poder-competência engendra um poder-força, ao alterar as limitações estabelecidas para o exercício da própria competência.

Embora não tenha a pretensão de resolver a questão, parece-me que uma alternativa ao problema está no modo mesmo como se concebe a norma jurídica. Do ângulo linguístico, podemos falar em "norma sentido", "norma-prescrição" e "norma-comunicação". Assim como uma proposição, norma-sentido é uma prescrição (exigência, proibição, permissão) possível de um estado de coisas. Assim como uma asserção, norma-prescrição é o prescrito num ato de prescrever, realizado por um sujeito em uma ocasião determinada. É norma-comunicação, como uma comunicação, é um ato complexo no qual estão envolvidos pelo menos um emissor e um receptor, bem como as mensagens trocadas por ambos. Ora, a discussão doutrinária jurídica trata as normas em questão (constitucionais) como normas gerais concebidas ora como norma-prescrição ora como norma-sentido, visto que elas prescindem da identificação de endereçados: valem erga omnes (Alchouorón-Bulygin, Sobre l'a Existencia de las Normas Jurídicas, Valência. 1979, pp. 29-31). Pois bem: a meu ver é isto que conduz aos paradoxos mencionados.

Assim, se prescindimos da dimensão comunicacional, no caso de norma-sentido coloca-se o problema das normas auto-referentes e, no caso de norma-prescrição, aparece a questão da autolimitação do poder.

Sem aprofundar esta crítica, vejamos como o problema se põe se supomos uma concepção da norma jurídica como norma-comunicação. O princípio básico deste enfoque é o da interação. O sistema normativo é visto como um conjunto de partes em comunicação que trocam mensagens prescritivas. Essas partes são seres humanos que, estando em contato, assumem posições uns perante os outros. Distingam-se dois níveis da interação: a) as partes fornecem uma informação sobre um estado do coisas — aspecto relato ou conteúdo da comunicação; b) as partes, concomitantemente, fornecem uma informação sobre a sua relação, isto é, determinam como o relato deve ser recebido, qual a posição de um e de outro na interação — aspecto cometimento ou relação da comunicação — a saber, se devem ser consideradas como iguais, diferentes, coordenadas, subordinadas etc. O sistema normativo é concebido então como um sistema de controle, primariamente no nível cometimento mas também, secundariamente, no nível relato (posto que uma norma, pelo seu relato, pode metacomunicar sobre o cometimento de outra: relação de validade). Este controle, em situações normativas, pode ocorrer, socialmente, de vários modos: tabus, tradições, relações naturais de dependência (mãe e criança) etc. Nos sistemas jurídicos burocratizados, o sistema normativo se torna um sistema diferenciado e autônomo (mas não autárquico), em que o emissor assume uma posição de terceiro em face das relações sociais, isto é, de um outro, não partícipe, mas institucionalizado nesse papel de terceiro comunicador (dependendo da situação temos, o juiz, o policial, o administrador, as próprias partes enquanto vontades autônomas na elaboração de contratos, o legislador etc.,). O cometimento jurídico, sendo institucionalizado, toma assim o caráter de uma relação de domínio — relação autoridade/sujeito — e de estratégias de dominação altamente reflexivas em que normas se tornam objetos de outras normas, o poder incide sobre o próprio poder. Com isso se explica a possibilidade de formação de séries normativas e de relações de delegação, que culminam em normas primeiras, denominadas normas-origem.

Sistemas normativos possuem várias séries normativas, nas quais encontramos normas-origem e normas derivadas. As relações entre estas são relações de validade: uma norma valida a outra na medida em que lhe garante o cometimento (autoridade/sujeito), imunizando o emissor contra posicionamentos de indiferença, descrédito, numa palavra, de desconfirmação por parte do sujeito. Por exemplo, uma norma, pelo seu relato, confere competência a um emissor que, então, perante um sujeito, aparece como autoridade. Repressivamente, a norma imunizante é, por sua vez, imunizada por outra (ambas são válidas) e assim sucessivamente até uma norma-origem que só é imunizante.

Normas-origem não são, pois, válidas. São apenas efetivas, isto é, há uma adequação entre seu cometimento e seu relato de modo que elas têm sucesso: firmam- se. Como os sistemas normativos, porém, possuem várias normas-origem, deve-se dizer que o seu caráter de conjunto não é dado por uma única e primeira norma-origem, uma espécie de norma fundamental. Os sistemas normativos são equifinalistas: um mesmo ponto pode ser atingido a partir de várias origens. Como explicar, então, a coesão do sistema?

Admitimos que os sistemas normativos, enquanto sistemas comunicacionais, possuem padrões de funcionamento. O seu estar-em-funcionamento e a manutenção global da relação autoridade/sujeito. Estes padrões dependem de dispositivos calibradores (como o câmbio do automóvel, ou o termostato da geladeira) que regulam o funcionamento e permitem identificar uma norma-origem, isto é, dizer se uma norma, mesmo em desacordo com outras séries de validade, passa ou não a fazer parte do sistema, adquirindo o caráter de norma-origem. Esta regulagem é dada por regras de calibração que não chegam a formar um conjunto coerente, estão dispersas no sistema e são produzidas de diferentes modos. São, p. ex., regras de calibração o princípio da equidade, a determinação de que, na aplicação do direito, deve-se ter em conta o bem comum, que no Direito Público deve ser reconhecida a supremacia do interesse público. Estas regras são construídas pela Jurisprudência, pela doutrina, pelos costumes etc. Em suma, graças às regras de calibração podemos falar em coesão do sistema e, em consequência, de flexibilidade, rigidez, estabilidade, transformação e, sobretudo, de ruptura do sistema normativo.

Isto posto, consideremos o problema constitucional que propusemos de início. O cometimento das normas (relação autoridade/sujeito) admite duas formas básicas: a relação de sujeição-obrigação ou proibição e a relação de sujeição-permissão ou autorização. A primeira é uma relação assimétrica, complementar. A segunda envolve uma pseudo simetria. Isto é, na permissão jurídica ocorre uma espécie de libertas concessa. Ou seja, a relação autoridade/sujeito toma a forma de uma liberação, às vezes escondida sob o modo de um reconhecimento da liberdade. Pois bem, o problema que estamos examinando refere-se a normas cujo relato expressa a competência e o modo como deve ser modificada uma norma-origem: a constituição.

Constituições são normas-origem no sentido exposto: não são válidas, por que são a primeira de uma série, mas são efetivas. Sua preeminência é garantida dentro de um padrão de funcionamento dos sistemas normativos modernos, o padrão da legalidade. Este padrão depende de regras de calibração. Estas regras de calibração podem ser encontradas, por exemplo, no princípio da soberania. Assim, o conceito de soberania tem um caráter explicativo que, na verdade, esconde um caráter normativo, que traça as linhas do que deve ser, na medida em que se apresenta como compreensão e explicação do que acontece, mas superpondo-se à realidade, forçando-a, simplificando-a para reduzi-la a um sistema composto, unitário e coerente. Ora, o poder que faz de um soberano um soberano, que faz o Estado — enquanto unidade de domínio — surgir da sociedade composta de partes em mutáveis e efêmeras relações entre si, é o poder supremo de legislar. Isto, porém, conto diz Bobbio (O Futuro da Democracia, S. Paulo, 1986, pp. 132-133) é uma "figuração", posto que a vida política real é bem diferente. Pelo que proponho, a noção de soberania funciona exatamente como uma das regras calibradoras que garante à constituição o seu caráter de norma-origem dentro de um padrão de funcionamento em que o sistema toma a estrutura de uma hierarquia normativa na forma de uma pirâmide.

Dentro deste padrão-legalidade, a distinção entre poder constituinte originário e derivado funciona igualmente como regra de calibração. A ideia de um poder autônomo, inicial e incondicionado contraposto a um poder-direito derivado tem também um caráter cripto-normativo. É uma "figuração" que está na base, que regula, que calibra o sistema, permitindo reconhecer de um lado uma fonte principal do Direito que, uma vez exaurida a sua função fundante, deixa à norma posta a instauração das relações de subordinação. Graças a esta distinção é possível uma regulagem do sistema que, mantendo-se em funcionamento, troca de padrão: padrão-efetividade para padrão-legalidade.

Ora. examinando a estrutura da norma-comunicação que determina os procedimentos de modificação da constituição, há de se encará-la em toda a sua complexidade (relato e cometimento, mensagens e comunicadores). Tomemos o exemplo concreto:

Art. 48 — "Em qualquer dos casos do artigo anterior, a proposta será discutida e votada em sessão conjunta do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada quando obtiver em ambas as votações, dois terços dos votos dos membros de cada uma das Casas”.

O relato da norma em tela é composto de uma descrição da ação (que na doutrina costuma chamar-se hipótese, hipótese-normativa) — no caso o modo da discussão, o quórum e a forma de sua verificação — e uma descrição das condições da ação — a proposta conforme o "artigo anterior". O cometimento se localiza nas formas verbais "será", "considerando-se" que caracterizam uma obrigação que limita a competência do artigo anterior. Tomando-se, para simplificar, o conjunto, temos de identificar aí também o emissor e o receptor que compõem a norma-comunicação.

Dentro do padrão-legalidade, o emissor da norma que autoriza emendar é um papel institucionalizado denominado constituinte. Seu receptor e também um papel institucionalizado denominado poder constituído. Assim, se o receptor emendar a constituição conforme o relato da norma que autoriza emendar, temos uma nova norma — uma emenda constitucional — na qual o receptor da anterior é agora emissor, sendo receptores os emissores das normas de hierarquia inferior. Que acontece, porém, quando o receptor promulga uma emenda que altera o relato da norma que lhe confere competência? Aparentemente ele cumpre a norma e engendra um paradoxo. Na verdade, porém, isto não ocorre. Por quê? Porque ao promulgar emenda alterando o relato da norma que autoriza os procedimentos para emendar, o receptor (poder constituído) se põe como emissor (poder constituinte). Isto é, já não é a norma que autoriza os procedimentos de emenda que está sendo acionada, mas uma outra, com o mesmo relato, mas com outro emissor e outro receptor. É uma norma nova, uma norma-origem.

Uma norma que prevê procedimentos modificadores de um sistema normativo, enquanto um conjunto de normas-atores-comportamentos, é, sabidamente uma — denominada — norma constitutiva. Isto é, trata-se de uma norma que constitui ela própria o comportamento que ela prevê: regras, atores e movimentos são solidários, pois o ator só é ator e o movimento só é movimento na regra. Sua alteração, ou porque se altere o movimento prescrito ou porque se altere o emissor que prescreve ou o receptor da prescrição, implica nova norma. Assim, vamos denominar de norma 1 (N1) aquela que tem por emissor a autoridade Al e por receptor o sujeito S1 e por cometimento uma facultação (Fl) (A1 faculta S1); o relato dessa norma é a descrição de procedimentos para emendar a constituição (P1). Graficamente:

N1: Al cometimento (Fl) S1

(emissor) relato (P1) (receptor)

Ora, quando o sujeito S1 cumpre o relato (P1) para alterar a norma N1 na verdade ele passa a ocupar o lugar de Al, sendo que o seu lugar passa a ser ocupado por outros receptores (digamos, S2). Assim, quando se cria um procedimento novo (P2) com base no procedimento antigo (P1) obtendo-se a norma N3, a derivação não é entre N1 para N3, mas de N2 para N3, sendo N2:

S1 cometimento Fl S2

relato P1

No caso concreto: quando o Congresso Nacional promulga uma emenda (n. 26) conforme os arts. 47 e 48 da Constituição de 69, emenda que altera os próprios artigos, não é a norma dos arts. 47 e 48 que está sendo utilizada, mas uma outra, pois o poder constituído já assumiu o papel de constituinte. Vê-se, assim, que não ocorre a auto-referência. A ilusão da auto-referência está em que, formalmente, são os arts. 47 e 48 que estão sendo aplicados quando, na verdade, já estamos diante de uma outra norma (com a mesma numeração, o mesmo relato, a mesma relação de cometimento, mas com outro emissor e outro receptor, os quais integram a norma-comunicação: emissor passa a ser o Congresso Nacional e receptor a futura Assembleia Nacional Constituinte).

Sabemos, no entanto, que nem toda norma-origem integra o sistema na sua coesão. Se, por hipótese, uma "frente partidária extraparlamentar" a tivesse estabelecido, teríamos dificuldade de integrá-la no sistema, pois não haveria como calibrá-la: o ato de força seria patente. No caso, porém, invoca-se uma regra de calibração: o Congresso Nacional, bem ou mal, representa o povo (abstração feita dos detalhes políticos: a presença dos senadores "biônicos"). Esta regra de calibração é que permite integrar a norma-origem no sistema, o qual, assim, se mantém em funcionamento, trocando, porém, o seu padrão: do padrão-legalidade para o padrão-efetividade. O padrão-efetividade está em uso no momento em que aparece a nova norma-origem. Daí para a frente, volta o padrão-legalidade.

Por último, é preciso realçar que, obviamente, a noção de sistema normativo, que estamos usando é bem distinta da noção tradicional da doutrina. Esta o entende como “ordem hierárquica”, que introduz uma racionalidade nada empírica não na teoria mas nas próprias leis. Contra Kelsen, para quem "uma norma não forma parte da ordem jurídica senão porque foi editada conforme as disposições de outra norma dessa ordem" (Reine Rechtslehre, Viena 1960, p. 239), admitimos que séries hierárquicas constituem apenas aspectos parciais do ordenamento. O sistema normativo tem a estrutura de uma rede ou malha auto-reguladora de normas-comunicação, com enfoque especial para o seu dispositivo calibrador, cuja ruptura ocorre apenas quando há uma sobrecarga de informações, isto é, entrada de novas normas-origem que não conseguem ser calibradas no interior do próprio sistema. Dentro desta noção teríamos finalmente que reconhecer que o sistema normativo brasileiro, com a convocação da constituinte, não se rompe.

Na verdade, o sistema apenas troca, por um momento, o seu padrão de funcionamento. Ou, como disse argutamente o então candidato Tancredo Neves "Uma Assembleia Nacional Constituinte é mais interessante quando há um vazio de representação popular. Quando não existe um Congresso funcionando, convoca-se uma Constituinte. Mas, com um Congresso em funcionamento — e seria a primeira vez que isto aconteceria em nossa história — delega-se poderes ao Congresso. E não há divergência em substância" (cf. Jornal da Tarde de 22.9.84).

FONTE: Tercio Sampaio Ferraz Jr, Convocação da Constituinte como problema de controle comunicacional, Revista de Direito Público , nº 81 – Janeiro- Março de 1987 – Ano XX, pp. 134/139.

(Digitalizado e conferido por Gabriela Faggin Mastro Andréa)