Tercio Sampaio Ferraz Jr.
“O Brasil está precisando importar políticos”, dizia-me um ascensorista de um ministério em Brasília, “os daqui são todos corruptos”. A frase, dita por um homem simples, parece espelhar essa imagem negativa que o país tem de si mesmo. Estes estereótipos, o político corrupto, o funcionário público desonesto, o desamor do cidadão pelo estrito cumprimento das leis, a preferência pelos jeitinhos, não esclarecem, porém, totalmente o problema.
A condenação da corrupção, vista hoje comum uma das maiores questões nacionais, não é universal, nem o uso de redes informais dentro de sistemas formais ou mesmo formas diretas de corrupção é um problema exclusivamente brasileiro.
A utilização de “pistolão” para obter empregos ou favores, em países do Primeiro Mundo, não é fenômeno que lhes seja estranho. E os escândalos, noticiados pela imprensa, na Alemanha, no Japão, nos EUA, na Itália mostram uma realidade dura e crua. Por que então o problema parece mais agudo entre nós? Por que esta atual condenação nacional da corrupção?
A estigmatizarão moral da corrupção pode ter muitas explicações (cf. Perdomo e Capriles: “Corruption y Control”, 1991), uma é de ordem econômica: em situação de escassez, a operação de um sistema acaba por criar mecanismos paralelos e que se vê de fora reage. Uma espécie de inveja dissimulada, abortada da na famosa frase: instaure-se a moralidade ou nos locupletemos todos!
Outra correspondência a uma espécie de mudança no padrão de moralidade. Um povo acostumado ao reconhecimento dos subornos, das comissões por fora, das fraudes, das extorsões e que chega a aceitá-los como regras do jogo (“esse país não tem mesmo jeito”) resolve pôr o comportamento público a limpo, talvez movido por uma percepção mais clara, ajudada pelos meios de comunicação, da grande injustiça distributiva provocada pela corrupção generalizada ou por atos particulares de corrupção. Os corruptos deixam de ser vistos com certa complacência (“rouba mas faz”) para lhes imputar parcelas dos males sociais, inflação etc.
Esta última hipótese vem acompanhada de uma alteração na própria concepção do papel do Estado na economia. As políticas de intervenção que agigantam o aparelho burocrático supõem que o Estado zele pelo interesse público. No entanto, o complexo regulativo daí resultante – incentivos, subvenções, subsídios, controle de câmbio, de preço, empresas estatais adquirentes de produtos e serviços etc. – esconde ou mascara o fato de que, na realidade, funcionários defendem antes interesses individuais ou de grupos.
Assim, do ponto de vista do agente econômico, persuadir o funcionário que estabelece os regulamentos ou que tem o poder discricionário de aplicá-los a adotar uma posição favorável passa a ser muito mais proveitoso do que qualquer esforço de aumento de produtividade. Essa persuasão ocorre ou indiretamente, por meio de contribuições eleitorais, que mais tarde se converterão em influência, ou diretamente, por meio de suborno, gerando, na outra face da medalha, as extorsões. Com a alteração da confiança nesta política de intervenção, muda a mentalidade; e a solidariedade com o corrupto, que rouba mas faz, é substituída pela aversão ao estado interventor e suas mazelas.
Na verdade, a corrupção de hoje não é maior do que a de ontem, nem em nosso país maior do que em outros. Sua veemente condenação moral mostra, no entanto, que a própria classe média está mudando. Se o Estado interventor centralizava recursos, era lógico esperar que ele fosse também o maior (e melhor) empregador (em geral das classes médias) e investidor, para as indústrias nacionais.
Daí as relações de solidariedade primária como o sistema (apadrinhamento, clientelismo, empreguismo) e a complacência com as mediações institucionalizadas (a gorjeta, a comissão, o sobre preço, o superfaturamento etc.). A decadência do Estado como empregador e investidor provoca, pois, por seu turno, brechas nesta solidariedade e naquela complacência. Cresce a indignação social (leia-se das classes médias) em face da corrupção.
Para isso contribuem o rendimento político das denúncias - os políticos que denunciam, que propõem comissões de inquérito, ganham em imagem num país em mudança -, mas também o marketing do escândalo, nos meios de comunicação, que funciona como uma instituição de controle. Na verdade, a liberdade de imprensa é uma instituição democrática que permite a produção e o controle do consenso. Ela e fonte de legitimação da vida política e social porque permite aos outros a manifestação do seu desacordo.
Outros compõem esta massa anônima que se engaja pelo silêncio. Sua manifestação de acordo ou desacordo não ocorre de fato, mas sua presença simbólica no controle dos acontecimentos, de sua interpretação, é decisiva para a formação da opinião pública. Ora, porque os outros, em geral, são silentes, entende-se a ligação entre imprensa e escândalo, o inusitado, o que sai das medidas. Sem ela (e sem escândalo) a sociedade corre o risco de afundar-se num conformismo, fazendo do consenso um insuportável marasmo social.
Em função disso pode-se dizer que, num certa medida, a capacidade de produzir com êxito, um escândalo, define o que, num sistema político, se chama corrupção. Esta última observação nos dá, afinal, uma pista para o caráter agudo do problema da corrupção entre nós: em muitos dos países do Primeiro Mundo, a possibilidade de que escândalos venham a público é dominada por um código de privacidade que se alimenta de sexo ou do estilo de vida das elites do poder, mas que encobre os desvios da moral pública. No Brasil, aparentemente, se dá exatamente o contrário.
Fonte: Folha de São Paulo, 21-05-1993.