Tercio Sampaio Ferraz Jr
Conforme nos mostra a moderna teoria dos sistemas (cf. Luhmann: Rechtssoziologie, Hamburg, 1972) sociedades são sistemas estruturados de ações significativamente relacionadas que excluem do rol de seus componentes o homem concreto. Não se trata, pois, de conjunto de indivíduos, enquanto organismos controlados por um sistema psíquico (personalidade), pois o sentido de conexão dos seus atos não coincide com a conexão de sentido que liga as ações de um sistema social. Embora indivíduo concreto e sistemas sociais estejam estruturados para coexistir, um é para o outro um problema, isto é, uma complexidade indeterminada e contingente, a ser enfrentada, isto é, controlada. O homem concreto é um conjunto aberto de possibilidades de ação. Ao viver em sociedade. estas ações se veem qualificadas e combinadas de modo a limitar aquelas possibilidades. Por exemplo, o indivíduo concreto está capacitado a procriar mas, socialmente, a procriação ganha um sentido estruturado como paternidade, paternidade responsável etc. Para o indivíduo isto pode significar um problema de adaptação, aculturação etc. Para a sociedade, um problema de aceitação, repulsa, mudança etc.
Esta concepção de sistema social vens repercutindo no Direito. Se ainda durante o século XIX o mercado, por exemplo, pôde ser visto pelos juristas como um conjunto harmônico de relações bilaterais (câmbio e acomodação de interesses, sociedades como conjuntos de indivíduos), aos poucos foi-se dando conta de que a complexidade do mercado não explicava, por meio da concepção individualista, a criação de bens públicos como a ordem, nem era capaz de lidar com as externalidades (os efeitos de decisões que afetam terceiros que não tiveram parte nelas: por exemplo, decisões de investimento que geram poluição), nem era capaz de explicar os desvios funcionais do indivíduo (por exemplo, o consumidor que escolhe mal por força da propaganda). Ou seja, percebia-se que o mercado, como sistema social, apontava para estruturas complexas. irredutíveis à sorna das estrutura, individuais.
Daí, por consequência. a noção de que sociedades mercantis não se reduzam a uma acomodação de vontades e interesses próprios, mas devam ser compreendidas a partir de objetivos comuns, no sentido de que a satisfação do interesse pessoal das partes passa pela realização de um escopo comum que elas compartilham, mas cuja estrutura obedece a outras regras que não se reduzem à mera disciplina de condutas (cf. Túlio Ascarelli, “O Contrato Plurilateral”, in Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Comparado, 2ª ed. São Paulo, 1969, pp. 255 e ss.). Daí a percepção de que sistemas sociais mercantis não podem ser disciplinados apenas por meio de regras de conduta, mas constituem um jogo em que é decisiva a presença de normas secundárias de competência e organização.
No Direito isto tem ainda uma outra importante repercussão na concepção de pessoa física e jurídica, conceitos que envolveram, no passado, conhecidas disputas teóricas por estarem presas ainda à noção de sistema social como conjunto de indivíduos. Consoante, porém, a nova noção. a ideia de pessoa deve estar vinculada à de papel social. Entende-se assim que indivíduos concretos, capacitados a unia pluralidade indeterminada de ações, em sociedade, têm suas atividades reduzidas a papéis institucionalizados socialmente, isto é, conforme uma estrutura própria irredutível à dos indivíduos. A institucionalização de papéis é condição da interação: ao institucionalizar papéis, o sistema social controla expectativas e confere segurança ao intercâmbio. A interação é percebida não como relação entre indivíduos, mas entre papéis: pai/filho, contribuinte/poder público, comerciante/freguês etc. Nesse cenário, a função do Direito é disciplinar tais papéis e suas relações, aumentando os seus contornos de certeza e segurança, promovendo-lhes uma contínua e dinâmica especialização. Assim. o papel de juiz não é apenas de quem julga pendências, mas depende de um estatuto próprio. Assim, quem se dirige ao juiz para obter justiça, embora não desconheça nele a pluralidade de papéis (pai, esposo, filho, membro de um clube etc.), percebe nele a neutralização relativa de uma série de papéis possíveis, o que garante a imagem da imparcialidade, distância, profissionalidade etc.
Nestes termos, o que chamamos de pessoa nada mais é do que um feixe de papéis institucionalizados. Quando na disciplina dos papéis as ações correspondentes fazem com que eles se comuniquem entre si (o papel de pagador de impostos se comunica com o de pai, de maior de 65 anos, de funcionário, de possuidor de uma certa renda, de necessitado de serviços de saúde, de nível mínimo de gastos correntes etc.), formando um conjunto indefinido, temos uma pessoa física. Quando, ao contrário, se trata de um conjunto de feixes determinado de papéis, agrupados por um estatuto definido que delimita papéis comunicantes à exclusão de outros, temos uma pessoa jurídica (feixe de papéis isolados e integrados por estatuto próprio num sistema orgânico ― órgão ―, com regras próprias de conduta e competência, que neutralizam a relevância de outros papéis possíveis).
Por isolar e excluir (neutralizar) papéis, a pessoa jurídica por assim dizer desconsidera a pessoa física, isto é, não permite que os indefinidos papéis sociais assumíveis pelo agente entrem em consideração na avaliação das atividades, na responsabilização das ações etc. No Direito moderno, no entanto, por razões de segurança e certeza, é possível recuperar a dimensão indefinida das ações possíveis da pessoa física no interior da pessoa jurídica, por exemplo, nos casos de fraude, simulação, em que se aplique o princípio do disregard. Neste caso, papéis excluídos pelo estatuto são reconsiderados para uma mais justa e eficiente responsabilização. Ou, num outro exemplo, toda a problemática da responsabilidade penal das pessoas jurídicas envolve este tema de inclusão/exclusão de papéis sociais num conjunto dado. Em suma, a distinção entre pessoa jurídica e pessoa física não é radical, mas comporta graus: uma pessoa jurídica pode ser mais ou menos aberta à pessoa física e vice-versa. Cabe a pesquisa empírica do direito discriminar as diferentes possibilidades (cf. o nosso Introdução ao Estudo do Direito, São Paulo, 1994, 2ª ed., pp. 155 e ss.).
Quando a doutrina fala em fundo de comércio como um bem imaterial que não se confunde com muitos elementos materiais e imateriais que o compõem está, a meu ver, lidando com problema relacionado a compreensão de um sistema social. Isto porque sua configuração jurídica, em se tratando de bens conjugados que dão origem a um novo bem levanta uma controvérsia quando se tenta elaborá-la por meio das tradicionais categorias jurídicas. Algumas destas elaborações, fundo de comércio como universitas juris ou destinado a determinação fim, encontram dificuldades de utilização no direito brasileiro. A primeira, porque a universalidade de direito só se constitui por força de lei que não há entre nós (com o projeto do Código Civil viríamos a conhecer uma tal estrutura legal). A segunda exige uma autonomia subjetiva do patrimônio que igualmente não se reconhece entre nós. Por isso a explicação mais corrente entre nós é da universalidade de fato.
A universalidade de fato é constituída por força da vontade autônoma que conjuga bens e os destina a um fim. Conjugar e destinar são ações responsáveis por um novo bem. Este novo bem, imaterial, tem a ver com a formação de clientela, razão pela qual, na doutrina de origem francesa, houve quem o identificasse com ela (Planiol, no seu Traité Elémentaire de Droit Civil). Com mais precisão, outros (La Morandière: Dioá Commercial, 1965), a clientela está sujeita à concorrência, não podendo constituir um do comerciante. Seu direito é sobre os elementos que conjuga para conquistar, reunir uma clientela. E esta organização (ação) que constitui o fundo de comércio. Na mesma direção, o belga Van Ryn fala em elementos unidos para a exploração do estabelecimento.
Entendendo-se o estabelecimento como empresa no sentido estrito ("esfera de atividades criada pelo exercício profissional do exercício, como as coisas e direitos que são geralmente inerentes ou acessórias ao mesmo, incluindo as dívidas") será essa esfera de atividades, que constituirá o fundo de comércio ou estabelecimento (Voo Gierke: Derecho Comercial y de la Navegacion, trad.. argentina). Na doutrina italiana conhecemos várias correntes que ora falam de uma universalidade de fato ou então de direito, ora como um conjunto impossível de reduzir-se á uma unidade ora enveredando por soluções ecléticas (sobre estes diferentes posicionamentos cf. Tamburrino: Manuale de Direito Commerciale, 1962), tendendo em suma para a noção de patrimônio separado.
No Brasil, à falta de uma estrutura legal expressa, a tendência é assumir o fundo de comércio como universalidade de fato, como instrumento do exercício da empresa, organizado pelo empresário (v., entre outros, J. Eunápio Borges, Curso de Direito Comercial Terrestre. v. I, 1ª ed., Rio de Janeiro, 1959). É da boa organização que resulta um grau de eficiência (aviamento) capaz de efetivar-se numa clientela. Essa organização é base para o fundo de comércio (Fond du Commerce) ou estabelecimento (azienda).
Vê-se, por aí, em termos de sistema social, que o agir organizadamente ou a ação de organizar é considerada como indispensável ao fundo de comércio. Um estabelecimento pode até não ter clientela, mas a clientela que conquista resulta de uma "qualidade" (J. Eunápio Borges) que, sistematicamente lhe é institucionalizada. Nesse sistema, o empresário é um organizador, sendo a organização (o todo organizado) um valor econômico "superior ao da soma dos elementos em que se desdobram o capital e o trabalho nele (i.e., no estabelecimento) empregados” (J. Eunálio Borges. v. I. § 186). E com base na organização e que se tem o aviamento, "verdadeira medida do valor de um estabelecimento comercial" (§ 187). Ou, na palavra de F. Ferrara. "questo stato di Organizzazione... non viguarda solo i beni ma tutti elementi dell'azienda” (cit. por J. Eunápio Borges, § 186. nota 14).
A organização, verdadeira base do fundo de comércio, é elemento típico de neutralização de papéis, próprio da pessoa jurídica. Ou seja, sociedades constituídas como pessoas jurídicas, cujo centro aglutinados é o papel organizador, produzem um sistema orgânico que envolve, qualifica e delimita todos os demais elementos, que passam a ter sentido por ela e apenas cm função dela. Por isso, em pessoas jurídicas com base na organização é possível falar se num bem que não se confunde com a soma das partes, o fundo de comércio.
O que se discute, neste ponto, é um escritório de engenharia, prestador de serviços técnicos de engenharia, enquanto sistema social, tem na ação de organizar, na organização, um elemento chave a explicar a capacidade de produzir lucros e de conquistar uma clientela, portanto um elemento aglutinados que neutraliza a pessoa física, ao vincular o sentido de sua atividade ao todo orgânico.
Ora, nas sociedades prestadoras de serviços profissionais liberais temos um sistema social em que o papel organizador, se não está ausente, não é incorporado à atividade correspondente como elemento chave. Entende-se, por isso, que Waldermar Ferreira distinga entre freguesia e clientela, ao dizer que, propriamente, profissionais liberais não têm fregueses mas clientes (Tratado de Direita Comercial. 7º v., § 1.554, São Paulo, 1962). Assim, o cliente é papel social que exige do prestador de serviço um papel institucionalizado que irão se isola, irias agrega outros. O profissional liberal não se apresenta como órgão definido estruturalmente (gerência, diretoria), mas como pessoa física. Uma gerência neutraliza qualidades da pessoa. não se personaliza pois isola outros papéis. Já o profissional não é uma competência não comunicante, mas um conjunto amplo que, conforme a profissão, emprega vários papéis. Um bom médico operador é também um indivíduo de mãos firmes, que tem limites de idade, que possui certas habilidades, comportamentos etc.
Do mesmo modo, o engenheiro exige, na sua qualificação, a conjugação aberta de vários papéis sociais. Da atividade de um escritório de engenharia, a relação de confiança que permite a interação social (com clientes) não decorre de organização, mas, de um conjunto que qualifica a chamada competência profissional. Um escritório. nesse sentido, não tem um fundo de comércio, mas um centro de competência que resulta da atividade de cada profissional. Nesse sentido W. Ferreira diz que a clientela exprime patrocínio, proteção ao cliente e não freguesia enquanto conjunto de pessoas, que frequentam o estabelecimento e nele fazem, habitualmente, suas compras (cit. § 1.554).
Em consequência, a capacidade técnica do profissional é algo que lhe pertence, não é um ativo social. A conjugação de suas atividades profissionais num escritório dá aos sócios profissionais um direito à parte anualmente discriminada na repartição dos benefícios, mas não a uma parte indvisa de um proprietário único, o fundo de comércio da pessoa jurídica.
Desta orientação não discrepa a doutrina. Já em obra de 1970 (artigo publicado na Rivista del Diritto Commerciale e del Diritto Generais delle Obrigazione, v. 70) Giuseppe Ferri percebia que o obstáculo que tradicionalmente se opunha à admissibilidade de uma sociedade de profissionais era dúplice: de um lado, o exercício das profissões liberais não podia em si e por si ser qualificado como exercício de uma atividade econômica: de outro lado, o caráter estritamente pessoal da profissão não autorizava conceber-se uma atividade profissional referível a um ente abstrato ou a um grupo unificado (p. 231 ). Ademais que aí se fala em profissões protegidas legalmente. Assim, na jurisprudência italiana, embora se admitisse a existência de uma organização empresarial que se utilizasse do trabalho intelectual de outros (os profissionais) dela se deveria distinguir a sociedade de profissionais como um fato próprio dos profissionais (pp. 323, 233). Nesta, ainda que sua atividade se inserisse em uma atividade mais complexa ainda que os resultados econômicos de sua atividade viessem, no todo ou em parte, em benefício de terceiros, ela conservaria uma plena autonomia de posições e determinações, assumindo-se a plena responsabilidade pelo que ela operasse. Ou seja, mesmo quando inserida em uma organização (um escritório, uma sociedade prestadora de serviços), a atividade do profissional conservaria os caracteres próprios e, em particular, os caracteres que constituem sua conotação essencial. Especificamente, na sociedade que tem por objeto institucional o exercício em comum de unia profissão liberal não será uma realização econômica que a individualiza, enquanto algo distinto do exercício da profissão liberal, pois a obtenção dos valores. econômicos se acoplam ao exercício profissional e dele derivam (p. 234).
De qualquer modo, ainda que se reconheça que na sociedade de profissionais, a participação de um grupo de profissionais liberais ponha a serviço do cliente serviços que um único profissional não possa oferecer, donde a possibilidade de uma clientela ser mantida mesmo com a retirada ou a substituição de um profissional, o fato é que a sociedade de profissionais liberais exerce uma atividade que é própria, ontológica e juridicamente, das pessoas físicas. Neste sentido, a regulamentação da profissão liberal não é uma proteção do profissional, mas dos clientes, pois assegura que o profissional terá a capacidade técnica e as qualidades morais (pessoa física) necessárias ao exercício da profissão.
O que se deve ter em conta, nesse particular, é a distinção entre o papel social do empresário, que surge como advento do capitalista e que se refere a uma função criativa de riqueza, cuja base está na organização do que, do como, do deve e do quanto produzir e o papel social dos profissionais intelectuais (cf. Francesco Galgano, L'impreditori, Bologna 1975. pp. 2 e ss.. 6 e 13), cuja atividade não constitui uma empresa naquele sentido. A atividade destes últimos não promana essencialmente do elemento organização, mas da esfera pessoal, que oferece e realiza serviços, cujo resultado é independente da forma de organização do estabelecimento. Destarte, o exercício comuta de atividades profissionais liberais tem na sociedade respectiva apenas um fator exterior, que não se passa a execução individual do serviço (cf. Enrico Zanelli, La Nozione di Oggetto Sociale. Milano, 1962. p. 158).
É importante, neste passo, uma caracterização das sociedades prestadoras de serviço profissional à luz do direito brasileiro. Uma pista importante é fornecida. inicialmente, pelo Direito Tributário. Quanto a serviço, anote-se em primeiro lugar, do ângulo da relevância econômica do conceito, que este se reporta a um bem econômico (meio para satisfazer uma necessidade), porém, não se confunde com seu suporte material, portanto, não produz unia extensão corpórea e permanente, sendo um bem, em suma, que existe enquanto atividade e, enquanto se age. Do serviço pode resultar um produto, mas com ele não se confunde. Por isso, para efeito de tributação, o serviço não se reduz ao mero fornecimento de trabalho, mas engloba também outras atividades como oferecer hospedagem, diversão pública etc.
Nesse quadro peculiar deve ser entendido o serviço prestado por profissionais liberais. É o caso, por exemplo, de engenheiros, cuja atividade é regulada por 1ei (n. 5.194/66). Em princípio, o engenheiro não exerce atividade econômica, isto é, estritamente falando, não executa uma obra, não realiza uma atividade fim, mas uma atividade meio. Ele projeta, faz estudos, cálculos, orçamentos, fiscaliza construções. mas não as ergue. Por isso, diz Hely Lopes Meirelles, "a atividade técnica e os encargos ético-profissionais (grifei) do Engenheiro e do Arquiteto, enquanto prestam serviços de suas especialidades” não se confundem "com a atividade industrial e os encargos econômicos dos que se encarregam de executar materialmente a construção (“A Construção Civil e a Regulamentação de seus Profissionais”, in Revista de Direito da Procuradoria Geral, 1961, v.10. p. 45). Sobre essa atividade de assinar plantas, fazer vistorias, acompanhar a execução de projetos, dar assistência técnica é que incide o ISS (cf. Bernardo Ribeiro de Moraes: Doutrina e Prática do Imposto sobre Serviço, Ed. R'I'. 1978. pp. 4 1 e ss).
Nesse sentido pode-se dizer que o exercício de profissão liberal tem como cerne a dignidade da liberdade, que congrega e comunica entre si uma série de papéis sociais possíveis (pessoa física), cujos traços são o domínio técnico somado à independência e autonomia, postas a serviço do cliente e exercidas no interesse deste (cf. Moreira Alves, JSTF-Lex68/280). Ao contrário, a rigor, a pessoa jurídica não exerce semelhante atividade, pois ela não estuda, não se forma em curso superior, não agrega qualidades psíquicas, apenas circunscreve e delimita competências orgânicas (cf. Joacy Teixeira Porto, Questões Práticas do Imposto de Indústria e Profissões, São Paulo, 1964, pp. 25 e ss.).
Esta configuração personalíssima repercute no Direito Administrativo. Veja-se, por exemplo, a prestação de serviços profissionais especializados, em que o grande relevo é dado à pessoa física. Nesse caso, mais do que a mera habilitação, numa licitação se exigirá o currículo pessoal dos, componentes da sociedade prestadora de serviços, tornando-se obrigatória a execução do serviço pela pessoa física relacionada, a ponto de, se falecer o profissional da sociedade prestadora, levantar-se a questão de se poderia ela substituí-lo (cf. Marçal Justem Filho, Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, Rio de Janeiro, 1994, p. 82, o qual, em princípio, nega essa possibilidade).
A singularização pessoal da atividade de engenharia é particularmente clara na Lei nº 5.194/66. Do seu art. 7º, alíneas a até f, constam atividades e atribuições exclusivas da pessoa física. E mesmo para as atividades das alíneas g e h, admissíveis para pessoas jurídicas, a exigência da participação pessoal (pessoa física) não se dispensa (art. 14). E o art. 2º, § 2º da resolução n. 307/86 do CREA exige, para a execução de contato escrito ou verbal, destinado à execução de obras a “Anotação de Responsabilidade de Técnico (ilegível)...
Por todas essas razões pode-se entender a sociedade de profissionais liberais, como observa o citado Francesco Galgano, esteja fora do campo do imprenditore, cujo requisito funcional básico é a organização, e longe da ativitá produttiva organizzata. Daí também a conclusão de Zanelli (cit. p. 158) de que a eventual "organização" técnica da sociedade de prestadores de serviços liberais (que promanam essencialmente da esfera pessoal) tenha caráter meramente instrumental, não integrando o complexo de bens e serviços da pessoa jurídica como um fundo de comércio (azienda). Ou, como diz Galgano, não se pode definir como organizzata, ainda que seja produtiva de bens e serviços, a atividade dos que oferecem ao mercado as próprias prestações intelectuais, nas quais se assenta sua função intermediadora (cit. p. 16).
A doutrina e a jurisprudência brasileiras caminham na mesma direção. Não se nega que da exploração comercial, com fundamento na organização, resulte um conjunto de bens corpóreos que vêm a constituir o fundo de comércio, mas, no caso de sociedades formadas para o exercício de atividades profissionais liberais, em função da confiança pessoal, não se pode falar em funda de comércio propriamente dito (cf. Mário Figueiredo Barbosa: Valor da Clientela no Fundo de Comércio, São Paulo, s.d., p. 79). Na verdade, qualquer tentativa de se valorizar o aspecto meramente patrimonial da sociedade prestadora de serviços profissionais liberais só poderia ocorrer em detrimento do aspecto profissional de sua atividade. o que centraria o espírito da legislação específica. E esta conclusão não é obstada por uma distinção, crescentemente em desuso, entre sociedade comercial e sociedade civil, na medida em que o importante, no caso, é a estrutura funcional do sistema social (ou com base organizatória ou com base personalíssima) - (sobre o (ilegível) assim como os pensamentos de W. Bulgarelli à jurisprudência do TJSP in Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômica e Financeiro, n. 58, abril-junho 1985, nova série, ano XXIV, pp.97 e ss.).
Em suma, como se observou anteriormente, se, particularmente no Brasil, o fundo de comércio é tido como universalidade de fato cujo fundamento é a atividade organizatória, o que permitiria atribuir a essa organização um valor superior ao da soma dos elementos em que se desdobra, o capital e o trabalho, no caso das sociedades de profissionais liberais, cujo centro aglutinador é a excelência profissional personalíssima, não há corno ir-se além daqueles elementos, não se podendo falar em fundo de Comércio. Destarte, uma universalidade de fato, em que todas as atividades das pessoas (físicas) só alcançam relevância no todo e por causa do todo, não chega a ocorrer. Na sociedade de profissionais liberais, o engenheiro não engenheiro porque é sócio, mas é sócio por que é engenheiro.