Decreto-Lei, Instrumento Discricionário

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

 

Legislar por decreto-lei tornou-se uma prática corriqueira no processo legislativo nacional. Sendo, em princípio, na sistemática constitucional brasileira, uma medida excepcional, hoje ele é usado largamente, haja vista que, só no período do último recesso parlamentar (83-84), saltou-se do n.° 2.070 para o n.° 2.108 em dois meses e meio.

Justifica-se o decreto-lei como medida necessária ao atendimento da conjuntura social contemporânea, cuja celeridade de transformação exigiria instrumentos igualmente rápidos, capazes de acompanhar agilmente a demanda de normas. Este fenômeno, que hoje se acentua, já aconteceu uma vez, em plena revolução industrial, no século XIX, quando, progressivamente, a produção legislativa, através dos parlamentos, substituiu o direito não - escrito, costumeiro, dos séculos anteriores. O capitalismo florescente condicionou e exigiu um direito positivado por mão e obra de um legislador personalizado, capaz de atender à multiplicação dos eventos provocados pelo homo faber. É esta tendência, justamente, que neste final de século XX se acentua, sornando ao número dos eventos a velocidade das transformações e a sua concomitância universal: de repente, um novo invento, uma nova fórmula atravessa os continentes e se torna realidade, em todo o mundo, gerando comportamentos novos, conflitos que exigirão providências normativas imediatas.

Assim, da mesma forma que a economia sofre os efeitos desta velocidade e desta concomitância, agilizada ademais pelos meios de comunicação, também o direito parece, então, ter de se curvar às circunstâncias. Se o processo legislativo parlamentar, do passado, foi adequado um dia, quando da primeira Revolução Industrial, hoje ele pareceria moroso para uma realidade em rápida mudança. Daí a necessidade de instrumentos mais ágeis, como o decreto-lei, elaborado em gabinetes e promulgado sem grandes delongas.

Não se pode negar que estes argumentos de ordem social, política e econômica estão fundados em fatos. Não há como ignorar a celeridade e a concomitância espacial e temporal das mudanças na realidade. O remédio proposto, contudo, ao menos no que se refere ao decreto-lei, tem criado uma situação indesejável. Se não vejamos.

Trata-se, como se sabe, de um instrumento do Poder Executivo, especificamente do presidente da República, inserido no processo legislativo com o objetivo de atender aos casos de urgência e de situações graves, as quais pediriam, em certos momentos, prontas decisões do governo. Tendo por base o modelo econômico do desenvolvimento acelerado, foi inserido na Constituição em virtude da agilidade legislativa que proporciona, cercado, em tese, de cautelas necessárias à exceção que ele constitui em face da lei.

Nos últimos tempos, contudo, algumas fissuras têm sido anotadas no seu regime jurídico. Com efeito, ainda recentemente, a série contínua que versou a questão salarial, com a edição em prazo curto de decretos-Ieis, subsequentes, acompanhados de rejeição pelo Congresso, nos chamou a atenção para um indício de esgotamento das suas possibilidades funcionais. Utilizado como foi, a consequência desta série de edições e rejeições foi, sem dúvida, uma instabilização da ordem jurídica, afetando a sua certeza e segurança.

Esta instabilização ocorreu, a nosso ver, por causa da estrutura jurídica do decreto-lei, o qual, por estar sujeito à apreciação do Congresso, tem uma vigência precária, embora, no prazo de tramitação, produza efeitos definitivos. Com isso se instala um verdadeiro descompasso legislativo, posto que o que é direito hoje pode sê-lo apenas provisoriamente, mas o que é eficaz hoje passa a sê-lo permanentemente. Isto decorre dos parágrafos 1.° e 2.° do art. 55 da Constituição, pois, pelo primeiro, sendo rejeitado pelo Congresso, o decreto-lei perde a vigência, mas, pelo segundo, essa perda não implica a nulidade dos atos praticados durante o prazo em que vigiu. In verbis:

"Art. 55 — O presidente da República, em casos de urgência ou de interesse público relevante, e desde que não haja aumento de despesa, poderá expedir decretos-leis sobre as seguintes matérias:

I — segurança nacional;
II — finanças públicas, inclusive normas tributárias; e
III — criação de cargos públicos e fixação de vencimentos.

§ 1.° — Publicado o texto, que terá vigência imediata, o Decreto-lei será submetido pelo presidente da República ao Congresso Nacional, que o aprovará ou rejeitará, dentro de sessenta dias a contar do seu recebimento, não podendo emendá-lo; se, nesse prazo, não houver deliberação, o texto será tido por aprovado.

§ 2.° — A rejeição do decreto-lei não implicará a nulidade dos atos praticados durante a sua vigência."

Ora, na prática, essa possibilidade cria paroxismos e consequente insegurança jurídica, dando motivo a soluções normativas injustas, posto que o direito, igual, para todos, passa a ser, de fato, diferente e desigual. Veja-se o caso do regime de reajuste salarial, dependente da data-base da categoria, e que foi alterado seguidamente pelos Decretos-leis 2012, 2024, 2045, 2064, 2065: conforme a data-base, às vezes trabalhadores de idêntica ocupação tiveram reajustes diversos, pois eram apanhados de surpresa por novo decreto-lei que alterava as regras vigentes até em meio a uma negociação salarial. É como se normas jurídicas se tornassem armas que disparam de repente, deixando-se à sorte de cada um ser por elas atingidos ou não: ninguém sabe quando a arma dispara nem por quanto tempo, mas quem morrer, morreu.

Neste ponto, o que se nota é que o regime jurídico do decreto-lei funciona caso entre o Executivo e o Legislativo haja perfeita consonância. Qualquer divergência torna revelador que, de fato, o decreto-lei acaba sendo um instrumento de disputas e imposições, às custas do cidadão. Ou seja, faz parte do seu regime a possibilidade de sua perversão: de exceção no processo legislativo, ele passa a regra, só que uma regra de intermitência, visto que dá condições ao Executivo de ir substituindo um decreto-lei por outro à medida que se avizinhe uma provável rejeição no Congresso.

Não é preciso dizer que não só aí residem os problemas que envolvem o instituto do decreto-lei. Deve-se lembrar também que o seu caráter de exceção no processos legislativo é traçado expressamente, mas de forma vaga. Se é verdade que o decreto-lei não é, apenas tem força de lei, é verdade também que só deveria ser usado como medida de urgência em situações específicas. Ou seja, na sistemática constitucional só a lei obriga. O decreto-lei tem força de lei em caráter excepcional. Esta excepcionalidade, já pelos conceitos que descrevem os casos — "urgência" ou "interesse público" — já pelos que descrevem as matérias de sua incidência — "segurança nacional", "finanças públicas", — é circunscrito de modo excessivamente flexível, permitindo-se um largo espectro legislativo de impossível controle. Ora, como as matérias atingidas são, via de regra, de cunho social e econômico relevante, ou para empresas, ou para trabalhadores, ou para contribuintes em geral, segue, pelo sigilo no seu processo de elaboração e pelo inesperado de sua publicação, uma total incerteza e insegurança no cotidiano da cidadania responsável. Ou seja, ao contrário das leis, cujo processo de elaboração conhece fases diversas, como a apresentação de anteprojeto que se transforma em projetos, depois é apreciado e discutido, com a correspondente publicidade, dos projetos de decreto-lei sabe-se, muitas vezes, apenas nas antecâmaras palacianas, nem todos tendo acesso a eles, nem podendo sequer discuti-los com a amplitude desejável pelo encontro e desencontro de interesses exigidos por uma democracia. Além disso, porque as matérias versadas em decreto-lei, de forma aliás muitas vezes incompatível com a Constituição, vão além da competência do Executivo e entram pela do Legislativo, ele acaba por se sobrepor à lei. E afinal, como diante da sua inexorabilidade, o Congresso ou o aprova ou o rejeita, não podendo emendá-lo, priva-se a vida institucional da Nação do diálogo entre os poderes, com desastrosas consequências para a vida política do País.

Na verdade, embora a Constituição Federal procure delimitar os casos em que o presidente da República pode fazer uso do decreto-lei, os meios tradicionais de defesa do cidadão em face do arbítrio do Estado, nos moldes do constitucionalismo de inspiração liberal, não o protegem adequadamente no que se refere aos seus direitos econômicos. São vagas, pois, as limitações constitucionais no que tange ao papel do Estado como fiscalizador, como regulador e como empresário na área econômica e financeira. Estas limitações, vazadas em conceitos valorativos e discricionários, só são concretamente percebidas após a ação do Poder Público, no sentido de que ele é obrigado primeiro a ver como age este para então saber o que dele pode exigir. Inverte-se, assim, o papel da Constituição que, ao invés de ser padrão para a atividade do Estado, torna-se tributário daquela atividade, pois esta é que confere sentido àquela. Assim, por exemplo, depois que o governo baixou os mencionados decretos-leis sobre a política salarial (Decretos-leis 2012, 2024, 2045, 2064, 2065), invocando o art. 55 da Constituição, empregadores e empregados ficaram "sabendo" que salário (dos trabalhadores em empresas privadas) devia ser considerado matéria de finanças públicas (conforme exigiria o citado art. 55 para o uso daquela norma). Assim, conceitos, por sua natureza, relativamente vagos e ambíguos, são manipulados pela tecnocracia, cuja ação econômica e política parece pedir discricionariedade jurídica. Ou seja, embora a Constituição vigente tenha alguns traços marcadamente neoliberais, ao estabelecer os limites de intervenção do Estado na economia, determinando o caráter subsidiário daquela intervenção e garantindo, à iniciativa privada, prerrogativas fundamentais, a prática constitucional brasileira assinala a preponderância de um certo intervencionismo tecnocrático.

O mais dramático, nesta situação, é que, embora o reflexo desta discricionariedade na vida do cidadão tenha uma amplitude e extensão até maiores que a discricionariedade política, na prática ela não conhece, por parte do Poder Judiciário (a quem incumbe padronizar conceitos vagos e ambíguos nas normas) a mesma rigidez e prudência de tratamento. Impetrar mandados de segurança ou habeas corpus é uma rotina de relativa eficiência. Mas contra a discricionariedade tributante, via decreto-lei, do Executivo que, de uma penada, atinge milhares ou milhões de cidadãos, muito pouco se pode fazer. E o que se pode, como solicitar arguição de inconstitucionalidade, ou não passa pelo crivo do procurador geral da República ou esbarra num cauteloso in dúbio pro administionem reipublicae de nossos tribunais superiores. Assim, há algum tempo atrás, o procurador geral recusou o pedido de argüição de inconstitucionalidade do decreto-lei que aumentara as alíquotas das contribuições previdenciárias, argumentando que não cabia ao Judiciário discutir o mérito da urgência ou do interesse público relevante, cuja especificação competiria ao poder discricionário do presidente da República, dependendo, pois, dos motivos políticos de oportunidade e conveniência do chefe do Executivo.

Não resta dúvida de que o País, hoje, está a pedir pelo menos a estabilidade jurídica que o processo de elaboração e edição do decreto-lei não pode lhe oferecer. Este processo, de alta celeridade, transformada em alta rotatividade, não tem mais razão numa sistemática constitucional que, ademais, conta com outros meios, como a lei delegada, do art. 52, aliás esquecida pelo governo. Sua manutenção, portanto, apenas contribuirá para transformar a exceção em regra, o princípio da divisão dos poderes em hipócrita fachada e o Estado de Direito em aspiração sem presente e sem futuro.

Tércio Sampaio Ferraz Júnior é chefe do Departamento Jurídico da Fiesp.

Fonte: Revista Indústria e Desenvolvimento, 17(4), São Paulo: 1984, pp. 37-38