Tercio Sampaio Ferraz Jr.
PREFÁCIO (À 1ª EDIÇÃO) curso de economia, de Fábio Nusdeo
Numa cena extraordinária do Fausto, Goethe nos representa um diálogo do imperador com Mefistófeles. O imperador exaspera-se com o palavreado inútil de seu chanceler-arcebispo e da arenga cínica de Mefisto que o ridicularizava, desafiando o diabo: "Tudo isso não atende nossas necessidades; o que tu queres agora com tua prédiga de jejum? Eu estou cheio do eterno Como e Quando; falta dinheiro: pois bem, arrange-o então!" (Faust, München, 1964, versos 4.919-4.921 - tradução livre).
Mefisto não se dá por achado: "Eu arranjo o que vós quereis e arranjo ainda mais; isto é fácil, embora o fácil seja difícil" (4.922-4.923). E então ele, o grande ilusionista, sugere matreiro ao imperador, se falta dinheiro, que lance mão dos tesouros enterrados sob suas terras. O imperador, diante da ameaça de falência, parece descrer, entre atordoado e perturbado: que tesouros?... E ao fim de uma noite de festa e volúpia carnavalesca, entram o marechal e o tesoureiro, para anunciar-lhe uma agradável notícia: o império, há pouco à beira da bancarrota, fora salvo. E apresentam-lhe uma folha de papel, a primeira jamais vista por olhos humanos, em que se lê: "Para o conhecimento de quem deseje: esta nota vale mil coroas. Como seguro penhor, garante-a um sem-número de bens enterrados nas terras do imperador. Já se tomaram as cautelas a fim de que o rico tesouro, logo que desenterrado, se ponha em seu lugar" (6.066). O imperador, porém, desconfia e exclama: "Eu pressinto um atentado, uma enorme ilusão; quem falsificou aqui o nome do imperador?" (4.067). Mas sua ira logo se aplaca quando lhe mostram não só a autenticidade de sua assinatura, como a alegria e o bem-estar em todo o país. Na mesma noite, artesãos habilidosos imprimem milhares de notas semelhantes, de dez, de cinquenta, de mil coroas, para agitação e felicidade do povo.
Goethe mostra que, pasmos, aqueles homens mal entendem o que se passa nem pressentem a grande revolução que está mudando a história econômica (cf. Pietro Citati, Goethe, São Paulo, 1996, p. 235). O ouro, o símbolo universal da riqueza, o emblema dos ricos e dos avaros, o dom prestigioso do poder, o metro das necessidades humanas é substituído por uma folha de papel, mísera e simples, que contém a assinatura de um imperador, de um rei, de um ministro de Estado ou de um banqueiro e cujo valor não pode ser visto nem medido realmente, pois não tem peso nem forma comparável, não passa de fantasma de papel (Papiergespensf) (6.198), um espectro de riqueza, falso como os tesouros que Mefisto faz imaginar sob o solo do império. Sob o signo do papel-moeda, nasce assim a economia moderna, que se torna o lugar das aparências, um jogo diabólico nas mãos dos financistas, dos aplicadores em bolsa, dos investidores, destes fantásticos herdeiros de Mefistófeles, o senhor das ilusões.
É provável que esta visão satânica da economia moderna que ressoará nos fetiches de Marx não seja a mais apropriada a um prefácio de um livro de introdução à Economia e ao Direito para estudantes. Mas é inegável que ela tem raízes fortes nos desenvolvimentos de uma economia científica desde o século XVIII, que, na visão da época, tinha sido impossível por muito tempo pela problemática puramente moral do lucro e da renda (vejam-se, por exemplo, as teorias do justo preço, a justificação e a limitação dos juros entre os teólogos medievais), de que resultava uma confusão sistemática entre moeda e riqueza, entre valor e preço de mercado e da qual o mercantilismo fora um manifesto representante (cf. Michel Foucault, Les mots et les choses, Paris, 1966, p. 178).
Afinal, no correr do século XVIII, algumas das discussões essenciais da economia moderna tomavam seu lugar, instrumentadas pelo caráter convencional da moeda, o que permitiria distinguir a teoria do valor-preço de troca da teoria do valor intrínseco, esboçando-se o grande paradoxo do valor, ajudando a prefigurar a ligação deste a uma teoria geral da utilidade, a entender a circulação e o mercado como fenômenos submetidos a fantásticas abstrações de, não obstante, forte teor positivista.
Este livro de Fábio Nusdeo, dileto amigo, que me honrou com o pedido de uma palavra prefaciadora, é um esclarecedor mas não menos instigante mapeamento deste universo em que o concreto das relações humanas se vê atravessando por dois mundos de aparência e abstração, como são os da Economia e do Direito. Principia poi dar a perceber ao leitor o grau de abstração exigida pêlos próprios modelos de conhecimento, aptos, em ciências sociais, a desenhar as relações funcionais de uma complexa realidade, mas também a justificar medidas capazes de tornar a realidade ainda mais complexa. Como o saber jurídico, também o saber económico elabora conceitos sobre conceilos, abstração de abstrações, e por isso enfrenta a dualidade da descrição e da prescrição, do positivo e do normativo, da isenção e da participação.
Ao introduzir o leitor em tais modelos, Fábio Nusdeo não perde de vista a necessidade de seu enraizamento histórico, mostrando-lhes, com aguda percepção, o processo de formação. Já por aí a interpenetração entre Direito e Economia é vazada num lúcido evolver de dados e de construções sobre esses dados, de sendo que o leitor possa acompanhar ao mesmo tempo a transformação das abstrações num mundo de complexidades positivas e factuais. Mostra-se, assim, a intersecção histórica do liberalismo político, da economia de mercado e do racionalismo codificador do direito, para culminar na crítica dos modelos e no surgimento dos complexos fenômenos do Estado intervencionista, da economia dirigida e do direito instrumentalizado.
São estes fenômenos que dão afinal corpo e consistência a um Direito Econômico, um dos alvos fundamentais de sua exposição. O complicado problema a resolver está em que, neste mundo de aparência e abstração, o jurídico e o econômico se interpenetram continuamente, no complexo das relações sociais, sem fronteiras nem limites. Assim, nem sempre a percepção do fenômeno econômico como conteúdo de normas jurídicas ou o direcionamento destas para a regulação de fenômenos econômicos permitem-nos falar em um Direito Econômico. Daí sua proposta, weberiana, de encontrar o critério de discernimento na vetorialização que sofrem normas jurídicas em face da colimação de objetivos de política econômica. E com base nesse critério é que o leitor vai encontrar os meios para distinguir questões de Direito Comercial, de Direito Administrativo, de Direito Tributário e de Direito Econômico, cuja dimensão procedimental / instrumental é ressaltada.
Nesta ordem de consideração cruzam-se as análises macroeconômicas e microeconômicas; mostra-se como, pelo Direito, na sua função procedimental/instrumental de políticas econômicas, elas se interpenetram, construindo um sistema em que mundo privado e mundo público, Estado e sociedade ganham um peculiar relacionamento: são privadas enquanto afetam a dimensão pública, são públicas enquanto direcionam relações privadas; delineiam o papel do Estado enquanto agente social, demarcam a sociedade enquanto objetivo de políticas de governo.
Tanto o Direito como a Economia, enquanto saberes sociais, procedem pelo relacionamento de elementos descontínuos mas análogos, embora possam estabelecer entre eles relações de causalidade e de imputação, constantes estruturais evidentes ou normativas. Ambas, nesses termos, não captam o ser humano como natureza, mas o homem como positividade (ser que fala, que realiza trocas, que produz, que regula seu próprio comportamento). Ou seja, seu objeto, enquanto ciências humanas, não é o homem, mas a efetualidade do seu relacionamento, da qual elas participam e na qual se refletem. E é na intersecção de evidências e normas, como projeto político, que se delineia o Direito Econômico.
Como as evidências econômicas, no entanto, dependem de fatores psicossociais e são, em parte, uma função da credibilidade, e como as estabilizações normativas independem das evidências (uma norma não vale porque se cumpre, mas porque deve ser cumprida, não importa se de fato o é), o mundo jurídico-econômico captado pelo Direito Econômico tem muito a ver com uma espécie de ilusão funcional, isto é, com aparências funcionalmente necessárias para o intercâmbio das relações sociais na sua dimensão econômica.
Veja-se, por exemplo, o que se passa com as análises do sistema econômico dual ou misto. Fábio Nusdeo mostra, nesse sentido, como, no mundo ocidental contemporâneo, a constitucionalização da ordem econômica substitui a mera visão administrativa e policial do Estado pela concepção da função social da propriedade privada, que alarga enormemente as possibilidade de intervenção do Estado na economia. Nesta circunstância, as regras de mercado (evidências estruturais) parecem não alcançar todos os agentes, havendo, por exemplo, megaempresas e grandes conglomerados que passam a agir por regras próprias que subvertem as de mercado. Isto revela, em parte, um mundo de aparências (o livre mercado) que se denuncia pela prática sem limites da livre iniciativa como um jogo de grandes interesses. Nesse momento entra o Estado com suas agências reguladoras, respaldadas em leis e regulamentos que introduzem, no mercado, um emaranhado normativo-jurídico (proliferação normativa). Contudo, o poder dos grandes conglomerados é compensado pelo poder burocrático, que acaba por ensejar um novo mundo de aparências, o mercado dos planos econômicos, produto de racionalizações macroeconômicas, palco de negociações políticas travestidas de negociação econômica. Não obstante, nesse quadro, o Direito Econômico assume uma função explicitamente procedimental, gerando uma importante crença nas soluções negociadas sob a tutela pública. Embora, de fato, a tutela pública seja, por sua vez, uma função pouco transparente de grupos de pressão, a ilusão de uma estabilidade dinâmica cria funcionalmente as condições necessárias para o desprendimento de forças produtivas: a ilusão funcional.
A ilusão funcional não cria necessariamente um mundo diabólico de aparências. Mas nos obriga a ver o homem, a sociedade e seus produtos como essencialmente aparentes, isto é, como um lugar em que as consistências e as inconsistências das tomadas de posição se mostram e se ocultam. Lidar com esse mundo exige, afinal, um aparelho conceituai e abstraio intrincado. Para introduzir o leitor nesse mundo, o introdutor deve ser hábil e preciso, persuasivo e rigoroso. E estas são, por fim, as qualidades mais expressivas deste livro, que mapeia, com rara percepção didática, os caminhos que devem ser encontrados por aquele que se inicia.
São Paulo, maio de 1997.
tercio sampaio ferraz jr.
Fonte: Curso de Economia – Introdução ao Direito Econômico, de Fábio Nusdeo, RT, São Paulo: 2001, pp. 7-11.
Texto digitado e organizado por: Gabriela Faggin Mastro Andréa.