Direitos humanos – o que fazer?

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

Uma pessoa procura autoridade competente, no Ministério da Justiça, para lhe expor uma história pungente. Jurado de morte, um parente muito próximo fora assassinado numa cidadezinha encravada em algum canto do país. Vertendo nos olhos uma lágrima entre esperança e desalento, ela descreve o desamparo dos que nada podem fazer. Polícia local?, responde ela a pensar. O prefeito, a Câmara, tudo comandado por uma vontade arbitrária, que faz da lei e da justiça um privilégio odioso. Autoridades do Estado? Secretaria da Segurança Pública? Como esquecer, porém, os fortes laços partidários que amolecem a consciência do dever, como um cesto que aperta os frutos, bons e maus, numa contiguidade que tudo apodrece?

Histórias como esta chegam às centenas ao Ministério da Justiça, que as encaminha ao CDDPH, o Conselho de Defesa de Direitos da Pessoa Humana. E mais não chegam porque o grande público desconhece a sua existência. Mas que faz ou que pode fazer o CDDPH? Os casos mais graves são selecionados para ser relatados nas reuniões do Conselho, que, infelizmente, são poucas. Os demais merecem um carta-ofício às autoridades locais, ao Secretário da Justiça ou da Segurança Pública. Passa o tempo, vem uma resposta, prometendo apuração, resposta que é encaminhada ao queixoso. Alguns mais indignados ou vencidos pelo desespero do último apelo voltam e pedem a intervenção da Polícia Federal, que, no entanto, limitada na sua competência constitucional, pouco ou nada pode fazer. E, com isso, a impunidade lança raízes na cultura, traçando um retrato doloroso.

Representantes de entidades internacionais para a defesa dos direitos humanos costumam manifestar seu repúdio à impunidade com que são tratadas as violações daqueles direitos entre nós. E se surpreendem que não existam mecanismos constitucionais que, nestes casos, autorizem a pronta intervenção de uma autoridade federal, em tese mais descomprometida, e capaz de enfrentar os desatinos locais. Não entendem, sobretudo, a passividade nacional, como se direitos humanos nada mais fossem do que um elenco de prescrições e garantias, agasalhadas no texto constitucional, cuja eficácia social, no entanto, se reduz à proteção de uns quantos privilegiados que tenham acesso à Justiça.

Talvez haja um “exagero” na opinião destes homens, estrangeiros acostumados ao vigor da reação institucionalizada da sociedade civil dos países de onde vêm. A verdade, porém, é que a consciência nacional dá de ombros e tende a responder aos “exageros” com a desculpa do impotente subdesenvolvimento econômico que nos afeta.

De fato, e isso é realmente lamentável, a sociedade civil, no Brasil, reage com enorme fragilidade no que respeita à violação dos direitos humanos. As poucas entidades que se dedicam a enfrentar corajosamente o problema, e o próprio CDDPH, sediado no Ministério da Justiça, bem como alguns conselhos equivalentes que existem em Secretarias Estaduais de Justiça, mais parecem alguns pequenos barcos salva-vidas, tentando recolher milhares de náufragos de um transatlântico perdido.

Trabalhar pela defesa e proteção dos direitos da pessoa humana no Brasil chega a ser uma tarefa angustiosa. Angústia já imensa, quando se pensa apenas nos velhos direitos individuais, de proteção da liberdade contra a arbitrariedade, contra a prepotência e, pior ainda, contra o descaso da autoridade constituída.

Direitos humanos não são o conteúdo retórico de algumas normas inscritas na Constituição do país! Não são abstrações jurídicas que se invocam nos tribunais para fazer brilhar a justiça! Também não se reduzem a sentimentos universais, inscritos no coração dos homens, o que pode revelar o seu fundamento teórico, mas não os faz uma realidade efetiva na vida de um povo! Antes de mais nada, são uma conquista humana: se qualquer um, ameaçado de morte, se defende a não mais poder, isto não faz da vida um direito do homem. É preciso institucionalizá-lo na consciência social, de tal modo que sua afirmação ganhe o respeito de todos e sua violação provoque o repúdio generalizado. Só assim é possível fazer dele uma baliza da comunidade política e um fundamento atuante da ordem jurídica.

Exigem, portanto, da sociedade civil e da autoridade constituída, uma vigilância pedagógica, capaz de fazer entranhar na consciência de cada um a extensão do seu significado. Têm de ser ensinados como se ensina à criança, no lar, na escola, em toda parte, os cuidados elementares com seu corpo e seu espírito. Têm de se transformar, assim, numa verdadeira preocupação nacional, capaz de provocar reações indignadas, quando ocorram violações e de suscitar apoio, quando se procura combatê-las.

Mas exigem também, da autoridade, o cumprimento de um papel decisivo: é preciso armar, legal e constitucionalmente, o Poder Público de instrumentos hábeis. Por exemplo, o CDDPH precisaria crescer, irradiar-se pelo país, promovendo e incentivando convênios com o Ministério Público federal e estadual, com a OAB nacional e regional; a Polícia Federal precisaria ser dotada de competência específica para apurar a violação de direitos humanos por autoridades policiais estaduais. Afinal, a melhor forma de respeitar um direito é dar-lhe a devida eficácia.

Fonte: Folha de São Paulo, 30.01.91.