Tercio Sampaio Ferraz Jr.
Quando determinadas facções portuguesas, vitoriosas nas recentes eleições, opuseram-se às manobras comunistas de tomada direta ou indireta do poder, um de seus argumentos mais fortes para conter qualquer mudança unilateral das regras do jogo baseava-se no vigoroso consenso popular que a expressiva maioria de votos lhes dava.
Os comunistas de Alvaro Cunhal, por sua vez, chegaram a dizer abertamente que consenso eleitoral não é sinônimo de consenso político e que a força de sua reivindicação repousava em outros critérios. Essa discussão revela a importância que a noção de consenso desempenha nos regimes políticos modernos e é o tema destes dois artigos.
Desde o século passado o consenso tem sido visto como instrumento máximo de legitimação da atividade política. Hoje, no entanto, transformou-se em mercadoria rara. E a própria sociedade de consumo que gera este dilema: de um lado fomentando a especialização contínua dos interesses e necessidades; de outro, procurando desesperadamente reduzir esta complexidade pela imposição de padrões médios de consumidor.
Daí a razão destas relevantes questões: onde encontrar a opinião majoritária? Como enfrentar, por exemplo, uma decisão de aumento de preços sem perder o controle das decepções que ela irá provocar? Como, afinal, governar sem maioria? Finalmente, em que medida é possível usar a maioria como instrumento e força de argumentação?
O mundo de hoje, sem dúvida, é o resultado de sociedades complexas caracterizadas pela multiplicidade e especialização crescente de funções. No plano político, esta complexidade social expressa-se pela escassez crescente de consenso. Nesse sentido, governar uma sociedade de massa, significa, entre outras coisas, enfrentar a ausência do consenso, descobrindo mecanismos capazes de estabelecer uma coexistência entre a necessidade de rápidas tomadas de decisão com as inevitáveis decepções que elas provocam.
É uma ilusão supor-se uma sociedade sem decepções. As variações nos índices de popularidade, frequentemente trazidas a público nos Estados Unidos são o reflexo imediato da carga maior e menor de decepções provocadas por decisões muitas vezes de alto nível, mas que acabam por projetar de modo desigual, as expectativas grupais e individuais.
Uma decisão de conceder aumentos tarifários a serviços de transporte, por exemplo, frustra a expectativa de poupança do usuário, bem como a decisão de aumentar o preço dos derivados do petróleo pode frustrar as expectativas decorrentes do aumento concedido para os serviços de transporte coletivo. Na mesma linha, a decisão de negar auxílio aos projetos do executivo americano de ajuda militar a grupos angolanos pró-ocidentais decepciona interesses internos dos Estados Unidos cuja expectativa econômica se vê desiludida, embora atenda reclamos pacifistas de parte da população decepcionada com o malogro vietnamita. Assim, se não é possível eliminar as decepções, pelo menos é preciso conviver com elas.
Uma das tentativas de enfrentar este problema partiu do processo intencionalmente controlado de politização crescente, ao invés de eliminar a ausência do consenso. Porém, esta politização teve a tendência de aumentá-la ainda mais. Este dilema foi e é enfrentado pelos regimes totalitários que, todavia, como se pode observar nos países comunistas, acabou por desviar-se para fórmulas artificiais de uniformização a priori das opiniões em nome da razão, da verdade, do bem coletivo e da libertação do "jugo capitalista".
Neste caso, a conscientização política acaba redundando na imposição de critérios exteriores à própria vida política, que a julgam de forma soberana e inapelável. Mas como esses critérios são fórmulas em si vagas e indeterminadas, não despertando sozinhas a confiança necessária, elas acabam sendo acompanhadas de formas de violência capazes de silenciar os inconformados e reeducar os deseducados para a "verdadeira" vida pública.
O resultado disso é uma certa estagnação da vida política, comum a todos os totalitarismos, que gera o desinteresse e a apatia, permitindo uma atividade apenas fora do sistema, na forma de crítica global e pregação revolucionária. As recentes manifestações de intelectuais soviéticos que têm sido marginalizados ou que a contragosto abandonam o país bem representam não só esta ausência de válvula de escape — capazes de canalizar de modo equilibrado a insatisfação e o protesto — mas, também, a ausência de vias receptoras — por sua vez capazes de assimilar aquela insatisfação e aquele protesto, ao menos como índice de desequilíbrio e necessidade de adaptação.
No próximo artigo, veremos as possibilidades de um governo sem consenso nos sistemas políticos abertos, que são aqueles comuns às democracias ocidentais.
Governo e Consenso (conclusão)
Nos sistemas políticos abertos, que é o caso das democracias do mundo ocidental, a fórmula mais comum para enfrentar o problema de governos sem maioria é a generalização da escassez do consenso. Na sua ausência, ou seja, quando a possibilidade de expectativas desiludidas é tão grande ou maior que a das atendidas, o recurso é abrir válvulas de escape e criar maiores oportunidades de manifestação e captação dos protestos.
Ora, isso pode ser conseguido através de uma tomada de decisão perante o próprio consenso, aí firmando-se que toda e qualquer voz de participação tem sua importância no processo político. Não no sentido de um acordo de fato a ser obtido a todo custo, mas em termos de que nenhuma opinião deva ser, a priori, desprezada.
Com isto, passamos de uma fórmula política que legitima as decisões do sistema pela institucionalização do consenso — decisões legítimas, nesse sentido, são as consensuais — para a institucionalização de sua ausência. Em outras palavras, decisões legítimas são aquelas que surgem de situações em que o conflito é garantido, isto é, reconhecido como possibilidade e regulado como procedimento.
Uma tal institucionalização é efetivada, então, por uma série de mecanismos, como a eleição política, o sistema legislativo, a neutralização da influência burocrática e a liberdade de imprensa, entre outros. Assim, para exemplificar com a realidade da Alemanha Ocidental, as próximas eleições para renovação de seu parlamento terão o condão de conduzir, num ato todos os debates que atualmente ocorrem em torno tanto da política externa de reabertura para os países do leste como da crise econômica que afeta a produção do país e provoca uma inflação capaz de inquietar o consumidor médio.
Uma das vantagens desta fórmula está, justamente em fazer frente ao problema da estagnação da vida política, não só criando condições para uma redução difusa de protestos convergidos em bloco para o canal do voto, mas também propiciando uma renovação dos quadros políticos dirigentes. Desta forma, o debate e o desacordo são trazidos de modo controlado para dentro do sistema que passa a legitimar-se não pela obtenção de consenso global, mas pela garantia de incorporar as decepções, ao invés de eliminá-las.
Esta fórmula de generalização da ausência do consenso parte, sem dúvida, da hipótese de que em todo sistema político há, de um lado, perspectivas e expectativas permanentes que estabelecem um mínimo de consenso (tradições, usos e costumes) e, de outro, decepções permanentes (desigualdades nas oportunidades sociais, nos níveis de salários e nos níveis de consumo) que não podem ser eliminadas. A hipótese de impossibilidade de um sistema político sem decepções se funda numa separação entre a decisão política e sua assimilação, como funções diferentes e até discrepantes.
A decisão não pode, continuamente, guiar-se pelas suas chances de ser apreendida e interiorizada, sob pena de paralisação. Nesse sentido, a fórmula de generalização do dissenso atua em termos de tornar decepções inevitáveis em percepções difusas, na forma de ressentimentos generalizados, que não podem ser institucionalizados.
Por isso, nos sistemas abertos, os participantes da vida política são convidados a manifestar continuamente suas insatisfações, mas de uma forma clara e regulada, que serve para absolver os protestos de maneira canalizada. Logo, o que dá condições de legitimidade às decisões é, justamente, esta garantia do dissenso. De outro modo não se poderia entender como um governo, como o do presidente Gerald Ford, reconhecidamente inseguro e de pequena popularidade, contando com minoria no Congresso, é capaz de manter-se e tomar decisões de repercussão negativa como o indulto concedido a Nixon ou uma política econômica mal recebida pela timidez e pela impossibilidade de resolver a curto prazo os problemas do país, sem que isto afete sua legitimidade.
É preciso reconhecer que um dos grandes problemas dos sistemas políticos modernos, sobretudo os dos países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil, é manter esta canalização sob controle. Este tema fere, diretamente, a questão de abertura política. Nos países desenvolvidos, aquela canalização envolve os participantes de tal maneira que, mesmo decepcionando-se, a garantia de entrar em conflito atua como uma válvula de escape capaz de estabelecer um certo equilíbrio entre a decisão e sua apreensão. Assim, o decepcionado que teima em manter suas expectativas desiludidas não enfrenta muitas alternativas: ou tem a oportunidade de voltar a manifestá-las ou é estabilizado no papel de marginalizado político, situação que tem de suportar com riscos e custos.
Nos países em desenvolvimento, a pequena especialização dos canais (e até mesmo sua redução, em caso de crise) acaba por confundir a manifestação de insatisfações com os mecanismos de marginalização, desequilibrando (ao invés de equilibrar) o próprio sistema.
Da mesma forma, a reabertura, quando passamos de uma fórmula totalitária para um sistema de franquias — como se pretende, atualmente, na Espanha — sofre problemas semelhantes. A recente proposta governamental de criar canais de captação de protestos, recebida como tímida e insatisfatória, luta contra uma situação agravada de longos anos, em que a decepção era sufocada e não tinha como manifestar-se.
Também na Argentina, sacudida por crises intermitentes, observamos um dilema semelhante: fechar as válvulas significa fomentar as insatisfações. Tentar um consenso global através da peronização de todas as opiniões políticas e esperar que isto aconteça pode acarretar a paralisação das decisões.
Como a institucionalização das crises é sempre inviável, estes sistemas tendem, então, à instabilidade que, a curto prazo, é contornável por fórmulas de uniformização artificial das opiniões antes referidas, mas que, a longo prazo, levam ou a explosões não controláveis ou a um enrijecimento do poder político, o qual cada vez mais tem de acionar mecanismos de violência.
Fonte: Terça-feira, 17 e 18 -2-76 – O ESTADO DE S. PAULO.