Guerra fiscal, fomento e incentivo na Constituição Federal

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

Tendo em vista o dispositivo constitucional que exige deliberação conjunta dos Estados e do Distrito Federal para a concessão de incentivos e benefícios fiscais e sua correspondente disciplina regulamentar na Lei Complementar n° 24/75, propõe-se este trabalho a análise da questão da chamada "guerra fiscal, mormente em face das competências estatais para regular e incentivar as atividades econômicas, constantes do artigo 174 da Constituição Federal. Urna contraposição - aparente - entre dispositivos constitucionais sobre a concessão de incentivos no âmbito da ordem tributária (Título VI) e no âmbito da ordem econômica (Título VII) da Constituição Federal exige unia reflexão preliminar que conduza, por meio da rede normativa do texto da Constituição, a uma per­cepção de sua realidade institucional. Nesse, sentido, é nos quadros de uma ( concepção de Estado que o tema do fomento e do incentivo fiscal se coloca e deve ser explicitado.

A experiência constitucional proporcionada pela Constituição brasileira de 1988 já é bastante significativa, no que diz respeito à instalação e à realiza­ção de um modelo de Estado. A proposta normativa, constante do preâmbulo, fa­la em Estado Democrático de Direito. Induz, obviamente, a que pense, de um lado, nos tradicionais princípios do Estado de Direito (exercício de direitos so­ciais e individuais, liberdade, segurança, igualdade etc.), mas, de outro, nas exi­gências das necessidades de democratização da própria sociedade (que há de ser fraterna, pluralista, sem preconceitos, fundada na harmonia social etc.).

Este reconhecimento da necessidade de democratização da própria sociedade, vista como um ente distinto do próprio Estado, mas ao mesmo tem­po integrado no Estado, aponta para uma complicada síntese entre o Estado de Direito e o Estado Social. Na verdade, este reconhecimento tem uma repercussão especial na forma constitucional do Estado.

Essa dualidade de caráter vem sendo percebida, no fato de que o Estado de Direito é um conceito formalmente jurídico. jurídico formal, o mesmo não sucedendo com o conceito de Estado Social (Ernest Forsthoff: Rechtsstaat im Wandel, 1967, p. 89). As garantias proporcionadas pelo contorno constitucio­nal do Estado de Direito são assim acima de tudo delimitações com sentido eminentemente técnico normativo. Pressupõem portanto um modelo de Estado que em relação à liberdade dos cidadãos deixa valer o status quo. Já as garantias exigidas do Estado Social pressupõem um Estado politicamente ativo que de­sempenha funções distributivas, que em última análise desconhece o dualismo entre estado e sociedade.

Em conseqüência, enquanto para o Estado de Direito o fenômeno do poder é por definição circunscrito e delimitado no seu contorno constitucional, o Estado Social extravasa essas limitações porque neles as possibilidades de ex­tensão das formas de domínio são imensas, podendo atingir intensidades sutis e num certo sentido até fora de controle do ponto de vista do Estado de Direito. Afinal, se ao indivíduo para sobreviver não basta mais, como acontecia, no Bra­sil, desde o século XIX. um relacionamento direto e concreto com as fontes na­turais, na medida, pois, em que a grande massa está urbanizada e metida nas malhas da envolvente industrialização, isso tudo exige providências organizacionais que nenhuma corporação isolada pode fornecer.

Portanto o que está ocorrendo na experiência constitucional brasileira atual, certamente já vivenciada na Europa desde os anos 20, talvez pudesse ser assinalado em termos de uma tomada de consciência social e política da dis­tinção entre um modelo constitucional de Estado com a função de bloqueio, que cabe para as Constituições de 1824 e 1891, e um modelo constitucional de Es­tado coma função de legitimação das aspirações sociais, que foi, formalmente, próprio das Constituições de 1934, 1937, 1946, 1967/69 e, peculiarmente, de 1988. Esse segundo significaria que certas aspirações se tornam metas privile­giadas. Elas fazem parte por assim dizer de uma pretensão inerente a própria Constituição. Isso quebra o Estado de Direito como ele foi pensado no passado, isto é, com a exclusiva função de bloqueio.

Na verdade, a idéia subjacente ao modelo de Estado corri função de legitimação, em que constituições instauram uma pretensão de se verem atendi­das expectativas de realização e concreção, traz para nossa experiência cons­titucional uma consideração de ordem valorativa que a experiência alemã per­cebera na década de 20. Ou seja, pressupondo-se que uma constituição apresen­te no seu corpo normativo um sistema de valores, o modelo de Estado que ela institui se toma uma realização de valores e exige essa realização. Na verdade, ela não estabelece um Estado, mas propõe a realização de um Estado.

Quando se opõe um modelo de Estado com a função de bloqueio ao Es­tado com função de legitimação de aspirações sociais, o que entra em pauta por­tanto é o problema de como captar o sentido das constituições no momento em que, concebidas estas como sistemas de valores, o modelo de Estado que elas instituem se transforma num instrumento de realização política, com base na qual a atividade legislativa e judicial será forçada, pela pressão social, a concre­tizar princípios e programas implicitamente agasalhados no texto constitucional. Ou seja, a questão deixa de ser um problema de correto delineamento do Esta­do com a sua carga lógica, histórica, sistemática, teleológica e até valorativa, para tornar-se um problema de conformação política dos fatos ao modelo, isto é, de sua transformação conforme tini projeto social.

Na Constituição de 1988, as tarefas são postas ao Estado, o que não só leva à multiplicação das normas, mas também à sua modificação estrutural, põem a descoberto as suas destinações. Exige-se do Estado a responsabilidade pela transformação social adequada da sociedade, ou seja, colocam-se para ele outras funções que não se casam plenamente com a função de bloqueio dos ve­lhos modelos constitucionais. Ora, estas transformações afetam fundamente o sentido do Estado Federativo.

A Federação brasileira resultou de um movimento histórico de centrifu­gação (cf. Orlando Bittar, Obras Completas, Belém. 1978, vol. 2 p. 323). O País não nasceu federativo. As antigas províncias, entidades preponderantemente administrativas, transformaram-se imediata e diretamente em Estados. Não hou­ve, entre nós, um processo centrípeto, de agregação, com decisão de entida­des independentes de se associarem politicamente. O poder central, preexistente, é que assumiu a forna federativa. Assim, enquanto nos casos de agregação, a distribuição das competências é, analiticamente, controvertida, no Brasil deve-se partir, historicamente, de uma hegemonia do todo para a constitucionalização das competências parciais.

Este processo de federalização, não obstante, mostra uma passagem progressiva de uma tônica segregacionista, com a insistência na autonomia das unidades parciais, para um federalismo orgânico, com a tônica da cooperação. Assim, já a partir dos anos 30, são normalizadas as relações intergovernamen­tais, reconhecendo-se o papel da União no custeio, na direção técnica e admi­nistrativa das zonas em que as grandes endemias nacionais excediam as possi­bilidades dos governos locais. Mas é sobretudo na discriminação de rendas que se percebe a nítida tendência para um federalismo solidário (Bittair, op. cit. p.238) - a identidade de destinos, pela comunicação fecunda de recursos: federalismo cooperativo -, espelhado mormente na cooperação financeira por meio de regras capazes de regular o inter-relacionamento resultante do exercício da competência tributária de uma entidade no de outra, conforme três modalidades básicas (cf. José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo, 1993, p. 616): a participação em impostos de receitas partilhada segundo a ca­pacidade da entidade beneficiada (CF. art. 158, II, III. IV e seu parágrafo único) e a participação em fundos (CF, art. 159). O federalismo solidário exige esta cooperação, mas num certo sentido a transcende.

Na Constituição federal, a matéria referente a um federalismo solidário é aflorada já no enunciado superlativo do art. 5": “todos são iguais perante a Iei”—. garantindo-se, entre outros, o "direito à igualdade” com o que se generaliza uma aspiração bens mais ampla que alcança também as desigualdades de fato, na medida em que se desvaloriza a existência de condições empíricas discriminan­tes e se exige equalização de possibilidades. Entende-se destarte que um dos fins fundamentais da República Federativa (art. 3º) seja promover o bem-estar de todos, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (cf. Ferraz Jr., Legitimidade na Constituição de 1988, in Constituição de 1988: Legitimidade, Vigência e Eficácia, Supremacia, em colaboração, Atlas, São Paulo, 1989, pp. 31 ss.).

O federalismo solidário exige, pois, como condição de efetividade, a cooperação entre os entes federados, tanto no sentido vertical quanto horizon­tal. Esta cooperação, embora à primeira vista faça pensar numa espécie de con­trato federado, a presidir as relações entre as unidades, tem um outro fundamento. Na verdade, no contexto do federalismo solidário, ela não tem uma natureza contratual. Isto porque as relações interindividuais entre as entidades que com­põem a federação, cujo objetivo deve ser o fomento das finalidades comuns, têm um sentido jurídico-político que as transcende. Para adotar a célebre distinção de Henry Maine (Ancient law. Dent. 1917, pp. 99-100), não se trata de contra­to, mas de status. A federação não une contratualmente seus membros, mas altera-lhes o status. De uma entidade administrativa, no caso brasileiro, a provín­cia muda sua constituição: passa a Estado federado. Daí a ideia de união indissolúvel (CF, art.1º), de uma ordem permanente (CF, art. 60, § 4°, I). À fe­deração cabe, nestes termos, a fortiori, o princípio da homogeneidade, de que nos fala Carl Schmitt (cf. Verfassungslehre. Duncker & Humblot, Berlim, 1970, p. 375), ou seja, da igualdade substancial que preside todo acordo concreto en­tre seus membros e exclui, entre eles, formas conflituais típicas das relações entre Estados independentes, como a represália, a invasão territorial, a guerra.

De outro lado, porém, esta homogeneidade não institui um Estado uni­tário, em que a atividade de fomento se coordene centralizadamente, mas uma federação em que o incentivo econômico e social deve instaurar uma coopera­ção concorrente entre as unidades federadas. Cooperação. como já mostrara Margareth Mead na década de 20, exige concorrência como fator de desenvol­vimento. Não a concorrência predatória, que visa a eliminar o concorrente, mas a concorrência da interdependência, em que aos concorrentes devem ser asse­guradas condições básicas de competir. Daí o fomento como atividade capaz de remover desigualdades básicas geradas por condições econômicas adversas, numa região ou num setor, que, então, devem ser compensadas por incentivos. Assim, nos quadros do Estado Social, este é o sentido da função incentivadora de que nos fala o art. 174 da Constituição Federal.

Se atentarmos, porém, para a complementação exigida pela Constituição entre Estado de Direito e Estado Social em termos de "Estado Democrático de Direito” (art. 1º) não se há de afirmar nenhuma contrariedade entre dispositi­vos que regulam, quanto ao ICMS, a concessão de benefícios fiscais, para eles exigindo deliberação conjunta de Estados e Distrito Federal, e os que atribuem ao Estado a função de fomento da atividade econômica. Com objetivos distin­tos, ambos se regram pelo mesmo princípio da homogeneidade, exercendo, contudo, funções diferentes na sua concretização.

De um lado, o cuidado constitucional com o incentivo fiscal, em termos de bloqueio, tem sua explicação. Afinal, por ser o ICMS um imposto instituído por lei estadual, cuja receita se reparte entre Estado e municípios, mas que, pela própria natureza da circulação de mercadorias, repercute a economia das de­mais unidades estaduais da Federação. há um risco permanente de que, na disciplina de benefícios fiscais, uma unidade possa prejudicar outra unidade fede­rativa. Para evitar prejuízos deste gênero, a Constituição Federal exigiu que a concessão de tais benefícios ficasse na dependência de deliberação, exigindo a Lei Complementar a realização de convênios a serem celebrados entre Estados e Distrito Federal. Não obstante essa exigência, são vários os casos que vem sendo trazidos, em ação direta de inconstitucionalidade, ao Supremo Tribunal Federal, cuja jurisprudência reiterada tem afirmado a questionabilidade de Es­tado-membro, sem prévia deliberação favorável constante de convênio interes­tadual, vir a conceder, em tema de ICMS, vantagens de caráter tributário (isen­ção, incentivos ou benefícios fiscais). Esta questionabilidade encontra fundamen­to na chamada "Guerra Fiscal” que poderia resultar na ausência de convênio e, ademais, do fato de um Estado-membro, ao agir isoladamente, sem atenção à Lei complementar federal que regula tais concessões, estar vulnerando, unilateral­mente, a participação municipal no ICMS concedida a municípios por força da Constituição (art. 158, IV), tendo-se em conta o caráter sui generis da federa­ção brasileira, formada pela união dos Estados e Municípios e do Distrito Fede­ral (Constituição Federal, art. 1º) (cf. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1247-9, Pará. Relator: Ministro Celso de Mello. pp. 30. 34). Vale a pena, nesse sentido, demarcar os limites dessa exigência constitucional.

O dispositivo vigente que disciplina a matéria a ser tratada em lei com­plementar, exigindo deliberação dos Estados e Distrito Federal para a conces­são de isenções, incentivos e benefícios fiscais referentes ao ICMS, é o constante no art. 155, XII, g. A Lei Complementar n" 24/75, que regula, por recepção, a matéria constitucional, exige a realização de convênio entre Estados e Distrito Federal para "incentivos ou favores fiscais ou financeiros-fiscais, concedidos com base no Imposto sobre Circulação de Mercadorias, dos quais resulte redução ou eliminação, direta ou indireta, do respectivo ônus” (art. 1º, parágrafo único, IV). Não sendo os incentivos concedidos por convênio, não teria havido a delibera­ção exigida na Constituição, sendo, assim, inconstitucional a concessão.

Importante que se delimite primeiramente o sentido do disposto na lei complementar mencionada. Conquanto a expressão primária pareça nos levar às noções de incentivos ou. favores fiscais ou financeiros-fiscais, não deve ser esta a preocupação inicial. O que chama, pois, a atenção é que benefícios desta ordem estão a exigir convênio se com base no Imposto sobre Circulação de Mer­cadorias (hoje ICMS) e se de sua concessão resulta a redução ou eliminação direta ou indireta, do respectivo ônus. As duas condições denotam, a contrário sensu, que haverá incentivos ou favores fiscais ou financeiros fiscais que, por não preencherem aquelas condições, não se enquadram no rol dos casos a exi­gir convênio entre Estados e Distrito Federal. Ou seja, nem todo benefício da­quela natureza seria, por definição, instrumento de desequilíbrio fiscal entro as unidades federativas.

Ter por base significa tomar o ICMS como referencia. Esta referência pode ser expressa ou implícita. Não é, pois, necessário que um incentivo se configure a partir de valores expressos no recolhimento do ICMS devido pelo fi­nanciado, bastando, por exemplo, que um financiamento para investimento no Estado tome por indicativo, na delimitação dos valores financiáveis, o volume da receita do ICMS globalmente tomado. A mera correlação indicativa dos res­pectivos valores - do financiamento e do imposto devido - já seria uma forma pela qual se estaria tomando por base o imposto.

Por sua vez, a redução ou eliminação do respectivo ônus também não precisa ocorrer de forma direta, podendo ser inferida de exonerações indiretas, como a que ocorreria por meio de vantagens advindas de prazos suficientemente largos para caracterizar, num regime de inflação, o pagamento efetivo a menor do imposto devido.

A exigência constitucional constante no art. 155, XII, g, exigindo deli­beração dos Estados e Distrito Federal para a concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais referentes ao ICMS, comporta, no entanto, uma leitura har­mônica com a atuação dos Estados- membros no fomento das respectivas eco­nomias, exigida igualmente pela própria Constituição (art. 174: "como agente normativo e regulador da atividade econômica. o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado” - grifei). Neste passo, estamos diante de uma função atribuída ao Estado e dele exigida (exercerá) no âmbito da ordem econômica, cujos princípios determinam, entre outras coisas, a redução das desigualdades sociais e regionais, a defesa do consumidor, do meio ambiente etc. (art. 170).

A menção expressa, no art. 174, o incentivo nos leva necessariamente a presumir que há formas incentivadoras legítimas, no caso de Estados-membros, que são, por sua própria natureza, instrumentos de fomento complexos que não têm por base o ICMS nem lhe reduzem ou eliminam o respectivo ônus. Esta ressalva é decisiva na medida em que um Estado-membro, ao fomentar, por exem­plo, por meio de financiamentos (e outros meios) a economia estadual numa determinada região, criando condições para o seu desenvolvimento, o faz neces­sariamente com base em suas receitas, dentre cujas fontes se destaca, necessaria­mente, o ICMS. Sem esta ressalva, aliás, qualquer ato de fomento por parte do Estado-membro, com base no art. 174, e que usasse de financiamentos, tornar-se-ia impossível. levando à inefetividade do preceito, o que, certamente, seria contrário ao espírito da Constituição.

O fomento previsto na expressão "incentivo" do art. 174 insere-se, pois. no quadro federativo de modo positivo, apontando para formas de atuação que não ferem as limitações impostas pela exigência de convênio, mesmo no caso de estímulos financeiros que, de alguma forma, tenham por base a receita do Estado, mas sem provocar, a chamada "guerra fiscal".

Este ponto merece consideração mais detalhada. Quando a Constitui­ção exige deliberação conjunta dos Estados e Distrito Federal para concessão de incentivos que tenham por base e reduzam ou eliminem o ônus do imposto, a cumulatividade das condições mostra que estamos diante de formas de benefí­cio que, sob a justificativa de favorecer a economia do Estado-membro, na ver­dade desequilibra a relação econômica entre as unidades federadas. Esta rela­ção tem por fundamento o princípio da homogeneidade que informa a federa­ção. Conto uma federação não é propriamente um acordo ou um contrato, mas uma união indissolúvel em que os membros não estão unidos por disposição voluntária, mas por status político que exclui formas conflituais típicas de esta­dos independentes (represálias, invasões, guerra), a utilização unilateral de incentivos que instrumentalize um imposto que é da autonomia de cada unidade mas que repercute nas outras unidades, tomando-o por base e desonerando o beneficiário do respectivo ônus, assume o caráter de u, abuso da autonomia (mão importam as justificativas), gerando um conflito político-institucional de conteú­do econômico. Aqui, a função de bloqueio própria do Estado de Direito, faz ple­no sentido. Nesses termos, a exigência do convênio é meio institucional que ga­rante a união indissolúvel e a renova toda vez que é celebrado. Não é aliás, ou­tra a razão que exige, em face de um conflito dessa espécie gerado por incenti­vos instituídos sem convênio, a previsão constitucional de que ele deva ser le­vado ao Supremo Tribunal Federal enquanto "Tribunal da Federação" (art. 102,I, f: cf. José Afonso da Silva. Curso ele Direito Constitucional Positivo, 1993, p. 487; v. tb. Ferraz Jr. “Litígio Constitucional entre Estados-Membros e a Competência do STF” in Revista de Direito Administrativo, out-dez 1993, pp.6 ss).

A chamada “guerra fiscal”que a Constituição proscreve, tem porém, um sentido limitado. O incentivo. instrumento de “guerra fiscal”, é aquele que, ao ter por base o ICMS, reduz ou elimina-lhe o respectivo ônus. A conjugação destas duas condições significa que o incentivo ou benefício assim caracterizado engendra tuna distorção na concorrência que, presumidamente, o ICMS evita. Ou seja, os concorrentes de outros Estados-membros estariam obrigados, em face de incentivos desnaturados, a enfrentar unia situação de competitividade dese­quilibrada pela quebra de uma estrutura comum. As piores vítimas de incentivos distorcidos por medidas que reduzem ou eliminam o ônus dos impostos são os agentes econômicos eficientes, forçados a suportar uma carga tributária maior do que seria desejável no quadro da livre concorrência. Mas, a consequência mais perversa do incentivo desnaturado é o próprio Estado-membro concedente, pois a concessão tributária não conveniada cria um clima de retaliações em que as concessões, em vez de propiciarem-lhe um desenvolvimento econômico saudável, o fazem presa de sua própria liberdade, com o risco de todos se contamina­rem de liberalidades equivalentes por parle de outros Estados. Esta situação é o que configura a chamada "guerra fiscal”. Nela, os concorrentes competem de­sigualmente e as desigualdades premiam a ineficiência. em prejuízo da instituição federativa. Nestes termos, nenhum Estado-membro deve romper, unilateral­mente, aquelas condições tributárias que, de princípio, colocam concorrentes, institucionalmente em igualdade de situação, a partir da qual o que conta é, en­tão, a eficiência na produção econômica como fator legítimo para gerar diferen­ças entre os agentes econômicos.

Com esta forma de incentivo não se confundem, porém, as legítimas ati­vidades de fomento dos Estados-membros por meio de incentivos que se desti­nem ou a desenvolver-lhe globalmente a economia ou a reduzir e eliminar desequilíbrios regionais no seu próprio interior. Esta função, que a própria Cons­tituição lhes destina, contribui para o fortalecimento institucional da federação em termos do princípio da homogeneidade. Trata-se de incentivos que não afetam desequilibradoramente as condições de competição normal. Dentre eles se incluem aqueles programas complexos de fomento que visam a minorar os cus­tos adicionais em que incorreriam os beneficiários ao se deslocarem para regiões que se apresentam condições econômicas em desvantagem, se comparadas com outras por si mesmas mais atrativas (comparar, nesse sentido, a aceitação pelo Mercado Comum Europeu de subsídios desta natureza como não compensató­rios, portanto, permitidos: Ivo Van Bacl/Jean-François Bellis - Anti-Dumping and other Trade Protection Laws of the ECC, Eastern Press, 2ª Edition. 1990, p. 267). Ou seja, por princípio, são legítimos os incentivos de fomento que, em vez de criar desigualdade, engendram condições de competitividade pela remoção de desigualdades. Para estes incentivos, exatamente porque não criam desigualda­des, não há necessidade de convênio. Eles se configuram como condição legíti­ma da livre concorrência, não a distorcem, ao contrário, a estimulam, ao objetivar que situações desfavoráveis de uma região ou de um setor sejam removidas, permitindo, deste modo, sua inserção competitiva no mercado. E porque favo­recem e estimulam a concorrência, eles possibilitam um retorno econômico para a própria unidade federativa fomentadora, fortalecendo a federação.

O incentivo de fomento, por todos os motivos, revela-se como um com­plexo de, medidas cujo agente central é a própria unidade federativa ou uma de suas entidades, sem que haja um fundamento direcionado para uma base tribu­tária. Não se trata, pois, de incentivo ou favor fiscal ou financeiro-fiscal nos ter­mos do art. 155, XII, g da Constituição Federal ou do art. 1º, parágrafo único, IV da Lei Complementar n° 24175.

Esta forma de incentivo, disciplinado no art. 174 como função do Esta­do preenche os requisitos do Estado Social, de acordo com os princípios da Or­dem Econômica constantes do art. 170. Ao contrário dos dispositivos do art. 155, XII, g, que têm uma função de bloqueio, os do art. 174, conjugados com os do art. 170, têm uma função realizadora de uma ordem desejada como fim. A or­dem econômica, nesse sentido, tem por fim assegurar a todos a existência dig­na, conforme os ditames da justiça social. O fim é assegurar a todos a realização de valores básicos da República: promover o bem de todos (art. 3°, IV), erradi­car a pobreza e a marginalização e reduzir desigualdades (art. 3°, III). A redu­ção de desigualdades regionais e sociais 170, VII) é um objetivo fundamen­tal, uma espécie de "princípio finalístico". Trata-se, na essência, de uma verda­deira condição de possibilidade para a realização dos demais princípios e, so­bretudo, da homogeneidade federativa. Com base nessa redução de desigualdades é que toma sentido a livre concorrência, a defesa do consumidor e do meio ambiente, a busca do pleno emprego. E é nessa realização que entra a função de fomento.

No fomento, o Estado é agente, isto é, a Constituição lhe atribui uma característica ativa e não passiva. Não se trata, assim, de atuação apenas se pro­vocado, mas de um papel próprio na cena econômica: não é público ouvinte. mas ator e diretor. O Estado-agente é conjunto de órgãos e atividades que, ao lado dos entes privados da sociedade civil, tem subsistência própria. Esta atuação, de um lado, sofre os bloqueios normativos do Estado de Direito (limites ao poder de tributar, descentralização de recursos, garantias da liberdade do cidadão). De outro, aquela atuação exige funções positivas. De uma parte, prestar servi­ços públicos, monopolizar setores, de outro, executar políticas de desenvolvimen­to, na medida em que o progresso econômico pressupõe um mundo comparti­lhado, (afinal, sem os outros as propriedades não se transformam em capital). O incentivo como fomenio, por meio de financiamentos, execução de obras, con­cessão de espaço físico etc.., é instrumento básico dessa atuação.

A exigência desta atuação do Estado é válida tanto para União como para os Estados-membros. O art. 25 da Constituição Federal determina que os Esta­dos se organizem e se rejam pelas constituições e leis que adotarem, observando os princípios da própria Constituição Federal. Neles estão englobados tanto princípios fundamentais, isto é, instituidores, originariamente, da ordem Consti­tuída, quanto princípios de organização, programáticos etc. A observância dos princípios fundamentais é absoluta. O Estado-membro não tem alternativa se­não de pautar-se por eles. Dentre eles estão os princípios teleológicos (princí­pio no sentido de meta, finalidade - cf. G. Carrió: Princípios Jurídicos y Positivismo jurídico, Buenos Aires, 1970, p. 23), constantes do art. 3º, no qual estão traçados os objetivos fundamentais da República; dentre estes destaque-se, por sua vez, o de garantir o desenvolvimento nacional (inciso II) e o de erradicar a pobreza e a marginalização e de reduzir as desigualdades sociais e regionais (inciso III). Lidos estes preceitos em consonância com princípios de organização, den­tre os quais estão os da ordem econômica no ponto referente às funções do Es­tado, fica esclarecido que o fomento, exigido do Estado, no art. 174. é também exigência posta ao constituinte estadual (cf. Ferraz Jr. Princípios Condicionantes do Poder Constituinte Estadual em face da Constituição Federal in Interpretação e Estudos da Constituição de 1988, Atlas, São Paulo, 1989, pp. 83 ss.).

Esta orientação não se altera se levarmos em consideração a tendência que se delineia na Proposta de Emenda Constitucional do Governo Federal, no que se refere às modificações no Sistema Tributário Nacional. Também ali se prevê, no art. 155, XII, a vedação da "concessão a certos contribuintes ou a de­terminada categoria de contribuintes, direta ou indiretamente, de qualquer tipo de ressarcimento ou financiamento que anule, no todo ou em parte, o ônus financeiro ou econômico do imposto". Nesta redação fica até mais claro que o problema da unilateral e indevida utilização de favores fiscais não está no meio (isenção, incentivo, benefício) mas no efeito (ressarcimento ou financiamento que anule o ônus financeiro ou econômico do imposto). De fato é nesta consequência que repousa, em decorrência, a desigualdade antes mencionada, esclarecen­do-se, ademais, que estamos falando de situações em que as concessões não são medidas gerais. mas destinadas a certos contribuintes ou categorias de contri­buinte. Reporte-se, pois, aqui a mesma argumentação, com relevo para os mes­mos princípios: se estivermos diante de medidas de fomento que visem a esti­mular a concorrência, removendo desigualdades, e, nesta medida, a promover a homogeneidade, elas serão constitucionais nos termos do art. 174. O que não se permite é, para certos contribuintes ou categoria de contribuintes, a remoção de ônus tributário, pois isto conduz a desigualdades que ferem o princípio da homogeneidade. Isto se retorça pela disposição do inciso XI do mesmo art. 155 da Proposta de Emenda que determina a uniformidade, em todo o território na­cional, da isenção ou da não incidência do imposto.

O fomento, que nos quadros do Estado de Direito, nos moldes do libera­lismo do século XIX, linha antes o caráter de favor, regalia. que exigia, por isso, controle restritivo por parte da legislação, está aqui, em suma, nos termos do moderno Estado Social que o entende nem como coação nem como serviço público, mas como intervenção administrativa sob forma jurisdicizada destinada a realizar planos programáticos no interesse do desenvolvimento regional, seto­rial ou global de toda uma comunidade. A fomentação não exclui até mesmo o incentivo fiscal, que também pode ser usado em condições que não produzem desigualdade e desequilibrem a concorrência.

Por fim, pode-se dizer, em síntese, que

I. modelo de Estado da Constituição brasileira - Estado Democráti­co de Direito - manifesta a necessidade de uma congruência das exi­gências postas pelo Estado de Direito e pelo Estado do Bem-Estar Social;

2. esta congruência permite dizer que, pelo lado do Estado de Direi­to, a homogeneidade federal é garantida partir de bases estruturais comuns, ponto de partida para o desenvolvimento regional e nacio­nal, dentre as quais se destaca a estrutura tributária;

3. já do lado do Estado Social. a homogeneidade é projeto que se realiza pela exigência posta à federação de remover as desigualda­des não-estruturais (como aquelas ditadas por condições socioeconô­micas desfavoráveis);

4. em consequência, quando se discute o tema incentivo é preciso distinguir dos benefícios fiscais e financeiros-fiscais, sujeitos às res­trições normativas previstas constitucionalmente (função de bloqueio), as atividades de fomento, exigidas do Estado em termos de remoção de desigualdades setoriais ou regionais que estejam a difi­cultar o saudável desprendimento de forças econômicas em condi­ções concorrenciais e que levem ao desenvolvimento (função de legitimação).

Fonte: DIREITO TRIBUTÁRIO- Estudos em Homenagem a Brandão Machado - São Paulo - 1998.
Coordenadores LUÍS EDUARDO SCHOUERI FERNANDO AURELIO ZILVETI .
JENNIFER J. S. BROOKS
LUÍS EDUARDO SCHOUERI
MISABEL ABREU MACHADO DERA
MORIS LEHNER
OLIVER OLDMAN
RICARDO LOBO TORRES
RICARDO MARIZ DE OLIVEIRA
ROQUE ANTONIO CARRA77A
RUY BARBOSA NOGUEIRA
TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR
VICTOR UCKMAR

Digitação corrigida por Sonia Silva Barros Dia