Tercio Sampaio Ferraz Jr.
O tema em epígrafe é objeto de um livro que levou seu autor, acusado de racismo, a pleitear um habeas corpus, afinal negado pelo STF anteontem. A decisão do Supremo é paradigmática e comporta uma reflexão.
A alegação da defesa era a de que não se tratava de publicação racista, prática considerada pela Constituição crime inafiançável e imprescritível (art. 5, XLII). Dentre outros argumentos, alegava tratar-se de obra de revisão histórica, mera interpretação de fatos ocorridos há mais de 60 anos, sob um viés ideológico de denúncia do sionismo. Está aí presente a premissa de considerar a verdade histórica como algo dependente de da opinião subjetiva do intérprete, portanto a própria história como um conjunto desconectado de fatos que adquirem um sentido a partir da perspectiva de quem os descreve.
Há, nessa premissa, um dado que merece reparo. Se é inegável que o viés interpretativo é fundamental na reconstrução de fatos, isso não faz da ciência histórica um debate retórico, de mero confronto de opiniões. Como disse, certa vez, Clemenceau, ao ser indagado sobre quem deveria recair a culpa da Primeira Guerra Mundial: “Não sei. Mas de uma coisa estou certo. Jamais se dirá que a Bélgica invadiu a Alemanha”.
Nesse sentido, a marca distintiva da verdade histórica é a verdade factual, que pode ser interpretada, mas não pode ser negada, sob pena de falsidade deliberada. Isso, para o historiador, é um limite científico (que dele exige pesquisa fundamentada) e ético (que o impede de mentir).
A defesa do autor do livro pretendia que este tratada do revisionismo histórico, no campo de um debate intelectual, e, no tocante à questão judaica, do combate ao sionismo (mas não ao povo judeu e sua religião). Dizer, no entanto, que isso é prática de quem professa uma ideologia interpretativa, mas não de racismo, é afirmação que não se apercebe da diferença entre ciência e retórica. Para a ciência, que respeita a verdade factual, pode-se, legitimamente, arguir imparcialmente e, por consequência, neutralidade. Já, para retórica, conta o dito popular “o que vale não é o fato, mas a versão do fato”. Quem assim “pesquisa "e interpreta sujeita-se, porém, à perversão discriminatória e até a efeito racista de suas conclusões.
Nesse termos, é até possível sustentar a opinião de que o povo da Alemanha nazista, ao final da guerra, tenha sofrido intensamente uma represaria desnecessária, pois já estavam impotentes. Mas não dá para ocultar, como fazem muitos revisionistas, que a propaganda nazista, até o último momento, sustentou que não haveria rendição em hipótese nenhuma.
Contudo dizer que quem sofreu o sistemático processo de dizimação humana foi o povo alemão, e não a massa de milhões de judeus, de 240 mil ciganos, de homossexuais, de deficientes físicos e mentais, de operários comunistas, de opositores religiosos é transformar o Holocausto em versão “legítima” da história. Mas dizer que essa versão é exercício científico, destituído da intenção de entorpecer a razão, é entrar no próprio jogo do nazismo.
Pode-se pesquisar em vão nos anais dos diários oficiais da época ordens do Führer sobre o holocausto. Em contraposição, havia leis de fachada, mas os verdadeiros decretos que continham a vontade do Führer em relação ao genocídio eram secretos. Assim, enquanto Hans Frank, governador oficial da Polônia indicado pelo partido, discutia em 1941 a possibilidade de se livrar dos judeus dos territórios sob seu comando, os SS já estavam assassinando sistematicamente os judeus que lá viviam.
Já no final da guerra, quando o ideólogo do partido Rosenberg discursava abertamente acerca do restabelecimento de alguns estados da Europa Oriental que haviam desaparecido sob o jugo nazista, Himmler e sua polícia secreta estavam tramando uma segunda fase do Holocausto para abranger toda a população eslava remanescente. O Estado tinha uma fachada para fins externos, mas o núcleo do poder era a polícia secreta.
Em se tratando de pesquisa histórica séria acerca do Holocausto, há ainda muito campo para o debate intelectual, como ocorre na República Federal da Alemanha, desde a década de 70, por exemplo, nos trabalhos de historiadores como Martin Broszat e Hans Mommsen, em que são apresentadas diferentes interpretações do holocausto. Mas isso não leva nenhum deles a negar o fato do extermínio dos judeus, ciganos, homossexuais etc.
Enfim, quem faz ciência sujeita-se ao julgamento da verdade e do erro. Mas quem faz retórica não pode eximir-se da responsabilidade por suas intenções e mesmo das consequências até criminosas de suas opiniões. De outro modo não existiria a calúnia, a injúria e a difamação. Ou, como já havia sentenciado na Alemanha sua Suprema Corte (caso Auschwitzlúge, 1994), dizer que "no Terceiro Reich não teria havido a perseguição aos judeus é uma afirmação fálica que, segundo incontáveis relatos de testemunhas oculares, confirmações em inúmeros juízos criminais e o conhecimento da ciência histórica, é comprovadamente falsa. Em si, uma afirmação com esse conteúdo não goza, portanto, da proteção à liberdade de opinião”. Em consequência, a corte alemã condena afirmações “históricas” desse gênero, por serem uma séria infração constitucional que conecta a negação, no Terceiro Reich, do extermínio judaico por motivos racistas com uma agressão à dignidade do sobrevivente povo judeu.
Não foi outro o teor da importante decisão da Suprema Corte brasileira ao ponderar, afinal, sobre os limites da liberdade de opinião.
Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO TENDÊNCIAS/DEBATES – 19.09.2003.