Tercio Sampaio Ferraz Jr.
AEmenda Constitucional n.° 23, de primeiro de dezembro de 1983, ampliou a competência tributária dos Estados para que estes pudessem instituir a incidência do ICM sobre a entrada em estabelecimento comercial, industrial ou produtor, de mercadoria importada do Exterior por seu titular, inclusive quando se trate de bens destinados a consumo ou ativo fixo do estabelecimento (art. 1.°). Ao estabelecer estas normas de competência, o poder constituinte derivado determinou também quando a Emenda n.° 23 entraria em vigor. Pelo seu art. 5.°, embora publicada em 5 de dezembro de 83, ela passaria a vigorar no dia 1.° de janeiro de 1984.
Ora, neste meio tempo, ou seja, entre a data de publicação da Emenda — 5 de dezembro de 1983 — e a de sua entrada em vigor — 1.° de janeiro de 1984 — foi editada uma lei ordinária estadual (SP) n.° 3991, de 28 de dezembro de 1983, definindo a importação de bem para o ativo fixo como fato gerador de ICM, prevendo sua entrada em vigor para a própria data de publicação (28.12. 83) mas determinando a produção de efeitos só a partir de 1.° de janeiro de 1984 (art. 3.° da Lei 3991).
Pois bem: a situação provoca um problema de constitucionalidade, posto que a lei estadual paulista foi editada e passaria a ter vigor no momento em que a Emenda n.° 23 ainda não vigorava, embora a data para a produção dos efeitos tanto de uma quanto de outra coincidisse: 1.° de janeiro de 1984. Diante disso pergunta-se: seria constitucionalmente válida a lei ordinária n.° 3991 para cuja edição se usou de uma competência dada por uma norma superior ainda não em vigor?
O problema, de inquestionável importância pelas suas consequências práticas, exige, a nosso ver, uma reflexão sobre um ponto de natureza terminológica. Realmente, na terminologia usual, fala-se, às vezes indistintamente, em vigência, validade, vigor, eficácia. No caso em tela, a própria linguagem normativa se encarrega de lançar dúvidas quando usa de modo não muito preciso termos dos quais se exigiriam rigor técnico. Assim, a Emenda n.° 23, no seu art. 5.° dispõe:
"Art. 5.° — Esta Emenda constitucional entrará em vigor no dia primeiro de janeiro de 1984" (grifamos), enquanto o art. 3.° da Lei 3991/83 dispõe:
"Art. 3.° — Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, produzindo efeitos a partir de primeiro de janeiro de 1984" (grifamos).
Nota-se, à primeira vista, que a Emenda parece usar o termo "vigor" para disciplinar quando começará ela a "viger" e a "produzir efeitos", enquanto a lei estadual usa o mesmo termo para indicar quando a lei passa a ser "vigente", separando do "vigor" a "produção de efeitos".
Ora, se para explicar o uso normativo dessas expressões recorrêssemos ao uso doutrinário, buscando definições comuns como se encontram em dicionários jurídicos, haveria uma certa perplexidade, pois para o verbete "vigor" acharíamos: "força, eficácia, vigência (de uma lei, contrato, etc.)" (Dicionário de Tecnologia Jurídica, Pedro Nunes). Ou seja, o uso doutrinário reforçaria a ambiguidade e vagueza do uso normativo.
Diante disso nada obstaria as possibilidades seguintes de interpretação, 1. Se o termo vigor significa tanto "vigência" quanto "produção de efeitos", então é possível afirmar que a lei estadual passou a ser vigente no dia 28/12/83, portanto após a entrada em vigência da Emenda; ou seja, 1.1 se entendermos por vigência o período em que uma norma, tendo sido estabelecida e não tendo sido revogada, c válida, então se poderia dizer que desde a sua promulgação e publicação a Emenda autorizou a edição de uma norma inferior — a lei estadual;
1.2 o período que vai da data de vigência da Emenda à data de sua entrada em vigor (1/1/84) — vacatio constitutionis — apenas impede que a lei inferior produza efeitos neste interregno;
1.3 ora, como a lei estadual previu sua produção de efeitos para 1.° de janeiro de 84, ela respeitou a vacatio constitutionis;
1.4 donde se concluiria que a lei estadual é constitucionalmente válida, tendo sido integrada no ordenamento em 83, podendo o imposto ser cobrado já em 1984.
2. Se o termo vigor significa tanto "vigência" quanto "produção de efeitos", então é possível afirmar que a Emenda, vigente desde a data da sua publicação, só começou a produzir efeitos a partir de 1.° de janeiro de 1984;
2.1 se entendermos que a autorização contida na Emenda é um dos efeitos da norma constitucional, o fato de ela já ser norma vigente não significa que a autorização já seja eficaz;
2.2 no período de vacatio constitutionis, portanto, a autorização concedida não poderia ser ainda utilizada;
2.3 ora, se a lei estadual entrou em vigência antes do término da vacatio constitutionis, utilizou uma competência que não possuía ainda;
2.4 neste caso, a lei estadual seria inconstitucional e, pois, juridicamente inválida.
Isto posto, examinaremos a questão.
Da validade das normas — Para fazê-lo, no entanto, é mister esclarecer os termos técnicos que embasam a discussão. É preciso, neste sentido, ir além do senso comum jurídico, para tentar um mínimo de rigor no seu uso. Assim, embora nos atenhamos aos textos normativos e à sua linguagem, com todas as imprecisões que ela comporta, não nos esquecemos de que, como diz a hermenêutica de longa data, "com a promulgação, a lei adquire vida própria, autonomia relativa; separa-se do legislador; contrapõe-se a ele como um produto novo; dilata e até substitui o conteúdo respectivo sem tocar nas palavras; mostra-se, na prática, mais previdente que o seu autor" (Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 1979, pág. 30).
O termo inicial para o caso em tela é validade. Que normas valem tornou-se um lugar comum da doutrina. Mas que significa esse valer? Kelsen, para quem a validade é algo que pertence à essência da norma, sendo até uma contradictio in adjecto falar-se em "norma" inválida, com esse termo designa a "existência específica de uma norma" (Reine Rechtslehre, I, 4, c). Com "existência específica" significa Kelsen que normas não são, mas devem ser. Que quer dizer isso?
Temos para nós primeiramente, que validade é uma qualidade contra fática, isto é, o valer de uma norma não depende da existência real e concreta das condutas que ela prescreve: mesmo descumprida, a norma vale. Em segundo lugar, admitindo-se que toda norma prescreve uma conduta — conteúdo ou relato da norma — e, simultaneamente, instaura, entre quem prescreve e para quem é prescrita, uma relação de autoridade/sujeito — relação ou cometimento da norma — afirmamos que a validade diz respeito, primariamente, à relação ou cometimento: norma válida é aquela cuja autoridade, ainda que o conteúdo venha a ser descumprido, é respeitada sendo tecnicamente imune a qualquer descrédito. Assim, a norma, por exemplo, cuja autoridade legisladora é tecnicamente competente e agiu conforme as regras da sua competência legislativa, será válida. Do mesmo modo, por exemplo, a norma, cuja autoridade legisladora agiu dentro dos fins estabelecidos pelo ordenamento, também será válida. No primeiro caso, temos uma validade condicional ou pela condição. No segundo, uma validade finalística ou pelo fim. Em ambos, como se vê, é preciso que a norma esteja integrada no ordenamento, isto é, sua validade decorre de outras normas que condicionam a competência e/ou determinam os fins. (v. nossa Teoria da Norma Jurídica, Rio de Janeiro 1978, p. 105 ss.).
Para que a validade de uma norma se aperfeiçoe é preciso, pois, que seja cumprido o processo de formação ou produção normativa em conformidade com aquilo que determina o ordenamento. Cumprido esse processo, a norma é válida. Sua validade poderá ser eventualmente determinada no tempo, ou ser indeterminada. Ao cabo do prazo, ela deixa de ser válida ou, caso não haja prazo, a norma é válida até que seja revogada. Isto quanto à validade. Vejamos a vigência.
Terminada a fase constitutiva do processo produtivo (se for uma lei, o processo, por exemplo, termina com a sua sanção) quando, então, a norma já é válida, o período que vai da sua publicação até sua revogação ou até o prazo que a própria norma estabeleceu para sua validade, diz-se, então, que a norma é vigente. Vigência significa pois que a norma já pode atuar ou pode atuar ainda, isto é, pode ser invocada para produzir efeitos. Vigência é, pois, um termo com o qual se demarca o tempo de validade de uma norma. (Arnaldo Vasconcelos; Teoria da Norma Jurídica, 1978, pág. 316). Nesse sentido, norma vigente é a que está aluando. A vigência pode coincidir com a validade, mas não necessariamente. Isto é, uma norma cujo processo de produção já foi aperfeiçoado já é válida; no entanto, sua vigência pode ser postergada. Assim entendemos a determinação do artigo 1.° da Lei de Introdução, segundo o qual, salvo disposição em contrário, uma lei começa a vigorar em todo o país 45 dias depois de oficialmente publicada, ou seja, a lei publicada, já válida, só terá vigência posteriormente. Durante aqueles 45 dias ela não atua, não pode ser invocada para produzir efeitos; embora válida, a relação autoridade/sujeito (já imunizada) não viu chegar ainda seu tempo de atuação.
Aqui, porém, aparece um outro termo que merece ser distinguido: vigorar, vigor. Por exemplo, o art. 2.° da Lei de Introdução prescreve: "Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue" (grifamos). Embora os dois termos sejam muitas vezes tomados por sinônimos, há de se convir que há diferença entre eles.
O texto, neste sentido, é claro em relacionar "vigência" ao aspecto temporal da norma, a qual, no período (de vigência) tem vigor. Na verdade, o que o legislador prescreve é que, não sendo temporária a vigência, a norma não só atua, podendo ser invocada para produzir efeitos, como também tem força (vigor) até a sua revogação. Aqui também, é de se admitir, via de regra, vigência e vigor tendem a coincidir. Isto é, a norma válida adquire vigência na data da sua publicação e desde então tem vigor. O vigor, contudo, não se confunde nem com a vigência nem com a validade. Que uma norma tem vigor, tem força, significa que ela é vinculante, ou seja, não há como subtrair-se ao seu comando, ao seu império. Pode suceder, assim, que uma norma não mais vigente, revogada, continue vinculante para os casos anteriores à sua revogação. Ou pode suceder que uma norma embora defeituosa no seu processo produtivo (não-válida) e impossibilitada tecnicamente de atuar (não-vigente), acabe por imperar plenamente, tendo que ser convalidada a posteriori. O que determina o vigor de uma norma é o respeito àqueles princípios, muitas vezes difusos no ordenamento, que variam no tempo e no espaço, e que são invocados para testemunhar a força da autoridade, como por exemplo — em situações normais — o princípio de que só a lei, e a norma que dela deriva, obrigue, ou — em situações anormais — o princípio de que a ordem, em ocasiões excepcionais, admita normas excepcionais.
Por último, a eficácia. A eficácia tem a ver com a produção de efeitos. Diz-se eficaz a norma a) que tem condições fáticas de atuar, posto que ela é adequada em relação à realidade; b) que tem condições técnicas de atuar, posto que estão presentes os elementos normativos para adequá-la à produção de efeitos concretos. A contrario sensu, ineficaz é a norma, nos dois sentidos, inadequada. Estes dois sentidos podem existir simultaneamente ou não. Assim, quando uma lei determina que entrará em vigor imediatamente, havendo necessidade de sua regulamentação, enquanto esta não for decretada, a lei será ineficaz no sentido (b). Decretada a regulamentação, pode ocorrer, no entanto, que a lei permaneça inadequada à realidade que ela pretende disciplinar, por razões fáticas. Por exemplo, a lei determina a obrigatoriedade do uso de determinado aparelho para a proteção do trabalhador no exercício do seu trabalho, mas o aparelho não existe no mercado nem há previsão de sua produção adequada para dar condições à sua utilização. Para efeito de diferença terminológica chamaremos o sentido (a) de eficácia semântica e o sentido (b) de eficácia sintática.
Ora, aqui também pode haver — e há em regra — simultaneidade entre validade, vigência, vigor e eficácia. Mas pode não haver. Assim, nada obsta que uma norma válida, vigente e em vigor tenha sua eficácia sintática suspensa — então ela não produzirá efeitos em face da realidade concreta — ou não tenha eficácia semântica, caso em que se aplica o princípio ad impossibilia nemo tene-tur. Neste sentido, diz-se que a eficácia conhece graus, podendo a norma ser mais ou menos eficaz. Em suma:
1. validade é uma qualidade da norma cuja relação autoridade/sujeito (cometimento) está imune, por estar ela conformada ao ordenamento, tanto quanto às condições como quanto aos fins por ele estabelecidos;
2. vigência é uma qualidade da norma que diz respeito ao tempo em que ela atua, podendo ser invocada para produzir efeitos;
3. vigor é uma qualidade da norma que diz respeito à sua força vinculante em consonância com os princípios;
4. eficácia é uma qualidade da norma que se refere à sua adequação em vista da produção concreta de efeitos.
Isto posto, pergunta-se: no período em que uma norma válida ainda não é vigente ou não entrou em vigor, pode ela ter alguma eficácia?
Vacatio constitutionis — Posto que a Lei estadual n.° 3991/83 foi editada durante o período, de vacatio constitutionis, provocado pelo art. 5.° da Emenda Constitucional n.° 23/83, faz mister compreender o que se entende com isso, em termos de validade normativa.
A validade de uma norma é condição da sua vacatio. Só uma norma válida admite a vacatio. Vacatio é "o tempo que começa com a publicação da lei e termina com sua efetiva entrada em vigor", define Vicente Ráo (O Direito e a Vida dos Direitos, 1960, vol. I, pág. 370). A publicação comunica aos sujeitos normativos, àqueles que devem cumprir a lei, a sua promulgação. Promulgação, por sua vez, é o ato que atesta, que autentica que a norma foi regularmente elaborada e que, portanto, "existe" juridicamente, isto é, é válida. Ou seja, promulgação e publicação não pertencem à fase constitutiva do processo de produção da norma (Manoel Gonçalves Ferreira F.°: Do processo legislativo, pág. 75, 264), a qual já vem perfeita, isto é, válida plenamente, para promulgação e publicação.
A vacatio legis, destarte, diz respeito à vigência e ao vigor da norma: a lei já "existe", é válida, mas durante certo tempo ainda não pode ser invocada para a produção de efeitos (vigência) nem seu comando é vinculante (vigor).
Embora relacionados — quando a norma entra em vigor, passa a viger, e quando passa a viger, tem vigor — as duas qualidades, no entanto, não se confundem. A vigência diz respeito ao tempo em que a norma é ou passa a ser invocável para produzir efeitos; o vigor diz respeito à vinculabilidade ou obrigatoriedade do comando. Pode suceder, assim, que uma norma entre em vigor na data da sua publicação, mas só adquira vigência posteriormente. É o que pretende, por exemplo, o art. 3.° da Lei Estadual 3.991/83, que estamos examinando, ao dispor: "Esta lei entrará em vigor na data da sua publicação, produzindo efeitos a partir de primeiro de janeiro de 1984". Durante esse período, também ocorre vacatio legis. Destarte, em última análise, a vacatio diz respeito à vigência das normas.
Disto resultam importantes consequências. Pergunta-se: qual o valor jurídico dos atos praticados durante a vacatio legis, de acordo com a lei nova? Se a lei nova não tem vigor nem é vigente ainda, haverá uma sujeição voluntária que será admitida, caso não infrinja nenhum dispositivo imperativo da lei antiga, ainda válida, vigente e em vigor. Mas se a lei nova já tem vigor, apenas não é vigente ainda, as disposições em contrário já foram revogadas, posto que a revogação é um efeito do vigor da norma. Neste caso, teríamos de convir que, durante a vacatio, isto é, até que a nova lei passe a ter vigência, os atos não estão mais jungidos à lei antiga. Deverão se conformar à lei nova, vigorante, mas ainda não vigente? Obviamente não. A sujeição também será voluntária, posto que, embora em vigor, a lei não pode ainda ser invocada para produzir efeitos. Mas como, posta em vigor, o efeito revogatório ocorre imediatamente, a conduta será considerada como regulada negativamente: é livre (nem se aplica a lei nova, nem se aplica a antiga).
O fato de admitir-se a sujeição voluntária durante a vacatio legis nos mostra que, neste período, embora sem vigor e vigência ou apenas sem vigência, a lei nova já pode ter eficácia no sentido de já ser adequada à produção de efeitos concretos. Isto explica, por exemplo, que um contrato celebrado conforme a lei nova, durante a vacatio legis, que não tenha ferido dispositivos cogentes da lei antiga, possa produzir os efeitos nela previstos.
Isto posto, vejamos a vacatio legis constitutíonalis que, embora não ocorra comumente, não difere, em sua natureza, da vacatio legis.
A figura da vacatio nos faz entender, em síntese, o sentido sistemático do ordenamento. O ordenamento é composto de normas válidas. Toda norma é válida em relação a outra ou outras. Normas válidas constituem, destarte, cadeias ou séries normativas, em cujo início está uma norma-origem. Toda norma é válida dentro de sua série. Pode ocorrer, no entanto, que uma norma, válida conforme uma série, não o seja conforme outra. Destarte, um ordenamento pode conter normas válidas, incompatíveis entre si. No entanto, elas não podem ser vigorantes ao mesmo tempo, isto é, no mesmo prazo de vigência. Isto quebraria a coesão sistemática do ordenamento. Como o vigor tem a ver com a imperatividade ou obrigatoriedade do comando, se duas normas válidas, mas incompatíveis, estivessem em vigor ao mesmo tempo, o endereçado não saberia qual delas cumprir. Por isso. durante a vacatio, a lei nova e a lei velha, embora incompatíveis, são válidas ao mesmo tempo, mas não podem estar em vigor ao mesmo tempo.
Ora, no caso de vacatio constitutionis, continua a imperar a Lei Maior ainda em vigor e vigente. Neste período, toda lei ordinária que a contrarie, não será válida. Mas, caso legislador ordinário edite norma conforme a norma constitucional nova, a lei ordinária será válida em relação à constituição já promulgada, embora ainda não vigorante e vigente. A estrutura dos sistemas normativos, vale a pena repetir, não impede que, dentro dele, se formem cadeias de normas válidas incompatíveis entre si, posto que, em cada série, as normas derivadas serão válidas em relação às respectivas normas-origem das cadeias. O que o sistema não tolera é que ambas sejam vigorantes simultaneamente, pois, nesse caso, o sujeito de ambas as séries não saberia à qual deve obediência. Assim, se no período da vacatio legis constitutionalis a lei ordinária, conforme àquela mas desconforme à constituição ainda em vigor e vigente, não for declarada inconstitucional nem tiver suspensa a sua eficácia, então ela passa a vigorar e ser vigente desde o dia em que a nova norma constitucional entra em vigor. Assim entendemos Pontes de Miranda quando admite que o legislador anterior à incidência de uma nova constituição já preveja, por lei ordinária, as mudanças que aquela estabeleça, posto que "não há que se aguardar lei posterior à nova Constituição para que se respeite o que ela estatuiu" (Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n.° l, de 1969, VI, pág. 385). Do mesmo modo entendemos, com uma ressalva, a afirmação de José Afonso da Silva no que diz respeito à lei ordinária estabelecida durante a vacantio constitutionis e que, não tendo sido declarada inconstitucional nem tendo tido suspensa sua executoriedade, torna-se "válida e executável"; desde o dia em que a Constituição em vigor (Aplicabilidade das Normas Constitucionais, 1968, pág. 45): a lei é válida passando a ser executável quando entra em vigor a nova norma constitucional.
A vacatio legis constitucionais da Emenda n.° 23/83 e a Lei estadual n.° 3991/83 — Pelo que dissemos até agora, é possível discutir o dilema lançado pelas duas teses supra mencionadas:" a primeira concluía pela validade constitucional da Lei n.° 3991/83, podendo o imposto nela previsto ser cobrado já em 1984; a segunda afirmando a sua inconstitucionalidade.
Na verdade, não optamos por nenhuma delas e isto pelas razões que se seguem.
A Emenda n.° 23/83 é uma norma de competência tributária que se confere aos Estados. A Lei n.° 3991/ 83 usa daquela competência e estatui a importação de bem para o ativo fixo como fato gerador de ICM. Conforme as disposições constitucionais vigorantes e vigentes entre a data da publicação da Emenda e a sua entrada em vigor, aquela competência não existia. De fato, conforme o princípio da rígida discriminação de competências e o da estrita legalidade em matéria de tributação, pode-se dizer que era vedado aos Estados se considerarem competentes para instituir um tal tributo. Esta instituição, no entanto, ocorreu, durante a vacatio da Emenda n.° 23/83 e em conformidade com esta última.
Neste ponto, é importante reforçar a distinção e a relação entre validade e vigor, sobretudo no referente a normas de competência. Normas de competência se distinguem das normas de conduta pelo seu conteúdo imediato. Estas últimas são aquelas que prescrevem uma ação cujo descumprimento provoca sanções. As primeiras prescrevem as condições para a criação das normas de conduta e o seu descumprimento provoca nulidade (e, em certos casos, responsabilidade, quando conjugados com normas de conduta).
A questão que nos interessa é saber quando a competência se torna válida e que isto significa. Em face do princípio da estrita legalidade, em matéria tributária, só há competência legislativa se a norma superior a institui. Mas que significa instituir a competência? Significa uma alteração no status potestativo do sujeito, que se torna competente. Assim, basta que a norma de competência seja válida para que a competência se institua.
Ora, em termos de sistema normativo, o legislador estadual agiu conforme uma norma-origem nova — a Emenda n.° 23 — em relação à qual a lei ordinária é válida, posto que atendeu a uma competência por ela estatuída.
Ocorre, no entanto, que esta competência, já estatuída, não estava ainda em vigor nem era vigente quando foi criada a lei estadual. Seria isto condição de invalidade da norma inferior?
Conforme o exposto anteriormente, cremos que não. O vigor e a vigência da norma superior são condição do vigor e da vigência da norma inferior. Para a sua validade, o que se exige é a configuração típica da competência, tanto em razão da forma quanto em razão da matéria. Se durante a vacantio constitutionis a competência já estatuída for usada, a norma editada conforme a competência vale, embora o estatuído só possa ter vigor e vigência após a vacatio da norma superior.
Destarte, em face da Emenda n.° 23, a Lei Estadual é válida, ainda que incompatível com a Constituição que se alterava. Não podia, porém, estar em vigor ao mesmo tempo que esta. Ou seja, o tributo nela contido podia ser validamente tipificado durante a vacatio constitutionis mas a sua obrigatoriedade só poderia ocorrer após a vacatio. Foi usada pelo legislador estadual uma competência já perfeita (válida): uma competência que podia ser válida sem estar em vigor, mas cujo uso só poderia produzir efeitos após a entrada em vigor da Emenda.
Note-se, a propósito, que a própria Constituição distingue entre validade da norma tributária e seu vigor, permitindo que uma norma, reconhecida como validamente constitucional, nem por isso seja constitucionalmente vigorante.
Assim diz o art. 153 § 29: "Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça" (ou seja, não será constitucionalmente válida a norma que, não sendo lei, institua ou aumente tributo), "nem cobrado, em cada exercício, sem que a lei que o houver instituído ou aumentado esteja em vigor antes do início do exercício financeiro, ressalvados. . ." (isto é, se não for vinculante antes do exercício, não terá vigência durante o exercício).
Ora, a Lei estadual n.° 3991/83, embora pelo seu art. 3.° pretendesse entrar em vigor na data de sua publicação e produzir efeitos a partir de primeiro de janeiro de 1984, pelo exposto, é constitucionalmente válida; mas, visto que a estrutura sistemática do ordenamento não tolera a concomitância de vinculação e por estar em vigor, no momento de sua publicação, a Constituição que se alterava, só adquiriu obrigatoriedade quando da entrada em vigor da Emenda n.° 23, com a qual é compatível em termos de validade.
Em outras palavras, a Lei Estadual n.° 3991/83 é válida constitucionalmente, mas a instituição do tributo que ela prevê só vigora a partir de primeiro de janeiro de 1984; segue que o imposto só poderá ser cobrado a partir de primeiro de janeiro de 1985.
Fonte: Revista Indústria e Desenvolvimento, 18 (8), São Paulo: 1984, pp. 22-36.