Tercio Sampaio Ferraz Jr.
Não foram muito amistosas as relações entre a Igreja e o Estado, entre nós, no ano que findou. Volta e meia surgiram incidentes, como a morte de um missionário em Mato Grosso ou a áspera troca de comunicados entre alguns ministros e representantes das missões junto aos índios. Todos estes fatos, sem dúvida alguma, conturbaram as ideias dos expectadores intrigados.
No plano doutrinário, não foram menores os desentendimentos provocados por comunicados da CNBB, que geraram manifestações e denúncias. Algumas autoridades eclesiásticas chegaram até mesmo a ser apontadas como desvirtuadas em seus propósitos. E a crítica exercida por alguns membros da própria Igreja a pronunciamentos e atitudes papais alcançaram intensa repercussão, lançando uma nuvem de incertezas sobre a legitimidade do seu magistério.
Um ponto crítico destas divergências parece localizar-se no papel desse magistério, sobretudo no que diz respeito à Doutrina Social da Igreja em relação às possibilidades concretas de ele se transformar em verdadeira ideologia política. A verdade é que o recrudescimento da questão social, a partir do século XIX, motivou preponderantemente o pronunciamento da Igreja sobre discórdias temporais, debaixo das quais se agitavam importantes problemas morais. No entanto, já em sua época, esta atitude provocava enormes surpresas doutrinárias na opinião pública, gerando uma série de equívocos sobre a natureza da participação do ensinamento da Igreja em questões temporais, como as de natureza econômica, politica e social.
Ao realizar seus pronunciamentos, a Igreja correu — e ainda corre — o risco de ver seu testemunho tomado como uma adesão a soluções específicas, em voga a cada momento em que eles foram feitos. Ainda que se manifestasse declaradamente em nome da moral e da fé, ela foi obrigada a enfrentar questões cuja profundidade e teor se enraizavam nas próprias estruturas temporais.
Especialmente em 1891, 1931 e 1961, não se tratava apenas de denunciar os defeitos de uma ordem social que era aceita como válida, mas seu magistério levantava problemas que podiam abalar os próprios fundamentos da ordem vigente. Nas principais encíclicas não se condena apenas a usura e o apego excessivo ao dinheiro, mas se discutem tanto as relações entre o capital e o trabalho, como as entre a discriminação de classes e a manutenção da pobreza — ou seja, questões de alta relevância política, capazes de incandescer os conflitos de opiniões.
Por isso mesmo é que se percebe o risco enfrentado pela Igreja de ver sua doutrina confundida com o magistério temporal de certas ideologias políticas. Sobretudo nos povos de cultura latina existe uma indisfarçável tendência de tomar o magistério da Igreja como se fora uma verdadeira ideologia que, por pressuposto, não pactuaria com nenhuma das forças que se debatem nas respectivas políticas nacionais. No após guerra, por exemplo, surgiram partidos cristãos como ideologias de terceira força, nem de direita e nem de esquerda (embora a prática dos tempos tenha desmentido esta pretensão).
A verdade é que a palavra das autoridades eclesiásticas tem sido identificada com formas e variantes de ideologias político-econômicas, vigentes no mundo atual. Num trecho da Pacem in Terris, João XXIII afirma que "a doutrina, uma vez formulada, é aquilo que é, mas um movimento, mergulhado como está em situações históricas em contínuo devir, não pode deixar de lhes sofrer o influxo e, portanto, é suscetível de alterações profundas".
Ora, é justamente esta possível ligação da
doutrina com o momento histórico que o magistério da Igreja — na sua aspiração de universalidade e eternidade — mantém sob mira crítica. A igreja, ao cumprir sua missão educadora, sob pena de se desvirtuar, não institui uma ideologia paralela ou assimilável a outras, mas testemunha a natureza do destino humano, sua vocação para Deus e a dignidade do seu ser. Seria confundir religião com ideologia, caso se pensasse que sua doutrina sanciona uma determinada ordem social como sendo a cristã. No fundo, ela apenas aponta as exigências que todo e qualquer modelo social deve cumprir.
Estas exigências, contudo, só podem ser formuladas com a linguagem do tempo, com os instrumentos conceptuais fornecidos pelo momento histórico. E é aqui que começam os problemas. O domínio direto da Igreja, enquanto instituição, sobre sua palavra, resvala facilmente para o domínio da técnica, da ciência e do próprio comportamento humano realizado na História. Deste modo, surge à possibilidade da anarquia das interpretações e das ideias, onde se esfumaça o sentido autêntico do magistério.
Nestes termos, a Igreja sempre foi muito ciosa das relações de autoridade. Nos últimos tempos, porém, o impacto provocado pelo aumento em número e importância dos meios de comunicação de massa torna aquelas relações bastante vulneráveis. Com facilidade, a palavra da Igreja, em abstrato, é confrontada com situações concretas, de tal forma que a voz de distintas autoridades eclesiásticas, postas todas num mesmo nível, recebe um tratamento massificante, aproveitando-se a retórica política das confusões que aí se geram.
O mundo da palavra e da ação parece, deste modo, conturbado. O fiel humilde, que põe sua roupa de domingo na inocência de todos os dias, talvez prefira engolir a seco as divergências, optando por uma solidariedade discreta com o pároco que lhe dá a bênção, com o bispo que lhe infunde respeito e com o Cristo que o submete por amor e compaixão. Mas a palavra da Igreja tem uma dimensão pública que a torna candente.
A pregação escondida no púlpito ganha, assim, virtualidades diferentes, quando transpõe as portas do templo. Dizer ao fiel que ele deve ser honesto e fazer da caridade uma força de transformação de si e do mundo em que vive pode, no fundo, tornar-se uma faca pontiaguda que fere a consciência pública, na medida em que o cristão se torna pai de família no seu lar, profissional no seu emprego e político na sua assembleia.
Não há dúvida de que o momento de transição em que vivemos se traduz na incerteza, insegurança e angústia. Vivemos conturbadamente entre padrões de vida almejados e padrões que se frustram no dia-a-dia, entre exigências de ação política que propicie o advento da segurança social e a injustiça crônica que oscila entre a fome, que sobrevive e a opulência, que desdenha.
A ansiedade do transitivo pode obscurecer nossas ideias e limitar nossa ação. Também por isso, talvez, a palavra da Igreja chegue até nós de forma difusa, distorcida e carregada de efeitos dúbios. No entanto, deveríamos dar maior importância aos fatos do que às palavras, e mais valor aos problemas do que às soluções.
Afinal, ver tudo com os olhos vesgos da ideologia é ver demais e ver de menos. Quem fala de um problema pode estar dando a ele uma interpretação própria, sem perceber que a interpretação e o problema não são a mesma coisa. Portanto, neste ano que se inicia, é justo que se conceda um voto de confiança à paz de Deus, à esperança dos homens e à palavra autorizada da própria Igreja, sobretudo porque sabemos que os nossos problemas não são nem ficções, nem a "boa fé" daqueles que falam em nome da fé.
Fonte: Quinta-feira, 13-1-77, O ESTADO DE S. PAULO