Tercio Sampaio Ferraz Jr.
REUNIÃO DO CONSELHO SUPERIOR DE ASSUNTOS JURÍDICOS E LEGISLATIVOS (CONJUR), REALIZADA EM 27 DE MARÇO DE 2003, NA SEDE DA FffiSP/CIESP. O RELATOR ENVIOU O TEXTO DE SUA PALESTRA. AS INTERVENÇÕES, NA PARTE DEDICADA AOS DEBATES, NÃO FORAM REVISTAS POR SEUS AUTORES.
CELSO LAFER - Abrindo os trabalhos homenageia dois ilustres amigos e advogados, que faleceram, recentemente. O Professor Sérgio Pitombo, que trabalhou na Casa e foi colega de Faculdade. Pessoa de grande talento, prematuramente falecido. Ainda se refere ao grande advogado, Teotônio Negrão, prócer da classe, tendo dirigido a Associação e cuja atuação, aqueles que tiveram a oportunidade de, com ele privar, reconhecem e, neste momento, pensa que, em nome de todos, presta esta homenagem.
MIGUEL REALE JÚNIOR - Sugere que se oficie às famílias, dando conta dessa manifestação do CONJUR.
CELSO LAFER - Agradece a sugestão do conselheiro Miguel (Reale Júnior) afirmando que, assim, se fará.
Pede ao Professor Tércio (Sampaio Ferraz Júnior) que dê início à sua palestra, sobre "Indício e Prova de Cartel"
Colusão e cartel .
Toda conduta colusiva aponta para um jogo conjunto na relação entre concorrentes. Mas nem toda colusão é cartel. Desde Coase aceita-se que as relações na linha vertical entre produtor e distribuidor acarretam custos enormes: custos de transação. Por isso, a tendência é a sua eliminação ou diminuição, fazendo acordos. No plano horizontal, pode haver acordo sobre preços, quantidades a ser produzidas ou repartição de mercados que visem a fins considerados legítimos: por ex. a proteção contra crises conjunturais e dentro dos limites estritamente necessários a esse objetivo, isto é, a sobrevivência e não a dominação do mercado. Ou acordos que visem a evitar a a dispersão de preços (existência de vendas muito dispersas e realizadas em regiões distantes e isoladas). Com isso, muitas vezes os preços são excessivos, ou a oferta é superdimensionada. Para benefício do consumidor aconselha-se, até, uma indicação (acordada) de preços (sugeridos), o que permite uma melhor visualização da demanda. Outras vezes admite-se acordo para evitar situações de grande desigualdade entre concorrentes, o que viabiliza a concorrência( acordo do tipo volume total).
Aqui vamos tratar das colusões que visam à dominação de mercado no plano horizontal. Nesse sentido, nos interessa a manifestação de cartel (coordenação horizontal de condutas) e não o truste (coordenação vertical).
Quanto à dominação, é preciso reconhecer que a palavra dominar não tem um sentido técnico capaz de constituir um termo próprio do direito concorrencial. Uma definição jurídica de dominação de mercado pode ser encontrada, por via aproximativa, no que a Lei nº 4.137/62, no seu art. 5°, chamava de "condições monopolísticas" referindo-se àquelas condições "em que uma empresa ou grupo de empresas controla em tal grau a produção, prestação ou venda de determinado bem ou serviço, que passa a exercer influência preponderante sobre os respectivos preços".
A dominação de mercado também encontra subsídios para uma definição no art. 3° da mesma lei, em que se dispunha sobre a situação na qual "em relação a uma empresa exista um restrito número de empresas que não tenham condições de lhe fazer concorrência num determinado ramo de negócio ou prestação de serviços...". No caso do art. 5° o indício relevante para apurar o domínio é a possibilidade de influência preponderante sobre os preços, o que significa, em termos do art. 3°, que a competitividade é limitada, não significativa e até inexistente. Por meio destes dois textos legais, a dominação está pois ligada à ideia de influência preponderante no sentido de controlar preços por força de limitada ou inexpressiva competitividade. Embora revogada, a Lei nº 4.137/62 nos oferece, pois, uma pista importante.
Note-se que o poder de elevar preços acima ou de diminuí-los abaixo dos níveis de competitividade é uma ocorrência econômica normal nas relações de mercado. É o que os economistas chamam de poder de mercado. Qualquer empresa, num certo limite, e num grau de aproximação relativo do ideal de concorrência perfeita, goza desse poder. A lei não trabalha com uma noção de concorrência perfeita, mas supõe que há poder abusivo quando sua atuação vise à dominação de mercado no sentido de uma influência preponderante capaz de permitir distorções do tipo controle de preços ou de limitação unilateral da competitividade. Ou seja, a ideia de que a dominação caracteriza abusividade do poder econômico não se confunde com o mero exercício de poder de mercado, mas aponta para possíveis distorções localizadas na redução da eficiência econômica e/ou no prejuízo dos consumidores, bem como dos demais princípios da Ordem Econômica. A dominação é sintoma de abuso porque provoca esse tipo de desvio de finalidade.
1. Pela legislação brasileira (Lei n° 8884/94), a caracterização do cartel como infração exige uma determinada conduta e a demonstração do efeito que ela provoca na concorrência (dominação de mercado, eliminação de concorrência, aumento arbitrário de lucros, abuso de posição dominante).
É hoje conclusão pacífica na doutrina e na jurisprudência brasileiras que a estrutura da infração concorrencial exige o abuso, isto é, que a prática, em si normal e até regulamentar, não a caracteriza, exigindo-se a produção de certos efeitos, como a dominação de mercado. Não há práticas, per se, infrativas. Donde a investigação do cartel ter de haver-se com a investigação da conduta e do efeito que ela produz.
2. Quanto à conduta, diz-se que cartel é acordo entre empresas concorrentes, tendo por objeto a fixação de preço ou a divisão do mercado, podendo haver cartel também para lançamento de novos produtos (por exemplo, combinação para lançamento conjunto), sobre a qualidade de produtos ofertados (por exemplo, manter uma tecnologia, até que todos tenham acesso a ela) etc.
Esse tipo de prática na linha horizontal pode ocorrer tanto por meio de acordo expresso ou por meio de comportamento paralelo intencional ou acordo tácito. As duas práticas são abarcadas pelo art. 21 - I da Lei 8884/94.
Acordos expressos podem ter por conteúdo a troca de informações sobre política de preços (cujo indício, por ex., está no preanuncio de elevação de preços, feito geralmente pelo líder, para que os demais acompanhem).
A demonstração dessa prática exige certos requisitos de existência do acordo.
O primeiro está na no intento de dar durabilidade e extensão suficiente ao vínculo (fixar preços de acordo com concorrente). Sua demonstração se dá pela convergência expressa, verbal ou escrita, das vontade (e não pela forma). Daí a importância de encontros furtivos, como um almoço, mesmo com objetivos meramente sociais.
Essa preocupação levou a legislação brasileira a inserir um art. 35 um parágrafo 2º e 3º bem como o chamado acordo de leniência (art. 35 B).
Como esse tipo de prova é muito restritivo à descoberta da prática, surgem problemas que a atuação da SDE conduz a abusos, sequer se valendo de indícios. É o problema de se considerar como indício a simples reunião ou a mera associação entre concorrentes e até as reuniões ocorridas em associações de classe. A jurisprudência do CADE tem rechaçado essa interpretação.
Na verdade, o cuidado está em se mostrar, primeiro, que haja efetivo poder de mercado e efeitos eficazes sobre a concorrência ( o mero acordo entre duas padarias num universo de centenas ainda não qualifica um acordo). O que é preciso examinar é se do acordo resultam: a estabilidade e o conteúdo que torna previsível a política empresarial das empresas envolvidas, de modo a produzir riscos à concorrência (análise estrutural).
Ocorre, muitas vezes, que é usual que empresas se encontrem em reuniões (por exemplo, em local como o sindicato patronal) e até façam atas dessas reuniões ou que na associação estejam depositadas informações sobre preços e políticas de concorrentes. A requisição compulsória desses dados levanta a complicada questão de se a associação ou a empresas estão obrigadas a entregar esses dados ou se isso equivaleria a uma auto-incriminação. Na jurisprudência americana, ninguém pode recusar, individualmente, a ceder os dados alegando a auto-incriminação da empresa, só a incriminação da própria pessoa.
Também se levanta, juridicamente, a questão das relações contratuais de fato e sua identificação. Nesse caso, importante é a identificação da relação de fato em matéria concorrencial, por exemplo, ou por serem expressa ou pelo chamado paralelismo de conduta.
3. No caso de divisão de mercados, por ex., a mera prática de dividir não é ainda indício de cartel. É preciso verificar se ela pode ser justificada por uma racionalidade econômica, geradora de ganhos de eficiência (exemplo típico, é o mercado automobilístico, com os distribuidores divididos, ou as redes de franquia). Portanto, o primeiro requisito de indício de cartel é um comportamento (divisão do mercado) que não tenha uma explicação racional (aumentar a eficiência), salvo a estratégia mesma de restringir a concorrência (exemplo, evitar "guerra" de preços ou diminuições de fatias de mercado): a única explicação da conduta seria, então, o acordo do cartel.
4. No caso dos preços, é preciso identificar a existência de uma formação conjunta e combinada, bem como de uma regra para o seu reajuste. O mero paralelismo (seguir o líder) tanto na fixação de preço como de critério de reajuste, não é ainda indício. O indiciamento econômico exige a demonstração da artificialidade (combinação) das regras, contra uma natural espontaneidade das leis de mercado. Essa artificialidade, por presunção, leva a uma fixação de preços superiores aos que seriam obtidos num mercado concorrencial.
5. A artificialidade enseja uma explicação irracional para a conduta, em face das leis de mercado. A irracionalidade a ser apontada deve ter justificativa única. Isto é, se a conduta tiver, ainda que hipoteticamente, outras motivações possíveis, não estará caracterizado o indício de cartel. Por exemplo, os preços sobem regularmente e em percentuais próximos. Mas isso pode ser explicado pela alteração dos preços internacionais. Essa última possibilidade descarta a presunção de que os aumentos tenham sido combinados.
6. Do mesmo modo, a recusa de negociação nas mesmas condições em que a empresa normalmente transaciona no mercado (discriminação de preços) não é, sozinha, um indício de cartel. Pois pode estar associada a eficiências (otimização e organização de redes de distribuição, impedimento de condutas oportunistas). A investigação antitruste tentará mostrar que a discriminação de preços (por exemplo, por tabelas sujeitas a descontos variáveis conforme o cliente) está associada a uma ilogicidade econômica, não tendo outra explicação a não ser o acordo de cartel.
7. Num oligopólio, a logicidade das condutas mostra que as decisões estratégicas (longo prazo) e as de política comercial (curto prazo) são interdependentes e as empresas têm de reconhecer esse fato. Por consequência, há, no oligopólio, uma tendência recíproca a considerar os comportamentos rivais, o que aproxima os resultados delas (paralelismo de conduta). Daí a criação de rotinas, preços tendentes à rigidez em face de moderadas alterações de demanda e de custos, e expectativa de que qualquer redução de preço será prontamente contraditada. Para evitar conflitos, mormente nos reajustes de preço (guerra de preços), o recurso justificável é a liderança e o injustificável é o acordo explícito. A liderança é reconhecida como aceitável (legal) quando se dá por empresa dominante (por hipótese, que decide com independência), embora num mercado oligopolista equilibrado, essa hipótese não seja sempre presumível. Nesse último caso, a conduta normal lógica) é a liderança chamada colusiva, que se baseia em outros fatores: a empresa com custos mais baixos, a empresa historicamente introdutora do produto é a que sai na frente. De qualquer modo, a liderança (colusiva) deve ser clara, sistemática e unânime. No reajuste de preços, o fenômeno da liderança se explica na medida em que, diante de condições já identificadas por todos, há um momento em que o preço se torna insuportável em face dos custos e o risco maior seja o de que o temor de não ser seguido implique inércia (ausência de reajuste e prejuízo certo): o líder reajusta os preços com a convicção de que será seguido e o não acompanhamento do líder é sinal desencadeador de guerra de preços. Ora, nessa situação, quem não é líder tem medo de sair na frente. Não obstante, se o fizer, isso pode ser sinal de que houve combinação.
8. Características usuais de ausência da liderança colusiva (indício de cartel): a empresa líder anuncia mudanças nas tabelas com demasiada frequência (mesmo para aumentos modestos de lucro) que não poderiam ser percebidas pelos demais como condições usuais de reajuste, pois só diante de alterações significativas, que, supostamente, todos percebam, é que o reajuste faz sentido. Em geral, o anúncio normal do reajuste é público e envolve satisfação aos clientes, mostrando uma tendência de todas as indústrias. Se for oculto ou disfarçado, sem explicações razoáveis para os clientes, levantará suspeita de cartel.
9. Quando não há liderança (dominante ou colusiva) e a liderança é do tipo barométrica (ora uma, ora outra empresa), o comportamento usual (lógico) é de que a) as decisões nem sempre são seguidas ou b) se seguidas, podem ser retardadas, esperando alguns "para ver o que acontece" e c) podem, às vezes, ser rejeitadas pelas demais. Ao contrário, um comportamento uniforme de acompanhar o líder barométrico levantará suspeita de cartel.
10. Em síntese, qualquer conduta que destoe das explicações usuais e economicamente racionais para o chamado paralelismo consciente de preços pode ser tomado como indício de conduta cartelizadora.
Parte dedicada aos debates
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CELSO LAFER - Agradece ao Professor Tércio por sua esplendida exposição, sobre um tema tão importante e complexo.
MIGUEL REALE JÚNIOR - Afirma que a exposição, muito interessante, abriu várias frentes e que existem diversos problemas a ser discutidos, mas não irá fazer qualquer paralelismo. Cita, quanto à estrutura, a figura da infração, seja a administrativa, seja a penal, em que deve haver a conduta e a finalidade. A seu ver, tanto num caso, como no outro, há uma infração de perigo concreto e não de perigo abstrato. Ou seja, é necessário que a conduta vise a dominação de mercado, mas com a potencialidade de causar o dano. Nesse sentido é uma infração de perigo concreto. Na lei penal, prossegue, se tem uma infração de resultado, mas de perigo, também. Porque, na Lei nº 8.137 se estabelece, no Art. 4°, Inciso I: abusar do poder econômico, dominando o mercado ou eliminando, total ou parcialmente, a concorrência, mediante ajuste ou acordo de empresas. Aí, diz, exige-se um resultado. Curiosamente, a Lei n° 8.137, tanto no campo do Direito Tributário, quanto no Direito Econômico, pune a infração, com o seu resultado e de resultado cortado. Ela pune a tentativa, o quê não precisaria, porque no Inciso II diz: formar acordo, convênio, ajuste, aliança, entre ofertantes visando a fixação artificial de preços ou quantidade, o controle regionalizado de mercado. São formas do abuso de poder econômico, que levam ao domínio de mercado. Aqui se estabelece uma relevância penal antecipada, não sendo necessário que haja a obtenção do resultado abuso. Basta que a ação tenha sido praticada, visando tal coisa. Mas este visar tem de carregar consigo, a potencialidade para causar o dano. Portanto é uma figura de perigo concreto. Entende que, por serem figuras de perigo concreto, tanto a da infração administrativa, como a do Inciso II, o que há, com relação ao elemento subjetivo, não é uma responsabilidade objetiva. Quando a Lei nº 8.884 fala em independentemente de culpa, interpreta que, por ser a figura, de perigo concreto, e possível à prova em contrário, da inexistência do dolo. Porque todas as figuras descritas na Lei n° 8.884 são dolosas e não há, nenhuma, culposa. E nem poderia haver infração administrativa, contra a ordem econômica, de caráter negligente. Existem figuras dolosas.
Entrando especificamente, na questão dos indícios, observa que ele se constitui, a partir de um fato conhecido e, através da lógica e da experiência comum, alcançar o conhecimento de um fato desconhecido. É necessário, portanto, saber o quê, normalmente, acontece, que leva, por exemplo, ao cartel. Se a experiência revela que determinado tipo de conduta, que não é a prova direta, mas indireta, é possível se estabelecer a prova da autoria ou materialidade de um fato, por via de um indício. Por exemplo: não há prova direta, de que "A" atirou em "B". Mas se for encontrado o revólver com "A", se tem um indício. Outro caso: não há prova de que "A" furtou "B", mas se encontro os objetos subtraídos, na casa de "A", tenho um indício, que me leva à possibilidade de estabelecer um conhecimento de algo que, diretamente, não conhecia. Essa prova indireta deve estar fundada, efetivamente, na lógica ou na experiência comum. Mas não basta isso. O Direito Administrativo sancionador vai ter de recorrer à experiência sedimentada no processo penal e na jurisprudência, demonstrando que, se há um indício insuficiente, é possível instaurar um inquérito, mas, para a condenação, é necessário um indício veemente. Há graus nos indícios, sendo veemente, quando se caracteriza como um conjunto harmônico, lógico, que conduz, de forma unívoca, a determinado conhecimento, que eu não tenho. Se houver qualquer elemento que contradiga essa univocidade, o indício deixa de ser veemente. Tem que se recorrer, portanto, a essa idéia do indício veemente, para poder trabalhar no Direito Administrativo sancionador.
TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR - Agradece a complementação, julgando-a importante. Diz que a ideia do perigo concreto aparece, de alguma forma, na apuração do abuso e vem sendo aceita. A simples potencialidade abstrata, não tendo sido considerada suficiente, pelo CADE, para fazer a ligação causal, entre a prática e o resultado, como a dominação de mercado, por exemplo. Observa que a ideia da possibilidade da prova, quanto à inexistência do dolo, lhe parece interessante. Mas, prossegue, não é a tendência do CADE. Nos Tribunais essa discussão, ainda não existe. Provavelmente irá aparecer, algum dia. Até agora eles tomam a expressão independentemente de culpa, como responsabilidade objetiva, mesmo.
MIGUEL REALE JÚNIOR - Como é possível um acordo, com responsabilidade objetiva? Há uma contradição. Não é possível haver um ajuste, de quem nada ajustou e que, por acaso, acabou tendo um resultado, sem ter havido um ajuste.
TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR - Esclarece que eles têm assim se manifestado, talvez por forte influência da literatura americana. É a chamada infração por uma prática per se. Na verdade, essa ideia de independentemente de culpa é meio contraditória, na Lei brasileira. Porque se você fala em abuso é muito difícil tirar, completamente, dessa ideia, alguma intencionalidade. O exemplo magno é o americano e lá, é per se. Aí passa a ser mera conduta.
CELSO LAFER - Crime de mera conduta.
TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR - Exatamente. Mas como no Brasil a Constituição diz que não é, colocaram esse independentemente de culpa.
MIGUEL REALE JÚNIOR - A americanização do Direito, especialmente nessa área, o problema da leniência, passa por cima de qualquer princípio ético. É o autor do fato delituoso, que se mantém beneficiário, até o instante em que vê a casa cair e denuncia os seus comparsas. E o Estado se vale do delator, do covarde, para querer condenar os outros. É o Estado anti-ético, que alimenta a delação. Até criminoso tem de ter a sua dignidade.
TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR - É verdade. Quanto ao indício insuficiente, suficiente, e veemente diz que, em julgamento do CADE, em que houve condenação, com base em indício, o relator, no caso do cartel do aço, chegou à essa noção de indício veemente.
MARCO AURÉLIO GRECO - Elogia a palestra, fazendo observação, a propósito do que disse o Professor Miguel (Reale Júnior). Indaga se, nessa hipótese, ainda estaríamos falando de indício, quando se fala em indício veemente. Entende que não. Porque, do que absorveu da exposição do relator, quando se trata de acordo tácito, o conceito chave é o paralelismo de conduta, contruído pelas partes. E um dos pontos principais, do debate do paralelismo, é examinar a racionalidade econômica. Ou seja, não basta a razoabilidade comercial, mas a racionalidade econômica, da conduta. Ora, quando se fala em racionalidade econômica, será que não estamos falando de motivo do ato, da ação das empresas, naquele contexto, pergunta. Se for isso diz que iria um pouco além, do quê o Miguel (Reale Junior) falou. Observa-se que, se começar com um indício, suficiente para instalar diretamente o procedimento administrativo, mas a empresa não demonstra uma racionalidade econômica da conduta, como indício, nesse caso, não seria a presunção de um outro motivo? A presunção omnis, de quê toda conduta decorre de um motivo, e se o apresentado, não é a racionalidade econômica, aquela conduta decorreu de um outro motivo. Observa que aí escaparia, talvez, daquela complexidade da discussão, quanto aos indícios serem suficientes para levar à uma condenação, pois já estaria no campo da prova indireta, através de presunções, não derrubadas, por uma prova em contrário.
TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR – Essa questão apareceu na discussão do cartel do aço. A defesa das empresas foi, exatamente, de que não haveria o indício veemente. Não está na Lei, de quê o ônus da prova é da empresa. Mas isso, assim, tem acontecido. De fato, quem tem de mostrar que não há uma explicação racional, econômica, suficiente, é a autoridade. A prática, acontece que se empurra, para a empresa e , às vezes, se torna uma prova impossível, por exemplo: mostre que você não se reuniu. No caso, houve só presunção. De fato, se percebe que, por conta dessa sutil inversão do ônus da prova, você passa do indício, para a mera presunção. Isso tem acontecido. E aí, você tem toda a razão, uma possibilidade de defesa aparece, com cera força.
HAMILTON DIAS DE SOUZA – Cumprimenta o relator, afirmando ter sido de grande utilidade a palestra. Julga que o tema começou com a questão dos indícios, sobre a qual entende caber, ainda, algumas considerações. Em primeiro lugar, como já foi bem posto, é que indício, não se distancia da prova. Indício é meio de se provar alguma coisa. Segundo, indício é fato. Presunção é o processo lógico, que leva de um fato conhecido, a outro, desconhecido. Terceiro, os indícios podem ser fortes ou fracos. Aqueles que apontam uma só direção são fortes. Quando sugerem várias possibilidades, são indícios fracos. A Lei não fala de indício, mas em indícios. Exatamente porque o conjunto dos indícios e por sua coerência, possa ter algo forte, que leve à ilação razoável, segundo o julgamento administrativo ou do juiz. Mas, em qualquer situação, os indícios são conhecidos meios de prova. Na experiência dos Conselhos Contribuintes e dos Tribunais judiciais, a respeito do processo tributário, quando se fala em princípio de tipicidade, e outros mais, não há menor dúvida, ser possível a condenação, com base em indícios. Mas diz a jurisprudência: não com base em meros indícios, que são fracos. Entende que essa questão, de se tratar de prova, de indício, ou presunção, pode ser reconduzido à uma coisa só, porque o indício é um meio de prova e, portanto, quando se chega à uma conclusão é dentro da teoria da prova. E a presunção é um processo lógico. Não vê, assim, nenhum problema em existir uma condenação, partindo de determinado indício. Por outro lado, prossegue, dentro do caso dos aços planos, teria havido uma combinação de preços. É um indício muito forte. Porém, em face da Lei, o Art. 21, que cuida dos tipos, supõe a ocorrência de algumas das hipóteses, do Art. 20. Não existe incidência autônoma, dos tipos do Art. 21, se não houver dominação de mercados, prejuízo à livre concorrência, ou aumento arbitrário de lucros. Pergunta, então, como se pode, em tese, cogitar de aumento arbitrário de lucros, o quê supõe uma combinação prévia de preços, quando esses preços são, previamente, submetidos à autoridade administrativa, competente para fiscalizar essas ações. Pode haver aumento de preço, mas fica a dúvida seríssima: se alguém pode qualificar essa conduta, de arbitrária. Entende, ser uma conduta não arbitrária. Teria, diz, outras considerações, dada a riqueza do tema, mas como não quer tomar mais tempo, apresenta essas, ao amigo e expositor.
TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR - Agradece, notando que as observações feitas a respeito do indício são, ao final, corretas, acontecendo na prática brasileira. As condenações, salvo esse caso da condenação dos postos de gasolina, em Curitiba, em que houve grampeamento, em geral têm sido feitas com base em indícios. Quanto ao cartel do aço, a idéia do relator foi de que os indícios eram fortes. Ele não usou a expressão indício veemente, mas falou em indício forte. De fato assumiu ser essa prova, perfeitamente possível. A empresa levantou a questão, apenas para pré-qualificar, se podia, ou não, haver uma condenação, com base, apenas, em indícios. Mas, na verdade as empresas acabaram discutindo se o indício era, efetivamente, veemente. A grande insistência era no sentido de mostrar que, para o paralelismo da conduta, havia outras explicações possíveis, que a autoridade colocara de lado. Quanto à hipótese de que, por terem ido procurar o governo, havia antes um acordo expresso, a alegação da autoridade, quando condenou as empresas, era de que havia um indício forte. E a defesa foi de que era uma mera presunção, localizada, justamente, nessa sua observação, de que quando o governo, interfere, diretamente, não se pode falar em um acordo expresso, nem mesmo tácito.
CÉLIO BORJA – Cumprimenta o Professor Tércio ( Sampaio Ferraz Junior) pela análise percuciente que fez do tema e pede a sua opinião, sobre um ponto que lhe parece relevante. Diz ter reparado que a investigação dos ilícitos administrativos, seja de matéria econômica, ou de outra, aberra, inteiramente, dos princípios da teoria da prova. Observa que os juristas deste país conhecem bem e os penalistas têm um domínio, um conhecimento extraordinário, dessa área do conhecimento jurídico. Talvez os civilistas menos, porque a teoria da prova, no Direito Civil, tem (certas) peculiaridades. Para dar uma explicação, lembra ter sido Relator Geral do Código de Processo Civil, na Câmara. Não emendou, nessa parte, porque entendia que, no Código de Processo Civil, o indício teria outra função. Está absorvido pela teoria da prova. Por essa simples razão. Na prova os fatos falam por si e os indícios são o quê a imaginação criadora do julgador ou do intérprete, acrescenta aos fatos. Entende que, no Direito Civil, dada a teoria que lhe parece correta, de que há uma concepção diferente, da discrição, do Direito Público. O discricionalismo tem, no Direito Público, um sentido, na ordem privada, outro. Não valia pena dar ao indício, esse destaque. Mas, prossegue, deseja chamar a atenção para o seguinte: tem reparado que, quando se trata de investigar ou de caracterizar ilícitos administrativos, a dificuldade é imensa. Primeiro, porque não há tipificação das condutas puníveis, depois há essa tendência à inversão do ônus da prova. Ou está consignada, como no Código de Defesa do Consumidor, ou aparece na prática da administração. Ela, simplesmente, inverte o ônus da prova. Indaga se não estaria na hora, de tentar, ou trazer à prova dos ilícitos administrativos, sobretudo os econômicos, para à teoria da prova, recebida já, pelo Direito Brasileiro, ou criar um novo sistema probatório, que traria uma enorme segurança, tanto aos administrados, como aos administradores.
TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR - Acha que sim. Recorda que, quando em 1999 saiu a Lei que regula os procedimentos administrativos, estava esperando que viesse algo, nesse sentido. Lamentou essa ausência. Na verdade vieram normas sobre procedimentos administrativos. Reconhece, no entanto, a importância do elenco dos princípios, que ajuda muito. Enquanto não vem, a gente lida com uma discricionalidade meio solta, da parte da autoridade. O CADE tem membros, com formação jurídica, mas outros possuem, apenas, a formação econômica. Temas desse gênero passam com certa dificuldade. Do ponto de vista da análise material dos fatos há uma tendência forte, no CADE, principalmente, a entender que, no limite, a demonstração econômica, da racionalidade ou irracionalidade, é uma questão de discricionariedade. Os advogados têm brigado para que, no mínimo, seja uma discricionariedade técnica.
CÉLIO BORJA - Lembra que a regra da Constituição é a liberdade econômica e que se contenha a conduta abusiva, da atividade da empresa. Daí lhe parecer que tolhe, um pouco, essa enorme discrição, que a administração se arroga.
TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR - Concorda. Na sequência afirma que a administração tem percebido isso, propondo, - como no sistema americano - que as condutas, no caso, passem a ser disciplinadas, como condutas per se, infrativas. O problema, diz, é que não sabe se dá para conciliar com a Constituição.
RUYMARTINS ALTENFELDER SILVA - Igualmente agradece ao Professor Tércio (Sampaio Ferraz Júnior) pela aula que nos proporcionou. Observa, na linha do que o ministro Célio Borja acaba de indagar. O Art. 20, parágrafos segundo e terceiros, da Lei n° 8.884 estabelece o conceito de posição dominante. O parágrafo segundo diz que ocorre posição dominante quando uma empresa, ou grupo de empresas controla parcela substancial de mercado relevante, como fornecedor, intermediário, adquirente ou financiador de um produto, serviço, ou tecnologia a ele relativo.
E o parágrafo terceiro diz que a posição dominante, a que se refere o parágrafo anterior, é presumida, quando a empresa, ou grupo de empresas, controla vinte por cento, do mercado relevante, podendo este percentual ser alterado pelo CADE, para setores específicos da economia.
Indaga, insistindo estar na linha do ministro Célio Borja: como é possível à uma norma, hierarquicamente inferior à Constituição, estabelecer que uma autarquia, no caso o CADE, altere percentuais, a seu bel prazer, trazendo, com isso, uma incerteza jurídica, muito grande, ao mercado, como um todo. E levando em conta, prossegue, que o Art. 1° da Lei n° 8.884, já salienta que a lei será orientada pelos ditames constitucionais da liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico.
TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR - Afirma que essa redação, não é a original. Foi introduzida posteriormente. No texto original falava-se que a posição dominante existe, quando houver vinte por cento. E não existia a parte final, "podendo esse percentual ser alterado pelo CADE". Essa redação já foi feita dentro de um espírito econômico e não jurídico. É texto típico de economista. Revela que sabe, porque participou das discussões. O argumento dos economistas era, primeiro: é presumida, porque pela literatura econômica, a posição dominante não se define por esse percentual de vinte por cento. Ou seja, pode, perfeitamente ocorrer o inverso. Tanto pode haver posição dominante, com percentual menor, do ponto de vista econômico, como haver a participação em uma empresa, com trinta, quarenta por cento e ela não ter posição dominante. Para consertar essa situação, tendo em vista a literatura econômica, apareceu essa noção de “é presumida quando”, em vez de “existe quando”.
Quanto à outra parte, que dá a possibilidade do CADE alterar esse percentual, a explicação também foi econômica. E se diz que a noção de posição dominante, que está no parágrafo segundo, é muito pobre. A posição dominante não pode ser definida, só por controle substancial.
CELSO LAFER - Agradece ao Professor Tércio (Sampaio Ferraz Júnior) por sua excelente exposição, julgando que todos se beneficiaram, com uma discussão muito rica. Diz que só dará um exemplo, das dificuldades que cercam este problema. Trata-se do primeiro caso apresentado e depois não resolvido, no âmbito da OMC. Era a respeito da questão levantada pelo governo norte-americano, quanto às dificuldades da exportação de automóveis americanos, para o Japão. Na substância o problema se resumia, no seguinte: toda rede de distribuição no Japão não era permeável à presença de automóveis norte-americanos. E, é claro, que essa rede de distribuição estava interconectada, com toda a indústria automobilística japonesa. Estava organizada de tal forma, que era através daquelas redes, que se operava o processo comercial. Naturalmente, prossegue, os japoneses alegavam que os americanos não prestavam atenção naquilo que eram as conveniências japonesas, o carro tinha a direção do lado errado, era grande demais. Coisas que respondiam, obviamente, a argumentos razoáveis. Existe aí um problema claro de indício. Esses indícios são, mais ou menos, veementes. Afinal os governos americano e japonês
chegaram a um acordo. Deve ter sido um acordo de leniência, desses que o Miguel
(Reale Júnior) protesta e se chegou à uma expectativa de que os americanos aumentariam o seu volume de exportações, para o Japão, no período de tantos anos, a uma percentagem tal. Com, isso, surge a dimensão de contestabilidade do mercado. É um bom exemplo, porque toda a discussão veio em torno de indício. O quê provava, ou deixava de provar.
Fonte: Estudos – Documentos, nº 24, Reunião do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos (CONJUR), realizada em 27 de março de 2003, na sede da FIESP/CIESP.
Texto digitado e organizado por: Gabriela Faggin Mastro Andréa.