Tercio Sampaio Ferraz Jr.
Senhoras e Senhores membros da Mesa, Senhoras e Senhores Procuradores:
Quero manifestar a minha satisfação e a minha honra por estar aqui. Sinto-me sempre lisonjeado quando me convidam para uma palestra, mormente quando me convidam para dissertar sobre assuntos desta natureza. Depois de anos de ensino em Faculdade de Direito, sei avaliar muito bem quando um tema como este provoca ou não maior curiosidade de um auditório e sei, também, que a vida profissional, às vezes, nos leva a uma série de considerações, que tendem a se fechar por natureza do próprio trabalho, ou seja, a necessidade mesma do uso técnico de instrumentos de trabalho faz com que nos tornemos especialistas e isto provoca um natural distanciamento de questões mais amplas.
Não que a noção de interesse público seja algo que esteja distante de uma técnica de trabalho. Não neste sentido, mas no sentido de que a ideia de começar um ciclo ou pelo menos um Seminário sobre esse tema com um professor de Teoria Geral e Filosofia do Direito, é algo que me faz feliz e me entusiasma.
Faço esta observação, obviamente, porque apenas chama a atenção para uma expectativa que eu acredito esteja em todos. Vale dizer, sobre este tema não vou, seguramente, me adiantar naquilo que os outros colegas vão dizer depois. Li a sequência das Conferências, dos debates e sei que os temas específicos relativos ao interesse público dentro do âmbito daquilo que nós podemos chamar de a dogmática do Direito do Trabalho, por exemplo, serão depois desenvolvidos.
Não cabe a mim entrar na discussão dogmática, porque senão, na primeira palestra, ter-se-ia, por assim dizer, toda a temática. Vou ficar apenas na preliminar pré-questionadora de conceitos que costumo chamar de zetética em oposição à dogmática jurídica. E, ao ficar na preliminar, espero estar atendendo à expectativa dos organizadores.
Espero, também, por ficar na preliminar, não aborrecê-los. Aborrecê-los num sentido
peculiar de fugir um pouco daquela especificidade dogmática, que é exigida de um
profissional. Vou ter que ficar num terreno de abertura e questionamento.
Bem, estas observações iniciais são apenas para orientar a expectativa e não para provocá-la.
As duas palavras constituem, talvez, um dos mais importantes e difundidos lugares comuns do direito moderno. Principalmente do direito contemporâneo, a partir do século XIX. Ambas as expressões, tanto a expressão "público" - essa é mais antiga -, quanto e principalmente, a expressão "interesse".
"Interesse" é um lugar comum. E quando digo lugar comum, estou chamando a atenção para um aspecto importante. Vamos discutir aqui, hoje e depois, interesse público. E interesse é lugar comum. Se é um lugar comum, poderemos até dizer que por pressuposto "interesse" e, consequentemente, "interesse público", sendo um lugar comum, é algo que, em tese e por princípio, não admite definição (no sentido estrito de delimitar, de estabelecer limites – definis donde definitio).
Lugares comuns não se definem e é por isso mesmo que são lugares comuns, como tais, expressões abertas, difusas e, assim, aceitáveis por muitos, independentemente de divergências quanto a detalhes.
Para sair de um e ir para outro exemplo: o princípio da maioria é também um lugar comum. Se houver uma disputa aqui nesta sala e não houver encontro do acordo das diferentes tendências e se alguém falar: bom, vamos decidir, a maioria vence, provavelmente, vamos resolver a questão por maioria e ninguém vai começar a perguntar por que por maioria?
Em primeiro lugar, porque "por maioria" é um lugar comum, aceita-se. Talvez, alguém entre em alguma especificidade da maioria: maioria simples ou maioria qualificada? Mas não vai mais além do que isto, e quem for contra vai levar o ónus de provar que não deve ser por maioria. Vai ser taxado de antidemocrático, etc., etc.
A força do lugar comum está, portanto, exatamente numa espécie de aceitação silenciosa. É aí que ele convence! Quanto mais temos que explicar o lugar comum, menos força ele tem. Lugares comuns não podem ser explicitados demasiadamente. A consciência do lugar-comum enfraquece a comunidade da expressão, isto é, começamos a perceber que, levantada esta ou aquela ou aquela outra característica, o lugar-comum deixa de ser tão comum, porque aí alguns aceitam um lado, mas não vão aceitar o outro.
Esta preliminar é importante quando se começa, neste Seminário, a discutir um lugar-comum, ou seja, a tomar consciência de um lugar-comum.
Usa-se o lugar-comum; não se define o lugar-comum. E, não se definindo, o uso é
mais eficiente.
Pois bem, interesse é um desses. Não vou me ocupar profundamente de interesse e vou me ocupar mais da expressão público - "interesse público".
O lugar-comum interesse foi criado - por assim dizer - no século XIX. E, a partir do século XIX, com a chamada - na Alemanha - "Jurisprudência dos Interesses", veio ao encontro de necessidades interpretativas da época, quando a compreensão do Direito estava extremamente ligada a uma concepção conceitualista e voltada para uma organização sistemática das normas vigentes (Jurisprudência dos Conceitos, Escola Analítica)
As limitações provocadas por este tipo de abordagem do Direito da chamada Escola Analítica, no Século XIX, provocou uma reação em termos da premissa: direitos tratam de interesses, a sociedade vive de interesses, o direito se volta para interesses, a norma é um instrumento para atender interesses, o fundamental o interesse (lhering).
E o que é o interesse?
A definição é tão vaga quanto possível. No século XIX se falava, e até hoje se fala, que o interesse é uma relação. É a relação entre a necessidade, o bem que atende à necessidade e o sujeito que tem a necessidade.
Interesse, portanto, é uma relação. Quando dizemos que interesse é uma relação e colocamos a expressão nessa tríade, se pensarmos bem, não estamos dizendo muita coisa.
Porque é claro que a partir daí surgem todos os problemas. Necessidade? Quais necessidades? Quaisquer bens ou comportamentos, serviços? Quais? Que tipo de relação? Sujeitos? Quais?
A noção substancial de interesse fica, porém, não discutida e com isto ela tem força argumentativa. E tendemos a reconhecer que a sociedade vive de interesses, os conflitos sociais são conflitos de interesses e passamos por cima de uma porção de questionamentos especulativos até pertinentes.
Seria verdade que a sociedade vive de interesses?
Se nos aprofundarmos na questão, vamos ver, seguramente, que não é verdade. A sociedade não é um conjunto de interesses, nem todos os problemas jurídicos resultam de conflitos de interesses. Há conflitos jurídicos que não têm nada a ver com interesse propriamente dito (por exemplo, conflitos de competência). Há situações em que os interesses sequer aparecem. Neste sentido, não há necessidade ou não há o bem e, não obstante, existem conflitos.
Pois bem, a palavra interesse, no entanto, manifesta este sentido etimológico, o "inter esse" (o estar entre). Estar entre uma necessidade, um sujeito e um bem ou uma finalidade que atende aquela necessidade.
A expressão interesse público é uma expressão, que também ganha força no século XIX.
Quando vemos a velha definição romana de ULPIANO do Direito Público, do "jus publicum" em oposição ao privado, a palavra interesse não aparece. Ele fala da coisa pública, da "res publica", fala da "utilidade dos particulares", mas não fala em "interesse". Interesse é uma expressão moderna.
E interesse público ganha uma relevância especial no século XIX, como conjunto que forma um lugar-comum, um lugar-comum da argumentação jurídica, base para uma série de consequências normativas importantes.
E o que significa este "público" associado à noção de "interesse"?
Quando pergunto o que significa, tenho dois caminhos para explorar as noções: um seria o caminho dogmático, que provavelmente vai ser objeto dos próximos seminários, tendo em vista um objetivo, o objetivo interpretativo, a hermenêutica na aplicação do Direito. Outro seria o caminho zetético, do questionamento prévio à utilização hermenêutica.
Nessa apresentação, vamos ficar na antecâmara do problema dogmático. E quando digo ficar na antecâmara do problema, significa enfrentar a questão do interesse público trazendo à consciência de todos que são expressões que não podem ser reduzidas, então, a definições lógicas.
Dissemos que lugares-comuns não se definem, mas é possível configurar o lugar-comum na medida em que traçamos a sua origem histórica, isto é, tomamos consciência da sua própria história.
Isso não fornece, ao final, uma definição, mas dá uma pista para uma compreensão do uso dogmático, que é ajudar a decidir questões jurídicas.
Estando nessa antecâmara, vamos, inicialmente ou basicamente, explorar a noção de público, porque me parece que é aí que está a questão: "o interesse público em oposição ao interesse privado". Como faço essa distinção? Note-se que a própria distinção é, ela mesma, um lugar-comum, ela é tópica, como poderíamos também, tecnicamente, dizer (de "topos" = lugar).
A oposição público e privado não é pois uma oposição que se possa traçar com facilidade, mas é possível percebermos, na História, como é que ela foi ganhando contornos.
A noção de público e privado, na nossa cultura, tem origem na Antiguidade e, na medida em que, pela Antiguidade perpassa o Direito Romano e o Direito Romano tem importância decisiva para nós, quando falamos em público e privado, temos que olhar para a Antiguidade, porque aí está uma das principais fontes para preenchermos depois a noção de interesse público.
O ser humano, na Antiguidade, costumava ser descrito pelos filósofos gregos como um ser coagido por necessidades. Ele tem necessidade de se alimentar, necessidade de se vestir, necessidade de procriar etc. Essas necessidades elementares da vida acossam todos os seres animais e até muitos outros seres. São as chamadas necessidades naturais.
A necessidade de viver engloba esse conjunto de necessidades. E existia, na Antiguidade, uma atividade voltada para essas necessidades, num campo específico. Atender às necessidades correspondia a um tipo de comportamento ou atividade que se chamava "labuta” ou “labor".
A ideia da "labuta" ou "labor" era de uma atividade específica, voltada para a satisfação de necessidades. E onde e como se labutava? A labuta era algo próprio de uma comunidade do tipo família, da família alargada, em termos do "paterfamílias" e aí as necessidades vitais eram resolvidas, eram satisfeitas.
A função do agrupamento familiar era satisfazer necessidades e a atividade humana capaz de satisfazer as necessidades era a "labuta", o trabalho laborial.
O que significa o trabalho laborial? O trabalho laborial ou a labuta era um tipo de atividade voltada para o atendimento de necessidades consumeristas - para o consumo. Isto é, era uma atividade que gerava produtos que se consumiam e que integravam a própria vida e com isso davam ao ser humano a condição de continuar a sua própria vida: voltar às necessidades, de novo produzir e de novo aumentar as suas necessidades ou satisfazer as suas necessidades. Em síntese, a "labuta" era uma espécie de atividade circular; ela produzia os bens para satisfazer as necessidades, necessidades essas que eram do próprio exercício físico do homem e, com isso, o homem se fortalecia para produzir nova labuta e, com isso, atender as necessidades e assim por diante.
Esse círculo da vida era o que acontecia no interior da família alargada em termos de "pater famílias". Na estrutura social antiga do "pater famílias", a relação entre o senhor – “pater famílias” - e os demais era uma relação que poderíamos chamar de próxima de uma relação tirânica (por coação das necessidades vitais). Não havia liberdade. O "pater famílias" era o senhor dos seus filhos, da sua mulher, dos seus escravos e alguém só saía dessa condição quando se tornava "pater famílias".
A satisfação desses interesses pela labuta constituía, na Antiguidade, uma esfera -aquilo que os antigos chamavam de "a esfera privada".
Esse era o campo privado, o campo da satisfação das necessidades vitais por meio de uma atividade específica, que era a atividade laborial: a "labuta" (a produção de bens de consumo para o fortalecimento da própria vida laborial).
Quem conseguia se liberar disto, e eram poucos, eram os senhores, os "patres famílias". Só eles se liberavam do constrangimento da necessidade e se liberavam porque tinham escravos.
Entre si, constituíam uma outra comunidade. Nesta outra comunidade, exerciam uma outra atividade, que nada tinha a ver com as necessidades vitais.
Esta outra atividade é que, na Antiguidade, se chamou de "atividade política" ou "ação". Só os senhores eram capazes de ação. A ação, em oposição à "labuta", não estava presa a nenhuma necessidade, era espontânea e, neste sentido, era livre. Ela não vinha ligada a uma necessidade, portanto, na sua espontaneidade ela era muito difícil de ser controlada (donde o surgimento da política como arte ou como ciência prática).
Era muito fácil para o "pater famílias", na sua família, saber do que ele precisava. Para conseguir os bens, ele precisava de labor e o "labor" tinha uma determinada razão: atender as necessidades, criar os bens necessários, incorporáveis ao próprio agente: comer para continuar labutando.
Na ação e na ação política, a espontaneidade criava uma espécie de desarranjo nas relações. A espontaneidade de ação criava um problema e esse problema foi, desde a Antiguidade, conhecido como o problema político da governabilidade.
Como governar se a ação é espontânea, se ela não está regulada por nenhuma necessidade? Se ela é regulada pelo convívio, pelo convívio dos homens livres e iguais?
O plano da ação era um plano de liberdade e de convívio. Este plano era um plano onde o homem saía do âmbito das necessidades vitais e abria o peito para um encontro inseguro com o fortuito. Ele não sabia o que o outro ia fazer, o encontro fortuito da governabilidade, dos arranjos, dos acordos que podiam ser quebrados, donde o aparecimento de reguladores práticos como a Justiça, o Direito, a Retórica etc.
Na relação de necessidade não se quebrava nada, porque a necessidade não satisfeita eliminava o "infrator".
A outra esfera, a esfera política, era, em oposição à primeira, reconhecida como a esfera pública. Nestes termos, a oposição entre o público e o privado, na Antiguidade, era uma distinção razoavelmente clara.
Tudo aquilo que dissesse respeito à vida interior da família, tudo aquilo que dissesse respeito à satisfação das necessidades por meio da labuta era assunto privado.
Tudo aquilo que dissesse respeito ao governo, ao encontro dos homens livres, era assunto público.
Tanto a palavra público quanto a palavra privado tinham, no entanto, uma conotação para a qual eu lhes chamo a atenção e é importante que percebamos isto, porque isto acaba refletindo-se na nossa era moderna.
A palavra público é mais fácil de ser percebida. Público tem dois sentidos. Público significa, em primeiro lugar, o que é geral, comunitário, para todos. Mas público significa, também, aquilo que é visível. A visibilidade é um elemento importante do que é público. Se é público é visível e se é visível é público.
Ao contrário do privado. O privado é aquilo que não é visível. O privado é secreto, por isso a família se fecha em seu círculo.
Desculpem, por uma expressão um pouco chula, mas pensem na intimidade da expressão em português "privada". É o lugar onde nos isolamos e está ligada a uma necessidade. Essa era uma ideia forte e que acompanhou a palavra "privada" durante os séculos. Ela tem o sentido do secreto, daquilo que não se mostra para os outros. E tem o outro sentido, "privus" - essa é uma palavra importante - que também significa o lugar (natural) do homem. E o lugar do homem é a família. É ali que ele tem a sua raiz, na Antiguidade. E, portanto, era ali que ele tinha condições de se apoiar para sair e enfrentar a sua vida pública.
Os antigos diziam que esta compulsão de sair da esfera privada para a esfera pública era tal e o risco que se acometia nesta saída era tal, que a vida pública tinha como maior virtude a coragem.
É muito fácil ficar no campo privado da família, ficar escondido e não fazer nada. Enfrentar os outros publicamente é complicado, os riscos são enormes.
Pois bem, na Antiguidade, a distinção era clara, porque se percebia, então, que a vida política encarnava a noção do público e a vida familiar encarnava a noção de privado.
A vida privada era o lugar de cada um. Escravos, neste contexto, não tinham um lugar próprio. Eles eram meros instrumentos da labuta, equiparáveis ao arado, ao martelo, ao machado etc. Entre a vida privada e a vida pública, entre estas duas esferas, se colocava, porém, uma terceira esfera que não era, propriamente, nem pública e nem privada.
Essa esfera era a esfera do trabalho, não da labuta, isto é, daquele tipo de atividade finalista. Aí se colocavam os artistas, que produziam obras, obras de arte; aí se punham os artesãos, que também produziam obras; aí se punham os mercadores, os comerciantes que, propriamente, não tinham um lugar certo na Antiguidade. Eles ficavam meio à margem. As feiras de mercadores e o lugar onde se vendiam esses objetos produzidos pelo trabalho com uma finalidade (faziam-se mesas para ser úteis para isso e para aquilo) eram, em geral, fora da "polis", fora da "civitas". As feiras não eram dentro das cidades; foi depois que elas ficaram incorporadas às cidades.
Esta atividade comercial que produzia bens não de consumo, mas bens úteis, que tinham uma existência própria, desligada do produtor e, por isso, um valor de troca – para usar uma expressão económica, em oposição ao valor de uso – esta atividade que não era propriamente nem pública, nem privada, estava à margem da polis.
E é por isso que, quando se examina a filosofia grega, percebe-se a dificuldade que têm os filósofos ao tratar do comércio como alguma coisa humanamente digna.
Comerciante é, então, uma figura meio estranha, não é nem público nem privado, está fora. Ele cuida de propriedade, neste sentido de algo próprio, mas que tem a ver com a riqueza, produção de riqueza. E isto é uma coisa da qual não se devia falar, em termos de dignidade humana.
Quando saímos da Idade Antiga e entramos na Idade Média e na revolução provocada pelo Cristianismo, vamos perceber que a noção de público e privado vai sofrer uma mudança muito grande.
E a mudança grande acontece até na escolha das palavras. Quando olhamos a tradução de Aristóteles por Santo Tomás que define "o homem é um ser social" e não "o homem é um ser político", uma mudança ocorreu. Político e social não são a mesma coisa.
Quando digo que "o homem é um ser social", estou me referindo àquilo que os antigos chamavam de gregariedade. Os antigos reconheciam que, tanto o homem na família quanto na sua vida pública - política - era um ser gregário e, neste sentido, social. A sociabilidade fazia parte das duas vidas. Mas o que dava dignidade ao homem não era a labuta, o que dava dignidade ao homem era a ação – política. Isso é que era importante.
Pois bem, quando passo para a Idade Média e introduzo a noção de social para caracterizar o ser humano (o ser humano é um ser social), a distinção básica entre o privado e o público fica um tanto quanto obnubilada. Por quê? Porque social é tanto o ser humano na sua vida privada como o ser humano na sua vida pública.
A sociabilidade, caracterizando a vida humana, traz o problema de como distinguir o público do privado e, na Idade Média, essas coisas se confundiram, principalmente nos regimes feudais, onde o senhor se confunde com o "pater famílias" e com o senhor político. É o mesmo senhor, ao mesmo tempo senhor dos seus bens para a satisfação das necessidades daqueles que convivem dentro do seu burgo, como também é o senhor político, simultaneamente, isto é, o governante. Ele não tem duas vidas, é uma só: o exercício de uma atividade se confunde com a outra.
E esta percepção de que, tanto na esfera pública como na esfera privada, estamos às voltas com a sociabilidade é que, por assim dizer, vai encontrar o pensamento cultural do ocidente no correr dos séculos, durante a Idade Média, culminando num problema complicado, no início da Era Moderna.
No início da Era Moderna, esta complicação, isto é, o fato de ficar obnubilada a diferença entre o público e o privado, vai acabar sendo resolvida por um artifício. A partir da Era Moderna, começamos a substituir a velha noção de ação política/espontânea, não dirigida nem por necessidades, nem por finalidade, pela noção de trabalho. Isto é, começamos a entender a ação humana como uma atividade finalística. O homem guiado por finalidades, o homem fabricador de bens que, no comércio humano, podem ser trocados por outros bens.
Começa o domínio cultural daquilo que se pode chamar de o "homo faber" – o homem fabricador.
O homem fabricador – o "homo faber" – passa a dominar tanto na atividade familiar, no interior da família, como na comunhão social.
Se ele é um só em todas as suas atividades, como separar a esfera pública da esfera privada?
É nesse momento que a cultura do Ocidente inventa algo fantástico, um artifício novo, com o qual até hoje temos que conviver: o Estado.
O Estado é responsável pela constituição da sociedade. E tudo aquilo que tem a ver com a constituição da sociedade pertence à esfera pública. E aquilo que não tenha a ver com a constituição da sociedade pelo Estado ao terreno privado.
Mas, como a ação humana é entendida como trabalho finalista, como uma fabricação, a esfera privada não é mais necessariamente circunscrita à família, ela é circunscrita a algo muito maior, que se chama mercado.
A distinção passa a ser outra. Observe-se o salto que demos. Saímos de uma distinção em que a esfera pública e a esfera privada têm a ver com política e família, para uma noção em que público e privado têm a ver com Estado e mercado. Estado e a chamada sociedade civil, que é a sociedade do mercado, que é o lugar onde se realizam as trocas humanas, onde a principal atividade é produzir bens de troca. Este passa a ser o terreno do privado, sendo o terreno público é o que lhe garante as estruturas relacionais e as condições de atuação.
Essa noção vai se desenvolver durante os séculos XVI, XVII, XVIII, indo desembocar no século XIX, quando obtém suas conceituações mais acabadas.
Cabe ao Estado a garantia fundamental do mercado. Mercado no sentido amplo: tudo passa a ser mercado, até a vida na família, até a satisfação das necessidades, tudo passa a ser mercado. E, na medida que tudo passa a ser mercado, entende-se, do ângulo económico, o fantástico desenvolvimento do Capitalismo.
A vida é dominada pela noção de mercado, todos os bens produzidos no mercado resultam de uma atividade que se considera privada. Ela é sociável, mas é privada, em oposição à outra que será pública. E é pública na medida em que se liga ao Estado como artifício que constitui a sociedade como tal e garante como tal. Por outro lado, é privada num sentido novo, no sentido de propriedade e de riqueza, donde a sociedade política como Commonwealth.
Podemos entender que, no correr dos séculos, essa diferenciação vá sendo marcada inclusive em termos de, num certo momento, a atividade própria do Estado, na medida em que constitui e garante a sociedade-mercado, poder ser vista como capaz até de prejudicar a vida privada do mercado. E podemos assim entender, na Era Moderna, o surgimento dos direitos fundamentais ou dos direitos individuais como direitos do homo faber. leia-se, do burguês, a limitar o Estado.
A noção de público e privado regida por essa ideia daquilo que interessa ao Estado, como constituidor e garantidor da sociedade, e daquilo que interessa ao mercado, é outro traço significativo na formação do lugar-comum público e privado e a grande responsável pela locução "interesse público" em oposição a "interesse privado".
É claro que a História não fica por aí e no final do século XVIII, já no século XIX, depois da Revolução Francesa, principalmente, - embora isso já viesse sendo armado do século XVIII para o XIX -, vai ocorrer uma terceira transformação importante para entendermos a distinção entre o público e o privado em termos de lugares-comuns.
Na passagem da Antiguidade pela Idade Média para a Era Moderna, reduzimos as atividades humanas a duas: de um lado a ação, entendida a ação como trabalho do "homo faber", e, de outro lado, a labuta. Restou a labuta. A labuta não tinha lugar nesse universo. E, aliás, até pouco tempo, até mesmo na nossa cultura, tem-se dificuldade de incorporar a labuta como uma atividade humana digna.
Não se precisa ir longe, podendo-se dizer que só nesta segunda metade do século XX é que conseguimos entender como atividade digna do ser humano, por exemplo, a atividade doméstica da mulher. Quantas vezes não se pergunta: "Você trabalha ou você só fica em casa?" A pergunta, posta deste modo, discrimina e degrada a labuta.
Os chamados afazeres de casa são labuta. É aquela atividade circular, que não tem fim: limpa para sujar, para limpar, para sujar. Isso é labuta, não é trabalho. Não tem finalidade. A finalidade é ela mesma. A finalidade é manter limpo, porque mantendo limpo, suja e sujando, tem que manter limpo. Não é trabalho, é outra atividade. Portanto, não é ação, ação entendida, agora, como trabalho (ação finalista, dita produtiva).
Existem ainda outros exemplos de atividades que não se consegue entender como trabalho. Dar aulas, por exemplo. Uma vez um aluno chegou para mim e perguntou:
"Além de dar aulas, o senhor também trabalha?"
Pois bem, durante o século XX, a discriminação da labuta vai ser sucedida pela sua assimilação a trabalho. Ficam alguns restos, como é o caso da labuta familiar, em casa. Não obstante, a assimilação é forte. Durante o século XIX, aqueles que labutavam não tinham lugar na sociedade. Durante o século XIX brasileiro, vemos, ainda, uma sociedade de escravos e o escravo fazia labuta, basicamente era um labutador; não propriamente um trabalhador.
O reconhecimento de que o labutador é um trabalhador é um reconhecimento tardio no Brasil.
A presença do labutador nas esferas pública/ política e privada/mercado, vai demorar tempo, mas virá com os sindicatos. Virá na Revolução Francesa através dos "sans cullote". Já era a presença do labutador, tentando adquirir um espaço para si, dentro de um âmbito em que trabalho/ação dominavam.
Pois bem, essa assimilação, que vai ocorrer e se aperfeiçoar durante o século XX, em que a labuta vai começar a ter um lugar importante na vida humana, vai significar, porém, não a absorção da labuta pelo trabalho, mas, ao contrário, do trabalho pela labuta.
Até meados do século XIX, o trabalho era uma atividade eminentemente individual. Aí podemos entender a força do individualismo. Quem trabalha, trabalha para si e desenvolve para si algo: busca as suas finalidades.
Na labuta não. Na labuta trabalha-se em conjunto, por assim dizer. As atividades não se destacam. Na labuta ou na compreensão do trabalho como labuta, está a base para se entender a ideia da fábrica, onde o sujeito se reduz a uma peça, que produz, conjuntamente, outra peça maior
A confusão labuta-trabalho, própria do século XX, vai provocar uma mudança brutal na relação público-privado, voltando ao nosso tema.
Até então, a esfera do público era a esfera do Estado e a esfera do privado a esfera do mercado, donde interesse público e interesse privado.
Na hora em que a labuta penetra no terreno do mercado e do trabalho e o homem trabalhador passa a ser um labutador, genericamente, isto é, na hora que ele não está mais voltado a produzir bens de troca, que têm valor de troca, mas que está voltado a produzir bens de consumo, isto é, aqueles bens que integram a vida, a noção de consumo-labuta toma conta de todas as atividades humanas e o homem vira um labutador ou, para usar uma expressão mais correta, vira um operário: “homo laborans”.
A sociedade contemporânea é uma sociedade de operários - não de trabalhadores -, na verdade é uma sociedade de operários, onde cada um tem uma função e a grande atividade é manter-se vivo, a vida se tornando o maior valor. Tudo que satisfaz a sobrevivência é bom, o que não a satisfaz não interessa.
Na hora que somos dominados pela ideia da operatividade, também a esfera pública, que estava ligada ao Estado, se transforma na mesma direção.
Simultaneamente com essa mudança na cultura, vamos perceber pois uma mudança nas competências do Estado, o Estado se alarga.
O Estado era, antes – na Era Moderna –, o lugar da realização política. Ao Estado não interessavam as questões privadas do mercado, o Estado não participava do mercado, ele garantia o mercado.
O Estado não participava da vida civil, ele garantia a vida civil e as suas finalidades eram dar à vida civil paz, segurança, certeza, ausência de guerra ou guerra se necessário para manter a paz e aí parava.
Quando, no entanto, a atividade humana, que antes era ação, trabalho, labuta, passa a ser compactamente entendida como labuta - tudo vira labuta, tudo passa a ter interesse se tiver interesse vital -, qual passa a ser a atividade pública? Ou o que passa a ser atividade pública, do Estado? O que acontece?
O Estado começa a entrar no chamado domínio privado, alarga a sua atividade, assume responsabilidades que, na Antiguidade e mesmo no passado até o século XVIII, pertenciam à esfera privada. Por exemplo: seguro para uma aposentadoria, previdência, garantia de saúde. Na Antiguidade isso nunca foi atividade do Estado e muito menos atividade pública.
Como é que faziam os pobres que ficavam doentes? Para isso haviam os lazaretos, instituições privadas, não públicas. Toda a previdência ou se dava dentro da família ou, quando as famílias não a suportavam sós, por meio de caridade. Não havia outra alternativa. Isso não era atividade do Estado, não era assunto público. Em outras palavras, era assunto privado.
Quando, no entanto, ocorre essa assimilação ou quase fusão de todas as atividades humanas em torno da labuta, alarga-se o campo de atividade do Estado e com isso, haveremos de entender que a distinção entre o público e o privado e, obviamente, a distinção entre interesse público e interesse privado se torna extremamente complicada.
Como separar um do outro?
Se ainda fôssemos romanos ou gregos, era fácil de separar. Até a Era Moderna ainda era possível: mercado de um lado e Estado do outro. E agora? Quando o Estado tem funções típicas da vida privada e vice-versa, porque a atuação que o mercado exerce privadamente, também mexe com atividades que antes eram típicas da atividade do Estado, surgindo questões jurídicas do tipo: o sindicato tem natureza jurídica privada ou natureza jurídica pública?
Esse é um problema que surge, exatamente, por causa dessa confusão de "interesses", tendo em vista a redução da ação a trabalho (ação finalista) e do trabalho a labuta (ação vital).
A distinção entre o interesse público e o interesse privado passa, porém, por esse tipo de confusão. Temos, pois, hoje, elementos para elaborar essas noções ou lugares-comuns?
Nós podemos jogar com certos elementos que nos levam a algumas formas de radicalização e, assim mesmo, percebe-se como é difícil.
Podemos, por exemplo, dizer que o interesse privado é aquele que se volta para a família? Até certo ponto é possível argumentar que sim, embora se perceba que na própria família existem elementos que não são privados, são públicos (veja-se a noção, por exemplo, de direitos indisponíveis).
Não obstante, em termos de argumentação, é possível tentar atribuir algum valor teórico para a ideia da privacidade, como elemento típico da esfera privada em oposição ao público. Como é também possível tentar jogar - isso ocorre a todo momento - com a ideia do mercado e da sociedade civil em oposição ao Estado, para tentar separar uma coisa da outra, com a dificuldade que isso vai trazer, evidentemente, por causa da confusão das três atividades, em termos de uma só – a labuta.
E o que se pode concluir disto?
A conclusão, seguramente, não é uma conclusão dogmática. E quando digo que não é uma conclusão dogmática, quero dizer, que não é uma conclusão que sirva, imediatamente, para os senhores daí extraírem regras de ação.
Mas, o que percebemos, tentando tomar consciência dessa expressão "interesse público" em oposição à expressão "interesse privado", é que, dadas essas configurações históricas e a confusão gerada culturalmente dos três tipos de atividades numa só, a labuta, em que as esferas se convergem, é que a dicotomia interesse público-interesse privado, enquanto um lugar-comum, tem, não obstante, uma utilidade fundamental para o jurista.
Por meio desta dicotomia, que, como estamos percebendo, envolve uma confusão básica, o jurista é capaz de administrar espaços para intervenção da autoridade no âmbito particular.
Ainda que a distinção não seja clara, é por meio desta dicotomia que, definida caso a caso, vamos organizar os espaços hermenêuticos, ou seja: a dicotomia interesse público-interesse privado, e, basicamente, a noção de interesse público permite atuar interpretativamente na vida social, conferir a setores da existência humana, ora um ora outro caráter, e sua função não passa disso.
Por outro lado, exatamente porque, em nossa época, a noção de interesse público se tornou confusa é que se torna necessária a devida configuração dogmática. Isso pode parecer um paradoxo, mas é o que acontece.
Todas as características que aparecem do interesse público são, na verdade, características dogmáticas. São dogmas, para o jurista lidar com as situações, não serão definições lógicas.
Elas só podem funcionar, exatamente, porque há uma confusão. Um romano não discutiria a esfera pública e a esfera privada. Aqui, vocês se reúnem para fazer uma série de seminários. Por quê? Porque ninguém consegue saber, exatamente, o que é interesse público. E com toda razão. A História nos mostra uma confusão.
E, por conta desta confusão, o que se observa é a passagem de um termo que tinha ou possivelmente teve uma função descritiva, isto é, interesse público descrevia um âmbito, em oposição a interesse privado, que descrevia um outro âmbito, para uma função eminentemente prescritiva. E nessa função prescritiva, torna-se instrumento de intervenção do "aplicador" nas relações sociais, seja este "aplicador" um legislador, um administrador, um juiz, um procurador, um advogado etc.
Muito obrigado.
Fonte: http://www.prt2.gov.br/revl.shtml – em 15/1/2003