Há algum tempo, foi mostrada na televisão brasileira a esposa de ex-governador do Rio de Janeiro sendo conduzida à prisão domiciliar e como o povo se aglomerou diante do seu apartamento para protestar. A decisão da Justiça provocou revolta. Como explicar o fenômeno?
Tem-se aí a percepção de que o direito positivado é incapaz de lidar com a profundidade (o sentimento do sofrer o crime e a dificuldade de relacionar crime e castigo). Ou seja, a punição efetiva pode consistir e qualquer punição em grau pré-estabelecido, mas aquilo que se oferece às vítimas não alcança jamais o sentimento de satisfação.
Na tragédia Electra, Eurípedes faz Clitemnestra justificar o assassínio de Agamenon, por ter sacrificado Efigênia aos deuses: “foi pelo bem da nação grega que ele matou minha filha, eu sei disso, mas não justifica que ele tenha assassinado a própria filha e, nesse sentido, eu como mãe podia e até devia me vingar”.
Quanto mais o ser humano é capaz de ternura dentro do seu grupo, tanto mais é indiferente quanto aos grupos vizinhos. Donde um sentimento de (quase) “igualdade” em força para dentro e de “desigualdade” para fora. Todo sistema repousa nessa “igualdade aproximativa”: o espaço do outro. É o que propõe Hobbes: a igualdade natural engendra o combate, este engendra o medo, o medo engendra o contrato, o contrato engendra o mundo do Leviathan: da igualdade inicial à equidade final, o equilíbrio precário e perigoso é substituído pelo equilíbrio mais estável e mais seguro.
Nesse modelo, a clivagem das grandes dicotomias, o penal e o civil, o público e o privado, o “mistério” da punição versus a “racionalidade” da indenização. De um lado, satisfazer uma ofensa, donde corrigir, emendar, dissuadir os imitadores, reeducar, purificar; de outro, a pecúnia, a mensuração, a razoabilidade: multa civil e multa penal, por que a distinção?
O mundo grego conhecia um duplo sistema de nomoi: a justiça intrafamiliar (Themis) e a justiça interfamiliar (Diké). O mundo de Themis era o mundo familiar, lugar privilegiado do terror ético cujo centro de referência é o círculo da família e nele, a figura do pai, com a forte presença de uma agregação natural marcada pela desigualdade, donde a punição maior a rejeição, o abandono, o banimento. As grandes infrações a Themis são marcadas pelo medo difuso – angústia -, pela violação dos laços de sangue, particularmente percebida no assassinato de um parente (parricídio, matricídio, fratricídio, infanticídio), na transgressão sexual (incesto, estupro, adultério), em que presentes as angústias edipianas. Em tudo, a marca do discrimen (no sentido de separar, separação) e a proibição de sua violação, em que o fulcro de uma infração está em tocar (com a mão) o que é proibido.
Justiça e vingança
E aqui aparece a vingança. O sangue derramado estimula a reação contra uma proximidade proibida. O assassino é desprezado, ninguém o acolhe, donde, até hoje, a aceitação desconfiada de direitos do preso. A vingança tem a ver, assim, com uma expectativa de destruição total, condenar o maldito a errar nas trevas do remorso.
Nas suas origens míticas, a vingança não é bem uma punição, cujo sentido ficou obscurecido pela proximidade com as punições executadas por ordem soberana. É uma reação a uma mancha intolerável que cobre todo o grupo. Donde a exaltação heroica do que mata em nome da sociedade, uma reação não necessariamente pública, como se vê pela morte em nome da honra (legítima defesa da honra).
Na vingança, o ofensor ocupa um papel secundário: o papel primário cabe ao ofendido. É o ofendido que, na estrutura da vingança, tem necessidade de uma reparação (como no duelo, por exemplo). Ou seja, o “beneficiário” da “compensação” é a vítima, não se tratando de uma relação de retribuição do tipo crime/castigo. Nessa estrutura, não importa, afinal, o que fez o ofensor, que pode ter agido até honradamente (legítima defesa). A carga da vingança repousa no ofendido.
Por isso o vingador evoca solidariedade. De se lembrar que mesmo a palavra vindex, que vem de vindicare (vingar e vindicar), palavra que, em latim, substituiu ultor, de origem desconhecida, que designava, primitivamente, aquele que que vem em proteção de um devedor e que restou na expressão insultus – in – sem – ultor- defensor, donde, insultar, podendo-se imaginar que o vindex tivesse algo a ver com a solidariedade familiar mais do que alguém que pune no sentido objetivo de impor uma pena. Esse é um dado que ficou também obscurecido no curso da história com o aparecimento do Estado e o monopólio da força, fazendo da vingança algo “inútil”. O que, curiosamente, mascara essa sensação de que o Estado pareça frágil ou inexistente, quando não cumpre o papel do ofendido na estrutura vingativa (donde, o linchamento ou as propostas de armar o cidadão…). Mas que desponta no asilo político, quando um Estado se põe a defender o banido contra os seus próprios.
Apesar da aproximação com condutas “naturalmente” violentas, a vingança não deixa de ser um fato da cultura, uma verdadeira instituição, com suas crenças, seus valores, seus ritos. Posto de lado o caso em que a vingança derrapa na direção do puro sadismo (vingança sem medidas), ela guarda, como instituição social, algum “regramento”, pois ela serve, como se diz, para “acertar as contas com alguém”.
Não há dúvida de que a ilimitação da vingança está presente em várias situações em que ela é exercida contra quem contesta a majestade do pai, da nação. Daí o treinamento diferente que se dá ao soldado, para a guerra, e para o policial, na contenda interna, e a punição do crime de traição à pátria, em que se clama por uma nulificação total do outro (pena de morte). A vingança “repercute”, tende a se amplificar a cada ato, como numa vertigem sem qualquer limitação ou medida.
Mesmo assim, na linguagem homérica, a vingança não deixa de ser uma APOTISIS, um pay back. E é por essa razão que a vingança se introduz nas estruturas da justiça, trazendo certa ambiguidade para os procedimentos vindicatórios e para as obrigações ex delicto. De se lembrar que o ladrão a mão armada poder ser morto pela vítima; o que mostra, na defesa legítima, a importância, de um lado, da estrutura da vingança, de outro, da possibilidade de calcular a gravidade da ameaça para justificar a reação (justiça). E as ambiguidades das dicotomias: o civil privado (venda, herança), o penal privado (os crimes comuns), o civil público (o terreno dos contratos administrativos), o penal público (os tribunais especiais, os privilégios de foro). De uma parte, mesmo modernamente, o ponto está na ideia de que a reparação contém sempre uma lesão de interesse não patrimonial (problema do dano moral). De outra parte, de se ver como, na evolução do capitalismo moderno, o dinheiro aparece como um equalizador neutro capaz de criar uma ficção necessária para substituir as incertezas da vingança privada.
De todo modo é preciso ressaltar que um esquema estático, de equilíbrio de pratos (Diké), não é inteiramente adequado à vingança (Themis). É sabido que em sociedades em que a vingança atua como um “pedir satisfação” não se trata de um restabelecimento do status quo ante, mas de um processo dinâmico, de criação de novas amarguras e exigência de novas vinganças. Na verdade, mesmo quando a vingança tende a uma espécie de “contabilidade”, isso não significa que as partes façam suas “contas” da mesma maneira (talis, talis, lei de talião). O que significa, afinal, que o esquema estático (da balança da justiça – Diké) mais pareça uma aspiração ideal de equilíbrio que se frustra na realidade dos fatos. Daí, de um lado (justiça), a ideia que decisões (jurídicas) não terminam conflitos, solucionando-os (solvendo, dissolvendo), mas pondo-lhes um fim (proibição de continuar: coisa julgada, prescrição, decadência); de outro (vingança), que mesmo obtendo uma decisão favorável, à parte sempre resta um sentimento de que poderia ter sido mais…
De um ângulo ético-cosmológico pode-se dizer, pois, que o esquema estático (Diké) leva à justiça em termos jurídicos (regras, controles, medidas), enquanto a vingança é expressão de um esquema dinâmico (Themis) sem medida e, pois, sem fim, donde os ressentimentos e as sublimações como soluções diabólicas.
De todo modo, o que está aqui presente é o tremendum, o sagrado como portador da perdição para aqueles que se aproximam: o mundo humano habitado por uma ameaça absoluta. Donde a estranha figura do acusador como aquele que participa da majestade do sagrado e na qual o conteúdo da acusação também é indesvendável.
O culpado é um maldito, que não se deve tocar. Daí a lapidação, forma de punição que evita o contato com o maldito. Mas também a necessidade de um terceiro para acusar (o promotor público) e punir (o carrasco).
Donde o juiz não ser nunca uma simples máquina de fazer silogismos (subsunção), posto que a personalidade do culpado nunca é encerrada em sua problemática singular de um sentido único (tipo): sempre há uma nebulosa de leituras possíveis, organizadas em torno de um sentido dominante. Do nascimento à morte, o homem reedita a maldição do maldito.
Fonte: Revista da OAB: Advocacia Hoje, (Junho de 2019), p. 63/67.