Liberdade de imprensa e escândalo

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

 

Os Jornais publicaram recentemente uma carta subscrita pela Petrobrás Distribuidora S/A, comparando o comportamento de O Estado de S. Paulo com outros órgãos de Imprensa. Nesta comparação, a empresa estatal propôs uma distinção entre o tratamento noticioso e o tratamento escandaloso dado às noticias, imputando a O Estado o modo escandaloso de veicular os fatos e os casos de corrupção no Interior dos organismos estatais.

A palavra escândalo tem uma conotação negativa que, evidentemente, transparece na carta da Petrobrás Distribuidora S/A. Tratamento escandaloso é uma pecha que se atribui ao Jornal. Uma imprensa escandalosa sempre tem, eticamente, uma imagem negativa, que chega mesmo a lembrar um pouco a mesquinharia. É como se ela se estivesse aproveitando da desgraça alheia ou alimentando, exageradamente, diversos aspectos negativos apenas com o Intuito de ampliar a tiragem, chamar a atenção, etc.

No entanto, apesar dessa conotação negativa, o escândalo também tem aspectos positivos, diretamente ligados ao papel da Imprensa livre nos Estados de Direito. John Milton, por exemplo, que além de grande poeta se destacou igualmente como escritor político e político militante, foi um dos mais ferrenhos defensores da liberdade da Imprensa. Ele acreditava que um dos pilares do Estado Liberal estava, justamente, na participação não conformista e aberta dos cidadãos no seu próprio governo, o que exigia homens livres, isentos de preconceitos e amantes da crítica construtiva e da verdade factual. Portanto, Milton admitia que os Estados deveriam constituir um poder soberano, mas aceitava o fato de que suas decisões poderiam ser injustas e que, em caso de injustiça, caberia ao cidadão um direito de resistência. Reconhecia, ainda, que esse direito de resistência à decisão injusta seria possível somente onde a liberdade de imprensa estivesse garantida.

A parte os idealismos que essa concepção possa conduzir, é preciso reconhecer que a imprensa livre tem uma importante tarefa a cumprir nos Estados democráticos. Seria mesmo um lugar-comum repetir, aqui, seu papel de guardiã da liberdade individual, de expressão relevante do direito de resistência, de transformar o jogo político num jogo às claras, onde se pode reconhecer o mundo em que se vive para, então, mais conscientemente, tomar uma posição perante ele.

A Verdade é que a história dos conflitos entre a imprensa e a política é antiga e complexa. No seu transcurso, os que perseguem e contam a verdade dos fatos sempre tiveram consciência dos riscos de sua atividade. Enquanto não inverteriam no curso do mundo, eram transformados em repórteres de banalidades, meros atores do espetáculo mundano, a serviço do lazer e das leituras amenas de fim de dia. No entanto, quando forçavam .seus concidadãos a leva-los a sério, procurando chamar-lhes atenção para os enganos e as desilusões, corriam até mesmo risco de vida. Não que a atividade jornalística, fosse, necessariamente, política. Mas sim pelo fato de que ela repercutia politicamente todas as vezes em que se tornava uma pedra no caminho dos agentes políticos.

Apesar disso, com o correr do tempo, a imprensa livre de há muito foi reconhecida pelo domínio político como uma das mais importantes instituições exteriores a luta pelo poder. Exterior porque sua importância não é diretamente política. De fato, a imprensa não é um poder político, embora possa transformar-se – como a ciência, por exemplo – em veículo do poder. O que, por extensão, significa sua própria perversão, uma vez que sua missão de descobrir, conservar e interpretar a verdade dos fatos humanos tem uma enorme relevância política. Como refúgio da verdade factual, a imprensa esta exposta à intervenção do domínio político direta ou camuflada, o qual nem sempre tolera a paixão do jornalista pela busca dos fatos. Busca essa que é a essência da sua atividade e que, muitas vezes, o faz dizer coisas desagradáveis ao político e ao homem público em geral.

Por tudo isso, a liberdade de Imprensa tem um papel decisivo na legitimação política. Para entendê-lo, no mundo de hoje, é preciso reconhecer que as sociedades

modernas são caracterizadas pela multiplicidade e especialização crescente de funções, bem como que essa complexidade gera uma enorme escassez de consenso. Há uma grande variação de expectativas, tanto em cada indivíduo quanto em cada grupo social, de tal forma que é inevitável que a realização de uma dessas expectativas provoque a desilusão das outras.

Num sentido amplo, o conflito das expectativas sociais é, pois, a regra, e não um desvio funcional da sociedade. Queira ou não, a sociedade tem de se haver com esse problema, procurando meios para regulá-lo. Transportado para a sociedade política, isso significa que a ausência real de consenso tem de ser levada em conta quando se pretende, como nas verdadeiras democracias, fundar no consenso a legitimidade do regime.

Nesse sentido, a opinião dos outros torna-se muito importante quando se quer reforçar uma decisão em detrimento de outra. Uma empresa que pede isenção de impostos, por exemplo, sempre poderá invocar, como justificativa, os interesses nacionais que seu ramo de atividade representa. Interesses nacionais não são nada mais do que a opinião dos outros. No entanto, ocorre que essa opinião não é, evidentemente, um dado de fato, pois os outros caracterizam-se por sua desatenção, na medida em que estão preocupados com diferentes problemas. Assim, se o consenso for entendido como um fato comprovável, certamente ele esgotará de forma demasiadamente rápida seu potencial de legitimação.

É aqui se inserem as instituições na vida política e social. As instituições, nesse caso, são antecipações bem sucedidas do que os outros pensam ou deveriam pensar. Essa é uma das noções técnicas do termo. No mundo de hoje, o contrato é uma instituição, como também o são o casamento monogâmico, o Judiciário e as eleições políticas. Quem contrate sabe que pode contar com o consenso dos outros a respeito das obrigações e direitos que decorrem de seu ato. Este consenso, porém, não é fático. Ele não resulta de pesquisas estatísticas de opinião pública. Portanto, as instituições não se baseiam na obtenção de fato de consenso, mas sim numa espécie de poupança do pouco consenso existente. Em outras palavras, as instituições geram um engajamento dos outros pelo silêncio.

A liberdade de imprensa também é uma das instituições da vida política e social. Mas, como a eleição, ela é uma instituição especial. De um lado, porque permite falar em nome dos outros. É uma antecipação bem sucedida das expectativas deles que a fundamenta. De outro, entretanto, porque a instituição da imprensa evita que o consenso venha a se transformar numa espécie de conformismo uniforme. Embora os outros em princípio estejam desatentos, sua atenção pode ser conquistada. Daí uma certa proximidade entre o consenso e o escândalo, o consenso e a publicidade. Chamar a atenção dos outros faz parte do jogo do consenso (o que evita, por exemplo, que o consenso seja manipulado).

Assim, a liberdade de imprensa é uma forma de produção e de controle do consenso. Ela é fonte de legitimação da vida política e social porque permite aos outros, reconhecidamente, a manifestação de seu desacordo. Não a manifestação de fato, o que seria uma utopia, mas a sua presença simbólica no controle dos acontecimentos, de suas interpretações e dos conflitos. É por isso que a imprensa está ligada ao escandaloso, ao inusitado, ao que foge ou sai das medidas. Sem ela, a sociedade corre o risco – previsto por Milton – de afundar-se num conformismo ilusório, com sérios prejuízos para a legitimidade de sua vida política.

Não há, pois, como distinguir rigorosamente entre o noticioso e o escandaloso. Essa distinção pressupõe um conformismo que é a própria negação da liberdade de imprensa. Sem o escândalo e a publicidade, o consenso não passaria de um insuportável marasmo social.

Fonte: Jornal O Estado de São Paulo, 16.12.77.