Tercio Sampaio Ferraz Jr
Como num passe de mágica, bastou uma áspera troca de notas diplomáticas entre os Estados Unidos e o Brasil, para que a tortura, a censura à imprensa e as prisões arbitrárias se transformassem em objeto de indignação cautelosa. E, num pequeno espaço de tempo, houve quem proclamasse irrestrito apoio à atitude brasileira. Houve, também, quem ponderasse sobre o caráter supranacional dos Direitos Humanos. E, ainda, não faltaram os que dividiram o problema: de um lado, a questão da soberania nacional e, de outro, a obrigação auto imposta pelo próprio País de respeito aos direitos e liberdades individuais, zelosamente proclamados pela Constituição.
Esta crise, no entanto, não começou na semana passada. Já há algum tempo o presidente Cárter, em conformidade com sua campanha eleitoral, vinha manifestando sua vontade inconteste de transformar o respeito efetivo aos Direitos Humanos numa condição para o apoio norte-americano aos governos de oitenta países. A esse propósito, lembro-me particularmente de duas questões propostas a seis professores de Harvard num seminário sobre os Estados Unidos como modelo político, econômico e social para o mundo (e que o JT publicou em seu caderno especial sobre o bicentenário da independência daquela nação).
A primeira dizia respeito ao Ato dos Poderes Bélicos, o qual permitia aos Estados Unidos intervir ou não no exterior. Discutindo os limites dessa intervenção, um dos participantes lembrava que, nos anos 50, havia uma atitude autoconfiante de que, se os Estados Unidos derramassem dinheiro pelo mundo, haveria como consequência natural progresso e desenvolvimento. A experiência, contudo, teria mostrado que realizar mudanças em muitas sociedades era um problema "difícil e delicado", envolvendo reformas sociais e políticas que não se processavam assim tão rapidamente. Ora, a questão crucial que daí emergia era saber em que sentido e medida dos interesses nacionais daquele país exigiam de outras nações a aceitação dos valores políticos americanos.
O tema, assim proposto, causou um certo alvoroço e o prof. Karl Deutsch não teve dúvidas em afirmar que, sem margem de erro, o grau de liberdade em outros países não era primariamente uma responsabilidade americana. E, como não se podia obrigar a União Soviética — onde a liberdade estaria num estado lamentável — a ser mais liberal com seus cidadãos, não ficariam claros os motivos pelos quais se deveria tentar impor a outros princípios liberais e políticos. Samuel Huntlngton o contestou, lembrando que o Congresso americano se tornara extrema e ativamente interessado nos Direitos Humanos em outras sociedades, aprovando leis que tornavam a assistência militar e econômica a países como a Coreia e Chile dependentes da demonstração de que as garantias individuais não estivessem sendo violadas. Ao que os demais participantes logo acrescentaram que os Estados Unidos, independentemente do que deveriam fazer em casos concretos, tinham, hoje, à frente de sua lista de preocupações, os Direitos Humanos.
A questão conduziu à ideal de que os Estados Unidos demonstravam um grande interesse na evolução do resto do mundo, por ser esta uma tendência natural numa sociedade politicamente aberta, como a americana. Embora o problema concreto de como, onde e quando os Estados Unidos deveriam usar marginalmente sua influência para fazer avançar este interesse fosse muito "complicado e difícil", não restava dúvida de que o povo americano sabia almejar uma evolução natural e pacífica do mundo.
No momento, estamos diante de um caso concreto, "complicado e difícil", para usar as palavras dos seis especialistas de Harvard. De um modo geral, o tipo de reação do Brasil, nos induz a pensar que a posição decidida do governo Cárter pode levá-lo, a médio prazo, a um relacionamento bastante tenso com boa parte dos países em desenvolvimento. E, na medida em que a tendência dessas nações não tem sido a de uma sociedade aberta, descentralizada e liberal, os Estados Unidos correriam o crescente risco de se transformar numa ilha.
Este dilema americano acompanha sua política exterior há muito tempo. Numa época anterior, quando ainda prevalecia a defesa dos direitos de propriedade, os Estados Unidos não tiveram receio de defender seus interesses de modo enérgico. A atual política de Carter, entretanto, sem pôr fim a esta ordem de preocupação, enfatiza agora a defesa dos Direitos Humanos na lista de sua pauta de ação. Não que ela estivesse antes ausente. Mas sempre houve, com relação ao tema, um certo pudor que levava o país a aceitar um pacto às vezes cínico, pelo qual a simples forma da lei, em muitas nações, era indício suficiente da posição real dos respectivos governos em face da situação politica vigente e efetiva
Cárter, ao contrário, parece estar decidido a romper com os pactos dessa espécie, que contornavam o problema sem resolvê-lo, criando condições de convivência internacional entre comunidades ideologicamente divergentes. E, ao fazê-lo, começa a dar, no plano Interno norte-americano, um pouco mais de força a organizações como a União das Liberdades Civis, do que a grupos como a International Telephone & Telegraph Company.
Mas essa decisão encontra um sério problema de legitimação internacional. Não há a menor dúvida de que os Direitos Humanos constituem um critério suficientemente forte para conquistar a adesão imediata e o consenso difuso de tantos quantos sintam o chamamento histórico para o aperfeiçoamento do homem e de suas instituições. Sua proclamação constitucional, desde o século XVIII, não cessou jamais de tecer uma rede de princípios, capazes de fundamentar de modo inconteste a luta pelo Direito e pela Justiça. Até o ponto de se instaurar, como infame e retrógrado, o regime político que ousasse olvidá-los ou restringi-los maliciosamente.
Por outro lado, no entanto, esta mesma força repousava concretamente sobre a generalidade da formulação de tais princípios, capazes de albergar tanto a pureza das intenções como o pragmatismo cínico e formalista. A realidade dos Estados contemporâneos, como salvaguardas do Direito, impôs aos Direitos Humanos a necessidade de sua garantia através de instrumentos formais constantes das diversas constituições. Deste modo, porém, se os Direitos Humanos eram capazes de julgar a justiça dos atos estatais, o princípio das garantias tornou-se uma faca de dois gumes: a aceitação das liberdades individuais não podia nem de leve ser posta em dúvida, no plano político, mas sua garantia somente tinha sentido no plano concreto da ação. Com isso, apareceu em todo o mundo esta espécie de pacto cínico, em que todos são responsáveis idealmente pelo respeito aos Direitos Humanos, mas ninguém é juiz da efetividade de sua garantia.
Este pacto é cínico e amoral. A própria ONU, como disse recentemente o articulista Eurico Penteado, dele participa, não sabendo fazer vistas grossas para imoralidades patentes. Acontece, porém, que as relações internacionais ainda se dão, basicamente, entre Estados dotados de soberania. E este pacto, por mais cínico e amoral que seja, atua como princípio regulador da convivência entre eles. Num mundo impuro, ele é uma espécie de regra que impede a todos de atirar a primeira pedra. E o dilema de Cárter, neste momento, é atirá-la legitimamente.
Por Isso, é possível perguntar se a atitude do presidente norte-americano revelaria indícios de uma mudança em suas regras de convivência. Nesse sentido, não há dúvida de que ela rompe com o pragmatismo de Kissinger. No entanto, também é possível ponderar se este é o caminho mais viável para um mundo incongruente, rico, faminto, idealista e carente de Justiça.
Fonte: Sexta-feira, 11-3-77 — O ESTADO DE S. PAULO.