Os direitos humanas também são relativos?

Tercio Sampaio Ferraz Jr

 

A recente entrevista que o general Ernesto Geisel concedeu à televisão alemã suscita, no homem preocupado com a vida política e com seus fundamentos, algumas indagações básicas. a co­meçar, por exemplo, pela afirmação presiden­cial, de que nenhum país do mundo respeita cem por cento os direitos humanos. Também me­rece uma reflexão mais detida a declaração de que nem todos têm de direitos humanos um conceito suficientemente amplo, nem conhecemos normas que os regulam na Carta da ONU.

Neste momento, o que importa não é o signifi­cado imediato destas frases para a atual situação política brasileira, mas o seu sentido para uma perspectiva futura deste país em desenvolvi­mento. Muito já ouvimos, afinal, sobre a democracia relativa. Portanto, agora se reitera algo já insi­nuado anteriormente, sobre uma espécie de direi­tos humanos relativos. Não relativos em função das declarações universais, como a dá ONU, que bem ou mal é reproduzida pela maioria das constitui­ções modernas, mas em razão do seu controle e do modo como é interpretada. Assim, a afirmação do presidente Geisel levanta a lebre da ineficácia de um controle pleno e a diversidade de entendi­mento quanto ao conteúdo dos princípios fundamentais.

Sobre esses pontos, talvez seja bom lembrar o seguinte: Direitos do Homem, na forma de um elenco sistemático de princípios, são um produto recente em nossa cultura. A partir do Renasci­mento, o ser humano passou a ser concebido como um indivíduo em oposição à própria sociedade. Essa deixou de ser considerada como seu lugar natural, para ser um ambiente hostil, donde o aparecimento do Estado como um guardião e, simulta­neamente, como uma ameaça para o indivíduo.

Foi nesse contexto, justamente, que surgiram as declarações de direitos do século XVIII. Tais declarações apareceram como resposta à necessidade de se estabelecer normas abstratas, fundadas "na natureza racional do homem, e que, no plano político-social, deveriam garantir a luta do individuo pelo seu "sucesso" (o que, concretamente, significou a possibilidade de realização do burguês (bem-sucedido). Seu princípio básico era a consideração do homem como ser livre, e o elenco dos direitos, reconhecidos pelo Estado na forma constitucional, representava uma defesa do indivíduo contra o próprio Estado.

Não resta dúvida de que, a partir do século XIX, essa situação se modificou bastante. Pouco a pouco entramos na era do direito positivo, enten­dido como aquele que vale em virtude de uma decisão do legislador e somente por outra decisão pode ser revogado. Nesse quadro, transformou-se profundamente o sentido dos direitos do homem, que, de certo modo, perderam seu caráter de di­reito eminente, fundado em verdades universais ditadas pela razão.

No mundo de hoje, em que predomina o direito positivo, existe um conflito permanente entre os valores sociais, o que dificulta o estabelecimento de um valor máximo e de uma hierarquia. A socie­dade, positivando seu direito, teve de renunciar a uma ordem invariável, extrapositiva, como a dos direitos humanos ditados pela razão. Mas teve, igualmente, de compensar esta renúncia. Isso foi conseguido pela instauração de um elenco de direi­tos que garantisse certa estabilidade à vida polí­tica e jurídica.

A proliferação das declarações de direitos, todavia, revelou um problema que as sociedades não tinham vivido antes do século XIX. Tornando-se as sociedades ocidentais sistemas cada vez mais complexos, com uma enorme profusão de atividades, setores, grupos e classes, percebeu-se que uma simples declaração de direitos, abstrata e gené­rica, não dava conta dos conflitos emergentes. Daí surgiu a ideia de que toda declaração de direitos era inseparável de suas garantias constitucionais. Tal ideia, entretanto, era uma faca de dois gumes: de um lado, as garantias passaram a ser limitações, ou seja, vedações impostas pelo constituinte ao poder público; de outro, porém, elas só tinham condições de atuar através do próprio poder público.

Essa situação gerou uma enorme incerteza ao menos sobre a eficácia das declarações de direitos do homem. Afinal, ainda que um país constitucio­nalmente organizado os reconheça, é porssível fazer esta indagação: quem deve ser, primeiramente, o intérprete fiel do seu conteúdo? Em segundo lugar, como policiar sua observância?

É evidente que a afirmação de que a interpre­tação desse conteúdo depende pura e simples­mente de cada país e daqueles que ali detém o poder faz, dos direitos do homem, meras peças oratórias. Isso ficou claro, por exemplo, com o advento dos totalitarismos, em nosso século. Os direitos do homem, nesse sentido, transformam-se em instrumentos de fachada, que funcionam ape­nas para neutralizar as inquietações políticas internas e externas. Mesmo porque os direitos huma­nos continuam sendo um critério suficientemente forte para conquistar a adesão imediata e o con­senso difuso de tantos quantos sintam o chama­mento histórico para o aperfeiçoamento do homem e de suas instituições. Tal situação, no en­tanto, deixa o homem à mercê do Estado, essa poderosa abstração de nossa civilização que, com suas organizações burocráticas, é capaz de reduzi-lo a um simples número numa cédula de identi­dade.

Por isso, muitos países modernos procuram criar condições de equilíbrio interno, reforçando a divisão dos poderes e atribuindo a um Judiciário forte e independente a função máxima de determinar o conteúdo dos direitos do homem. Além disso, procuram evitar a ineficácia do chamado controle difuso da observância dos direitos, como a que é feita pelos tribunais singulares, exigindo um tribu­nal supremo como o seu máximo guardião, com a função específica de verificar sua atuação con­creta, atribuindo ao cidadão, às sociedades de clas­se e às instituições de reconhecimento público, a possibilidade de suscitar ações junto àquele tipo de tribunal.

É claro que nenhuma dessas soluções é capaz de resolver todos os problemas referentes aos direi­tos humanos. E isso porque a questão, no fundo, é mais política do que jurídica. Por isso, não basta estabelecer-lhes o elenco e as respectivas garan­tias. Acima de tudo, é preciso reconhecê-los como instituição. Os direitos do homem não se tornam eficazes porque o Estado se tornou plenamente vigilante, mas porque foram incorporados pela consciência política do cidadão como pontos into­cáveis. Portanto, o problema, na realidade, não é saber qual o verdadeiro conteúdo de uma regra que diga, por exemplo, que a liberdade de pensamento é reconhecida, mas, isto sim, que qualquer ação que fira (ainda que de leve) essa regra possa suscitar, sobretudo da autoridade, um imediato ato de protesto. E, para que isso ocorra, é necessária uma aprendizagem contínua, uma incorporação e um pleno respeito dos princípios sem que se venha a admiti-los cinicamente ou a admiti-los apenas formalmente, justificando suas violações em nome de relativismos ou em nome de valores que sobreponham o Estado ao homem.

Por tudo isso, a reiteração do discurso do presidente da República, insinuando relativismo dos direitos humanos, antes de tudo parece um contrassenso num país que ainda procura o desen­volvimento de suas instituições e para o qual, por longa tradição, a figura de chefe da Nação tem um ar de pai e, ao mesmo tempo, de educador. Ela não reforça a instituição, mas se transforma, perigosamente, numa justificativa de futuras violações.

Fonte: Terça-feira, 28-3-78 – O ESTADO DE S. PAULO.