Tercio Sampaio Ferraz Jr.
Quando, há cerca de 10 anos, atravessei a fronteira iugoslava em direção à Grécia, o funcionário de serviço tomou meu passaporte e os de mais dois argentinos que estavam comigo no carro, para o devido controle. Devolveu os deles e reteve o meu. Olhou pensativamente para a capa e murmurou: "Brasil... Santos?" Entendi que ele queria saber de que parte e respondi-lhe: de São Paulo. O homem continuou parado e não sem um certo esforço pronunciou sorridente: "Pelé? Santos?" Foi o suficiente para que um mínimo de comunicação se estabelecesse entre o servo-croata que ele falava e o inglês que eu usava para fazer-me entender.
É desnecessário mencionar o que representa hoje Pelé para o Brasil, dentro e fora do pais. Por isso mesmo, não há palavra, gesto ou apelo seu que não ganhe enorme repercussão. E não foi outro o destino de suas declarações na entrevista que manteve com o Ministro da Justiça, quando teria dito que no Brasil "ainda se vota por amizade, não se escolhe o candidato por seus méritos", entendendo por isso que "o povo brasileiro não pode exigir dos seus dirigentes se ele "não soube escolher".
A frase, que pode merecer diferentes interpretações, foi vista por alguns como um juízo desfavorável ao povo, uma ingratidão sem tamanho do herói para com aqueles que sempre o glorificaram. Não vamos discutir Pelé. Mas parece-nos importante tecer alguns comentários a respeito do papel do voto nas democracias de hoje.
A tradição liberal do século XIX sempre viu na eleição política um instrumento básico da legitimidade dos Governos. Até hoje quase todas as Constituições modernas a incluem no seu programa político e a ONU fez dela um ponto inquestionável de sua carta de princípios. Ela é vista, assim, como uma das expressões máximas do consenso, o qual é interpretado como garantia de participação do povo no seu próprio Governo e o símbolo primeiro de sua legitimidade.
Esta tese, porém, tem sido muitas vezes hostilizada, pois ela parece pressupor da parte do eleitor uma conscientização política de que ele nem sempre é capaz, o que vicia a representatividade e deturpa a legitimidade. Segue-se dai, que passamos a exigir do voto a capacidade de ajustar-se às decisões governamentais, restringindo-o, quando falta aos eleitores um mínimo de politização. Pois um povo não educado politicamente acaba por atrapalhar os esforços da nação para governar-se conforme as exigências do seu próprio bem-estar.
Parece-nos, porém, que esta critica desentende o papel do voto na atualidade. Em princípio, é preciso reconhecer que entre um processo eleitoral e os conflitos que ele procura resolver não há nem pode haver uma isomorfia. Ao contrário, há uma disparidade, pois a eleição é um processo que enfrenta num só ato — votar — uma complexidade enorme de problemas que, apesar disso, ela precisa ou pretende controlar. É impossível supor que quem vota esteja atento a todos os problemas administrativos e legislativos que irá enfrentar o candidato. É inevitável que, mesmo em países altamente desenvolvidos, o eleitor perceba apenas ínfimas parcelas dos problemas decisórios que seu ato vai legitimar. Apesar disso, uma eleição não é uma farsa, um oba-oba nacional de sustentação política, mas um efetivo mecanismo de legitimação do Governo. Como explicar isso?
O recrutamento para postos dirigentes através de eleições, tais como as conhecemos hoje, é um dado relativamente recente na História do Ocidente. Ele apareceu com a sociedade de classes, onde, em tese, a determinação de quem devia ser o governante não podia ser feita mais pela posição que ele ocupava na escala social pelo seu nascimento. A partir dai, os Estados empenharam-se em institucionalizar o papel do eleitor, diferenciando-o de outros através de princípios como o da universalização, da igualdade do voto e do voto secreto. Pouco a pouco, o eleitor passou a ser uma figura própria, que não se confundia com o nobre, ou com o homem de negócios, ou com o trabalhador. Um papel ao qual, de certo modo, todos tinham acesso, equivalente ao papel de candidato a dirigente.
A eleição, desta maneira, permitiu que os conflitos sociais tomassem um caráter político próprio, possibilitando a politica como uma esfera de interesses independentes e autônoma, ou seja, criando condições para a discussão política de problemas econômicos e sociais. Com isto, regulava-se a influência das estruturas religiosas, financeira, de parentesco no sistema político, conciliando-se, inclusive, a necessidade da eleição como instrumento de legitimidade com a necessidade de decisões técnicas ao nível da administração burocrática.
Neste sentido, é uma ilusão exigir-se do eleitor uma alta politização. Isto porque ele exerce um papel redutor de complexidades (ele é, ao mesmo tempo, o pagador de impostos, o trabalhador, o pai de família, o funcionário, etc), sem que seu ato político tenha uma consequência direta na vida cotidiana. Por isso, inclusive, ele não é responsável pelo seu ato, mas apenas pela sua omissão simbólica. Isto é, não há como culpar o eleitor pela sua escolha, mas apenas pela não escolha.
Mesmo porque, a ação eleitoral não é planejada (ela não tem dimensão futura), mas é guiada pela história do sistema: na medida em que o eleitor não pode saber como agirá concretamente o eleito, ele se orienta pelo que já foi feito antes, num sentido global. A eleição, assim compreendida, se torna um mecanismo através do qual o sistema político se sanciona a si próprio, confirmando ou rejeitando sem especificações as decisões político-administrativas do passado. Mas como este passado não determina a ação do futuro, em cada eleição o eleitor permanece sempre influenciável.
Este quadro, bastante atual, permite dizer que o voto, embora não possa responder sozinho pela legitimidade do sistema, cria bases importantíssimas para a sua legitimação. A eleição, mesmo com estas limitações, oferece uma oportunidade insubstituível para a manifestação de insatisfações com risco relativamente pequeno para a estrutura do sistema.
De fato, ela é um mecanismo vital de absorção de protestos, com a vantagem de que mesmo o escolhido por protesto não precisa ser efetivamente eleito nem, caso seja eleito, precisa alterar totalmente as decisões da máquina política.
Em suma, a eleição política é um mecanismo de alta complexidade, mas com baixo grau de racionalidade. No fundo exige um engajamento relativamente fraco dos seus participantes, embora ofereça mais possibilidades de generalização dos temas políticos, permitindo até a discussão de problemas mesmo quando já decididos. O eleitor decide quais decisões do Legislativo e do Executivo ele deseja sancionar. E embora esta forma de decidir seja genérica e abstrata, ele é fundamental para que o sistema político, tendo de fazer frente a imensas complexidades, concilie decisões altamente especializadas num esquema geral de variações suportáveis.
Não se peça, peça, pois, ao voto o que ele não precisa dar, sob pena de desfigurarmos a sua importância. Sem ele uma democracia é impossível. Para a realização desta, contudo, não é necessário um consenso total com politização global da sociedade: bastam mecanismos que garantam a possibilidade de manifestação do dissenso.
Fonte: Jornal do Brasil, 1977.