Tercio Sampaio Ferraz Jr
Para quem acompanha o debate político nacional, as coisas que se dizem, os princípios que se defendem, as promessas que se fazem dão a nítida impressão de um certo marasmo. Com o Congresso em recesso, as atenções voltaram-se para o processo eleitoral, como se o país estivesse realmente se preparando para uma grande eleição, com arregimentação de forças políticas, mobilização da opinião pública etc. Sucede, no entanto, que não se trata bem disso, pois um processo eleitoral pressupõe, acima de tudo, a presença da dúvida, da equação de muitas possibilidades ligadas à participação do eleitor que se sente, então, motivado ao debate. E o problema, sabemos, é bem outro. Temos uma candidatura definida e o que acontece em alguns Estados não passa de um jogo muito restrito, ao qual temos o privilégio de assistir.
Nestas condições, os grandes temas políticos ficam resumidos a declarações vazias ou pelo menos muito difusas. Não se tomam decisões. Nada, de fato, acontece. O pequeno debate provocado pela candidatura Magalhães Pinto parece encaminhar-se para um final melancólico, totalmente esvaziado de sentido. Ficam todos aguardando o que poderá suceder, com os políticos ensaiando técnicas de não dizer nada e os analistas jogando com intuições sem muita perspectiva.
Apesar disso é bom recordar que este limiar de uma eleição não deixa de propor o grande tema nacional que é o da manutenção ou da alteração de uma estrutura política que nos acompanha desde 64. Não nos referimos ao jogo dos grupos que estão no Poder, mas ao próprio sentido tomado pelo processo político que, há quase 14 anos, tende a um fortalecimento crescente das esferas executivas nos sistemas de decisão. Isto ocorre tanto pela centralização progressiva das competências da União em detrimenio das competências estaduais, como pela maior atenção que se dá a açao dos executivos (federal, estaduais e municipais) em relação ao papel desempenhado pelos Legislativos e Judiciários. E que este tema é de fundamental importância não se pode negar. Tanto que, do pouco que se diz, uma das questões em evidência é a referente ao AI-5 e seus eventuais substitutos, onde a tônica continua sendo a proclamada exigência de um instrumento (centralizador) de eficácia na defesa do Estado, que permita a mobilização de mecanismos de intervenção nos diversos domínios da vida nacional, mas cuja responsabilidade continua convergindo para o endereço do Executivo ou, pelo menos, para grupos sob sua área de influência. O tema merece, contudo, uma consideração mais ampla.
Um dos focos de crise mais agudos das modernas sociedades está, justamente, em enfrentar a enorme complexidade dos problemas sociais. Tal complexidade, em qualquer decisão dos poderes públicos, luta contra condicionamentos políticos, econômicos e culturais, onde a elaboração de um orçamento ou a proposta de uma reforma do Judiciário exige informações complexas, que nenhum indivíduo, grupo ou instituição pode fornecer sozinho. Há um desafio ao homem moderno, uma vez que essa mesma complexidade é responsável por um panorama de desencontros, insegurança e incerteza.
Desta forma, para que o Estado realize sua atividade administrativa com um mínimo de racionalidade, seu Executivo tem de programar suas decisões conforme critérios finalísticos em prol dos quais ele trabalha. Neste sentido, nenhum Executivo se furta à necessidade de indicar previamente os fins que se propõe a atingir, conforme os meios de que disponha. No entanto, suas decisões como, por exemplo, a de se construir um metro, estão ligadas a esses fins. Ou seja, aos benefícios sociais que delas resultarão.
A força destas decisões repousa, justamente, na possibilidade de se obter consenso e cooperação concretos entre os endereçados a respeito desses fins. Isso significa que, embora o Executivo não seja necessariamente o centro da vida política, nas suas decisões ele se identifica com os fins propostos pela sua atividade administrativa, sendo, consequentemente, julgado pelos resultados obtidos. Assim, para que um Executivo funcione de modo altamente produtivo, é importante que ele obtenha consenso político suficiente, tanto para programar quanto para enfrentar possíveis desilusões.
Este apoio político, contudo, não deve ser conseguido pelo próprio Executivo, uma vez que ao longo do tempo isto pode significar para ele uma sobrecarga insuportável. Não que, na sua atividade administrativa, ele tenha de desenvolver uma espécie de neutralidade tecnológica. Mas sim no sentido de que sua atuação deve saber-se dependente de um apoio político que ele não deve tornar sua função específica.
A democratização da ordem política é, deste modo, um dos caminhos mais eficientes que se conhece para assegurar o bom desempenho da atividade administrativa, com alta legitimidade e baixos custos sociais. Sua estrutura, mestra exige não uma separação, mas uma clara diferenciação e especificação das funções executivas, políticas e Judiciárias. Quando esta especificação das funções públicas ocorre efetivamente, a carga legitimadora da atividade estatal fica convenientemente distribuída.
O Legislativo, por exemplo, pela própria estrutura do seus processos de decisão dos conflitos sociais, é mais apto para enfrentar questões de alta complexidade política, permitindo um tratamento aberto de problemas, sem a possibilidade de se acolher a diversidade de opiniões, sem que isto represente nm entrave para suas decisões.
Assim, uma eleição é um mecanismo de descarga de insatisfações que se tornam canalizadas e controláveis, de um modo politicamente suportável. Com ela, garante-se a legitimidade da ação legislativa que representa outra válvula importante no processo de captação do consenso político, capaz de valorizar e incorporar o papel do dissenso, através de disputas, debates parlamentares, votações majoritárias etc. Já o Judiciário, por sua vez, tem a função específica de manter uma válvula de escape para satisfações ao nível mais concreto das decepções grupais e individuais. Afinal, ali todos sabem que, por uma decisão judicial, ou mais ou menos, alguém perde e alguém ganha.
Mas esse tipo de opção e de necessidade específica de legitimação e que o Executivo deve, justamente, evitar, para seu melhor funcionamento, ele não deve enfrentar alternativas do tipo perda/ganho, como faz o Judiciário, nem ao tipo consenso/dissenso, como acontece no Legislativo, pois sua atividade pressupõe que todos estejam ganhando e que haja consenso suficiente para seu desempenho. Portanto, quando o Executivo aciona um instrumento como o AI-5, no fundo ele está esforçando-se para legitimar seu ato em razão de uma perda e de um ganho, enfrentando problemas-de eventual controle de dissenso político, sem instrumentos legitimadores (não legais) apropriados, com consequentes sobrecargas pira sua atuação e custos sociais a longo prazo.
Nesse sentido, nos países em desenvolvimento ou mesmo subdesenvolvidos, um dos problemas mais sérios consiste na sua pequena diferenciação funcional. Nestes, os cargos administrativos tendem a ser vistos como políticos, as instituições judiciárias são relativamente politizadas e o legislador acaba assumindo funções administrativas, isto é o que provoca a sobrecarga legitimadora.
Por isso, quando o Executivo se vale dos decretos que lhe permitem agir imediatamente, ele pode estar respondendo a certas diferenças de tempo — pela sua própria natureza, tanto o Legislativo como o Judiciário são mais lentos em suas funções — em face das necessidades de providências rápidas e abrangentes.
No entanto, a insistência nessa prática pode conduzir a sociedade política a desvios funcionais, obrigando o Executivo a munir-se de instrumentos estabilizadores substitutivos, como instituição da censura, a prisão ilegal ou a intervenção extrajudicial. Ou sejam, fórmulas compensatórias que vão do abuso de direito ao exercício puro e simples da violência, com todos os custos sociais que isto representa para a comunidade, como atestam os totalitarismos de todos os tempos.
Fonte: JORNAL DO BRASIL – 20-2-78.