Tercio Sampaio Ferraz Júnior
Na conhecida fábula o lobo e o cordeiro, o frágil animal tenta por todos os meios esquivar-se de uma condenação terrível - ser devorado -, consequência de uma responsabilidade a ele imputada: ter sujado a água de que o lobo bebera. E por mais razões que ofereça, prevalece, ao final, a vontade deste, que, contrariado com a força dos argumentos do cordeiro (estar a jusante da posição do lobo, não ter idade para ter sujado a água no ano anterior), acaba por generalizar a imputação (se não foi você, foi seu irmão, ou seu pai ou seu avô!).
O lobo invoca, em seu favor, uma regra por ele ad hoc (a água que eu bebo deve chegar imaculada, pois eu tenho essa preferência). O cordeiro não discute a regra. Apenas tenta eximir-se da responsabilidade pela violação. No fundo, a regra aparece como algo "natural", pois se presume que, no mundo da natureza, a preferência do lobo (como animal mais forte?) é inquestionável. Desta regra parece decorrer a responsabilidade do cordeiro. De resto, com base nela, o cordeiro argumenta, mas sem sucesso.
O fabulista e, com ele, o leitor persuadido, é um terceiro observador que, em nome da razão, é chamado a julgar a cena e o ato do lobo, mas, de algum modo, sem transcender o pressuposto do julgamento: o dado da natureza (relação forte/fraco: a superioridade) e a regra da "preferência" dos mais fortes sobre os mais fracos, assumida como uma espécie de inexorabilidade decorrente. Esta inexorabilidade, contudo, se não justifica o lobo (o leitor é convidado a meditar sobre o "fundamento" da regra e o seu sentido de poder como força e superioridade), é um ponto de partida, subsumido como desencadeador da ação. Isto é, o fabulista convida o leitor a constatar a superioridade da força, de certo modo a aceitar a regra dela extraída e a reprovar a incoerência da argumentação do lobo na aplicação da regra. Há, na fábula, uma condenação moral da arbitrariedade da decisão (devorar o cordeiro). Quanto à regra da preferência, o fabulista tem uma posição dúbia, entre a sua aceitação como um dado e uma leve suspeita sobre a sua moralidade.
O contraste entre razão e responsabilidade, tanto em relação com a regra da natureza quanto em face da argumentação do cordeiro, é colocado, na fábula, em termos de potência e impotência, a impotência da razão perante a potência da força e do desejo. A regra da natureza (a preferência do mais forte) parece conhecer uma explicação (assim é a natureza: o mais forte domina o mais fraco). Ou seja, do dado da natureza (relação forte/fraco) esclarece a regra dela decorrente (a regra da preferência). Esclarece, mas não justifica. A passagem do dado para a regra aponta, na fábula, para um quid de imponderabilidade: não há como fundamentá-la moralmente. Na passagem do dado da superioridade para a regra da preferência percebe-se um salto que põe à mostra também uma certa arbitrariedade. Esta arbitrariedade é possível de ser constatada. Mas aceitá-la, eticamente, é algo que incomoda.
O enigma desta arbitrariedade perpassa toda a investigação deste livro de Ari Solon. Para esclarecê-la, começa ele com o papel da magia na fundamentação da responsabilidade. A magia fornece um contraste gritante: a base da obrigação, no antigo Direito Romano, teria raízes na percepção da pureza e da impureza, donde o "responder" pelas consequências como uma espécie de libação, conjunto de atos capazes de purificar o infrator. Daí as observações de Hägerström, invocadas pelo autor, de que o jus romano, que se encontraria acima do povo, significaria a capacidade de criar o direito com força vinculante, mas também de impor limites a esse poder, limites esses impostos pelos deuses. Há o jus, criado pelos romanos, mas sujeito à lei divina, o faz, revelado pelos auspícios. Por consequência, o vinculam presente numa obrigação, não teria um fundamento na subjetividade (vontade do obrigado) mas num certo poder (místico), objetivo, do credor sobre o devedor.
Na passagem para a era moderna, a vontade subjetiva, guiada pela razão, começa a fundar a força obrigatória da lei. O direito posto só obriga se está de acordo com a lei racional objetiva. Mas a era moderna também é responsável pela dicotomia entre conhecer e justificar, pela percepção de que a racionalidade do conhecer não equivale à racionalidade do justificar. Com isto ocorre um hiato entre verdade e moral, aos poucos aprofundado e radicalizado, até o advento dos positivismos do século XIX. Este hiato devolve o problema da magia aos fundamentos da obrigação: a constatação dos fatos explica (externamente), mas não justifica (internamente) a obrigação. Se esta justificação ainda tivesse que mostrar algum fundamento de racionalidade, onde encontrá-lo? Dizer que o direito serve à moral não parece garantia suficiente para a racionalidade dos vínculos. Afinal, se a moralidade não se funda na verdade (verificabilidade das proposições morais), mas em valores, com sua imensa carga emotiva, o que sobra para a racionalidade (frágil) do vínculo obrigacional é uma espécie de "dever de coerência" (por exemplo, como aparece no imperativo kantiano).
A busca de uma saída mais sustentável para o dilema, no empirismo lógico de nossos dias, parece, porém, que só aprofunda a dicotomia. Verdadeiro/falso são predicados que apenas se aplicam a enunciados empíricos e analíticos. Só estes são significativos. Os demais enunciados somente imitam a forma gramatical daqueles. Não têm significado, isto é, a eles não se aplica a verdade. São enunciados metafísicos, expressão de uma atitude emotiva perante a vida.
Com isto a questão se transfere para as várias possibilidades de a linguagem, que expressa tanto enunciados verificáveis como enunciados emotivos, aceitar outras formas significativas, capazes de se submeter também a alguma forma de análise. E, tipicamente, o caso de enunciados que expressam um dever.
A teoria da norma fundamental é uma tentativa de resposta a esse problema. A partir dela, Kelsen esboça uma analítica indireta das séries normativas, obtida por proposições jurídicas, capazes de descrever proposições normativas. Mas o hiato entre ambas permanece. E, mais problemático, a natureza da norma fundamental não parece conhecer um fundamento plausível.
O livro de Ari Solon, que busca, por todos os caminhos investigativos, as saídas para o problema, termina com uma angustiosa indagação: "Tivemos êxito na viagem?". A viagem é uma bela metáfora, que ilumina, afinal, a interrogação do ser humano, desde quando nasce até quando morre. No fundo, é a interrogação do cordeiro, em sua curta viagem, até a goela do lobo.
Tercio Sampaio Ferraz Jr. São Paulo, agosto de 2000.
Fonte: Prefácio à obra “Dever Jurídico e Teoria Realista do Direito”, de Ari Marcelo Sólon, Sérgio Antônio Fabris Editor, Porto Alegre: 2000, pp. 7-10.
Texto organizado e corrigido por: Victor Alexandre El Khoury M. Pereira.