Princípios condicionantes do Poder Constituinte Estadual em face da Constituição Federal

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

 

Na República Federativa do Brasil, os Estados-membros organizam-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios da Constituição Federal de 1988 (art. 25). O preceito constitucional, completado pelo art. 11 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, manda que as Assembleias Legislativas, com poderes constituintes, elaborem as Constituições estaduais, no prazo de um ano a contar da promulgação da Constituição Federal e, reitera-se, obedecidos os princípios desta.

O federalismo constitucional brasileiro, portanto, manda que as Assembleias elaborem as Constituições. Obviamente, as Assembleias cujos componentes estão no exercício do mandato no momento em que se promulga a Constituição. Estas Assembleias, com poderes constituintes, como diz o citado art. 11, enquanto qualificada por uma competência jurídica de ordem constituinte, não se confundem com a Assembleia Legislativa de que nos fala o art. 27 da CF. Aquelas possuem uma competência constituinte diferente da que tem uma Assembleia Legislativa eleita conforme os mandamentos de uma Constituição Estadual e da Constituição Federal para o exercício do Poder Legislativo.

O mandamento do art. 11 das Disposições Transitórias, portanto, nos chama a atenção para os diferentes sentidos de poder constituinte no âmbito de uma Federação: no que se refere à Constituição Federal, falamos no poder constituinte originário e no poder constituinte derivado; já com referência às Constituições estaduais, é preciso distinguir também aí um poder constituinte quase originário e um poder constituinte derivado de ordem estadual. Esclarecendo este poder constituinte quase originário, Manoel Gonçalves Ferreira Filho nos fala de poder constituinte decorrente, como aquele que, decorrendo do originário, não se destina a rever sua obra, mas a institucionalizar coletividades com caráter de Estado que a Constituição preveja (Curso de Direito Constitucional, Saraiva, São Paulo, 1984, p. 27).

O poder constituinte decorrente, costuma-se dizer, não é soberano, mas goza de autonomia. Autonomia significa a competência, em virtude de direito próprio e não de delegação, de estabelecer normas jurídicas vinculantes. A autonomia tem algo da originalidade, na medida em que é, no âmbito territorial de sua competência, princípio de uma ordem. Dela se separa, porém, na medida em que este atributo da principialidade nasce condicionado. Principialidade significa que os atos do poder constituinte são vistos como início, o começo de algo novo, suas normas não pertencem a um sistema por força de procedimentos e competências previstos, posto que não se inserem nele, mas o instauram. Gozar de autonomia é gozar desta principialidade, atributo essencial da soberania, mas, no caso do poder constituinte decorrente, está pressuposto que o sistema normativo estadual como um todo há de se inserir no contexto da Constituição Federal. E aí está o seu condicionamento. Em outras palavras, enquanto o poder consti­tuinte originário é incondicionado na sua principialidade, posto que instaura um sistema que não havia antes, o poder constituinte decorrente instaura também um sistema novo, mas que deve inserir-se no contexto da Constituição Federal de forma harmónica.

Isto se explica pelo próprio sentido da ordem jurídica num Estado Federal. Há uma só ordem global, não obstante a descentralização de competências. O pressuposto dogmático da unidade da ordem jurídica federal significa que seu fundamento de validade é um único: a norma vinculante estatuída pelo poder constituinte originário que, num certo sentido, corresponde à Constituição Federal mas que, a bem da verdade, é mais do que ela, pois abarca também as projeções constitucionais sobre os Estados-membros e, afinal, os sistemas normativos que os instauram. A ordem jurídica de um Estado Federal é, pois, uma ordem integrante e isto a separa tanto dos Estados unitários quanto dos Estados confederados. Nos Estados unitários, a ordem é uma só e produzida por uma competência constituinte cuja principialidade é também única. Já nos Estados confederados, a ordem jurídica também é uma só, mas produzida pelo encontro de competências constituintes cada qual provida integralmente o seu atributo da principialidade. No primeiro caso, trata-se de um sistema que não se reparte em subsistemas. No segundo, é um sistema constituído por sistemas. No Estado federal, temos um sistema que se reparte em subsistema.

O poder constituinte decorrente, por sua vez, também não se confunde com o poder constituinte derivado. Este, como diz a própria expressão, deriva do originário, portanto não goza do atributo da principialidade nem mesmo em forma condicionada. Ou seja, suas normas pertencem ao sistema instaurado pelo poder constituinte originário por força de procedimentos e competências ali previstos. Já o poder constituinte decorrente, como vimos, goza de uma principialidade ainda que condicionada. Para distinguir os três conceitos de poder constituinte, portanto, a noção de principialidade é crucial. Na prática normativa, a principialidade se revela, p. ex., na outorga que se faz o poder de seu próprio regimento constituinte. Esta outorga é um ato principal, como é um ato principal a convocação de uma constituinte. Principialidade, neste sentido, é tipicamente um conceito dogmático, pois por seu intermédio, o jurista que sabe, obviamente, que nenhuma Constituição é primeira norma em termos fáticos (históricos e sociológicos), confere-lhe o caráter de primeira norma posta, de norma fundamental positiva. O poder derivado não goza desta principialidade em nenhuma forma, pois as emendas que produz não são consideradas em novo início, mas acrescem e modificam o que já foi iniciado por um ato principal. Já o poder decorrente instaura um início, posto que, dogmaticamente, o Estado-membro e, neste sentido, o próprio desígnio de se instituir um Estado federal, sem ele não se constitui. Nestes termos, o poder constituinte decorrente, em face do poder constituinte derivado, é mais do que este, porque goza de principialidade, mas é menos, porque não é soberano. Isto é, o poder constituinte derivado é um poder de emendar e, como tal, está adstrito aos procedimentos que lhe são impostos e às matérias constantes no art. 60, § 4.°, da CF. Fora destes limites, porém, ele tem competência para alterar princípios constitucionais. Isto é, embora não possa mudar o Estado federal, pode alterar princípios da ordem econômica, da ordem social, da ordem política, e seus atos são considerados soberanos, isto é, não estão subordinados a nenhum outro poder constitucional e valem para todos os demais. Já o poder constituinte decorrente não pode alterar nenhum princípio da Constituição Federal, posto que não é soberano, embora possa iniciar algo que o poder derivado não pode: instaurar um Estado-membro.

Estas considerações iniciais são importantes para bem entendermos os limites do poder constituinte decorrente. Quando a Constituição Federal usa a expressão "observados os princípios desta Constituição" não está estabelecendo um limite da mesma forma que o legislador ordinário, federal, estadual ou municipal, também está obrigado, na sua atividade legislativa, a respeitar, obviamente, a Constituição. Por isso é preciso entender esta determinação no seu contexto próprio.

Ao fazer o traçado constitucional da Federação, a Constituição brasileira se vale de princípios e regras. Ambos são conteúdo de normas constitucionais. Teoricamente podemos dizer que princípios são pautas de segundo grau que presidem a elaboração de regras de primeiro grau. Isto é, princípios são prescrições genéricas, que se especificam em regras. Esta distinção, formulada em tese, não é fácil, porém, de ser sustentada na análise do texto constitucional. Por exemplo, o art. 37 dispõe: "A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e também ao seguinte:" Note-se que o texto, ao final, fala no singular: ao seguinte. Não diz: e também aos seguintes, o que deixa claro que, o que se segue, não são princípios. A rigor, se os quatro primeiros são princípios, o que segue são regras. Contudo, no art. 135 está prescrito: "Às carreiras disciplinadas neste título aplicam-se o princípio do art. 37, XII, e o art. 39, § 1.° ". O título se refere à Organização dos Poderes. A referência a princípio faz do texto do art. 37, XII ("os vencimentos dos cargos do Poder Legislativo e do Poder Judiciário não poderão ser superiores aos pagos pelo Poder Executivo") um princípio. Ao que devemos, então, perguntar se só este inciso, ou se também os demais devem ser considerados princípios.

Teoricamente, os incisos do art. 37 não são propriamente princípios, mas regras que contêm vedações, que ocorrem na forma de normas de proibição/ obrigação. A terminologia, porém, mesmo teoricamente, não é pacífica. José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo, Ed. RT 1988, p. 130) chama estas vedações de princípios "estabelecidos". Isto exige, pois, de nossa parte, um esclarecimento terminológico.

Embora a distinção entre princípio e regra não seja fácil de ser sustentada teoricamente, podem-se propor os seguintes critérios, que ajudam o intérprete (cf, Carrió, Princípios Jurídicos y Positivismo Jurídico, Abeledo-Perrot, Buenos Aires, 1970, p. 52, citando Dworkin):

1. Os princípios não exigem um comportamento específico, isto é, estabe­lecem ou pontos de partida ou metas genéricas; as regras, ao contrário, são específicas em suas pautas;

2. Os princípios não são aplicáveis à maneira de um "tudo ou nada", pois enunciam uma ou algumas razões para decidir em determinado sentido, sem obrigar a uma decisão particular; já as regras enunciam pautas dicotômicas, isto é, estabelecem condições que tornam necessária sua aplicação e consequências que se seguem automaticamente;

3. Os princípios têm um peso ou importância relativa, ao passo que as regras têm uma imponibilidade mais estrita; assim, princípios comportam ava­liação sem que a substituição de um por outro de maior peso signifique a exclusão do primeiro; já as regras, embora admitam exceções, quando contradi­tadas provocam a exclusão do dispositivo colidente;

4. O conceito de validade cabe bem para as regras (que ou são válidas ou não o são), mas não para os princípios, que, por serem submetidos a avaliação de importância, mais bem se encaixam no conceito de legitimidade.

Isto posto, é preciso, portanto, determinar, agora, o que significa, para o poder constituinte decorrente, "observar os princípios". Uma das regras fundamentais da hermenêutica constitucional exige que o intérprete postule a unidade da Constituição. Esta regra da unidade nos obriga a vê-la como um articulado de sentido. Tal articulado, na sua dimensão analítica, é dominado por uma lógica interna que se projeta na forma de uma organização hierárquica. Ou seja, uma Constituição, da mesma forma que o ordenamento em geral, também conhece, do ângulo hermenêutico, a estrutura da ordem escalonada. O escalonamento é para a dogmática jurídica condição da unidade, que, por sua vez, garante ao ato interpretativo o respeito aos valores da segurança e da certeza. Conforme a tradição constitucionalista, sem esta unidade a Constituição corre o risco de se tornar instrumento de arbítrio.

A noção de hierarquia, sobretudo numa época em que as Constituições perdem o caráter de conjunto de normas genéricas, para adquirir o caráter e complexidade quantitativa e qualitativa de disposições de toda ordem, passa a ser um importante pressuposto hermenêutico (Engisch, Einfuehrung in das juristische Denken, 4.a ed., p. 157). Hierarquia significa que as disposições constitucionais não estão todas postas horizontalmente umas ao lado das outras, mas também verticalmente. Falamos, assim, em sistema escalonado, i. é, dispo­sições coordenadas e inter-relacionadas que se condicionam reciprocamente em escalões sucessivos. Assim, p. ex., é de se reconhecer, no complexo constitucional, a presença do cerne fixo material representado pelos direitos fundamentais e sua prevalência sobre as demais normas, bem como a diferença entre normas que agasalham princípios, normas que instituem princípios, normas que pressupõem princípios, normas que têm mero sentido técnico de organização, que instauram vedações, estatuem objetivos, estabelecem condições etc.

Distinções formais, contudo, não são suficientes para compreender o sistema constitucional. Existem aí aspectos econômicos, sociológicos, jurídicos e filosóficos que não podem ser reduzidos à mera forma. Neste sentido, diz-nos Pinto Ferreira (Princípios Gerais de Direito Constitucional Moderno, Rio de Janeiro, 1951, p. 64) que o "edifício" constitucional possui vários andares: "embaixo, a infra-estrutura das relações econômicas, a técnica de produção e de trabalho, como símbolo de uma economia individualista ou capitalista; logo em seguida as representações coletivas da sociedade, os sentimentos e instituições dominantes da comunidade humana, como reflexo da consciência comunal; depois, o sistema de normas jurídicas que, se inspirando nos antecedentes econômicos e histórico-sociais, corporificam-no em uma carta política; e, acima de tudo, os princípios de justiça, direito natural e segurança coletiva, como o ideal do regime consti­tucional perfeito". Esta dimensão material, exemplificada neste texto de Pinto Ferreira, mostra que o sistema e sua unidade comportam complicações maiores que a simples ordem analítica e formal.

Tendo em vista, portanto, a complexidade formal e material do sistema constitucional e, simultaneamente, a exigência hermenêutica da unidade do sistema, devemos concluir, numa primeira aproximação do problema, que 1. toda Cons­tituição contém, necessariamente, princípios e que 2. no contexto infra-sistemático da Constituição, os próprios princípios, em face da estrutura hierárquica, não têm o mesmo peso nem a mesma função. Donde se segue que a expressão "obser­vados os seus princípios" comporta análise e discriminação.

O. Bachof (Verfassugswidrige Verfassungsnormen Mohr, Tuebingen, 1951), ao discorrer sobre a tese doutrinatória da existência de normas constitucionais inconstitucionais, distingue entre princípios de caráter puramente positivo e prin­cípios de caráter extrapositivo. A distinção não significa, porém, uma discrimi­nação entre princípios inscritos e não inscritos num texto constitucional, mas aponta para a diferença entre princípios estatuídos e princípios reconhecidos pelo constituinte. Não é o caso de aprofundar esta distinção. Não obstante ela assinala a existência de princípios — os reconhecidos — cuja universalidade, em tese, ultrapassa os limites das Constituições estatuídas. Nestes termos, é conhe­cido o disposto no art. 16 da Declaração francesa de 1789: "Toda sociedade na qual não está assegurada a garantia dos direitos nem determinada a separação dos poderes, não tem Constituição". Sem entrar no mérito de se tais princípios — o da proteção da autonomia individual em face do poder, decorrente da declaração dos direitos individuais e garantias constitucionais, e o da separação dos poderes — são mesmo universais, é importante mostrar que a distinção de Bachof nos permite encontrar um primeiro significado para a expressão princípio constitucional.

Trata-se, pelos exemplos, de pautas primárias de uma Constituição que, por pressuposto, dão sentido à principialidade do ato constituinte. Assim, se o ato constituinte é um ato inaugural, á liberdade há de ser, necessariamente, um de seus atributos fundamentais. Em consequência, princípio constitucional não é apenas uma pauta inicial, não se confunde com um mero começo, mas é o que dá sentido ao que se segue. Princípios fundamentais de uma Constituição são aqueles que lhe dão sentido de primeira norma. É o caso, p. ex., do princípio da supremacia das normas constitucionais. Sem eles não há Constituição, sem eles a principialidade do ato constituinte não ocorre.

A Constituição brasileira de 1988 declara estes princípios, a nosso ver, no seu Título I: "Dos princípios fundamentais". Este título contém, por assim dizer, o traçado do ato principal do poder constituinte originário. É assim que ele se instaura e alterar o que consta dos arts. 1.°, 2.°, 3.° e 4.° é principiar outra Constituição. Aqueles princípios, que ali se chamam "fundamentais", "objetivos fundamentais" e "princípios", são a base da principialidade consti­tuinte originária: neles está a supremacia de uma ordem nova. Isto os Estados-membros não podem alterar, pois seu poder constituinte decorrente ali se principia como ali se principia o próprio poder constituinte originário. Por este seu caráter de fundamentos da própria principialidade, estes princípios devem ser chamados de fundamentais.

Tais princípios estão ali com o ato constituinte. Por seu caráter originário destaca-se, inicialmente, no art. 1.º o que se poderia chamar de princípio congênito do exercício do poder: só o povo é suporte de qualquer poder, inclusive o constituinte. Este princípio do ato constituinte se desdobra, analiticamente, no princípio da soberania popular, da cidadania como o direito de ter direitos (Arendt/Lafer), da dignidade da pessoa humana (base para os direitos fundamentais), do caráter social e livre da atividade econômica (trabalho e livre inicia­tiva), do pluralismo político e da tripartição dos poderes. Com base nestes princípios originários o Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito ,que é sua fórmula síntese.

A partir destes princípios originários, o poder constituinte instaura a Repú­blica Federativa. O princípio republicano e o princípio federativo já tem caráter estatuído. Também eles são fundamentais, mas não são originários no sentido de imanente à própria principialidade do exercício do poder constituinte. São uma opção fundamental do poder constituinte. Por seu caráter podemos chamá-los de fundamentais instituídos.

Há princípios, também fundamentais, que são, em seguida, reconhecidos pelo poder constituinte no momento em que este se exerce e, com isso, se delineia em face de outros poderes igualmente constituintes. São os princípios que regem as relações internacionais. Estes, por seu caráter, são princípios fundamentais de reconhecimento mútuo. Por fim, o art. 3.° traça objetivos fundamentais da República. A palavra princípio cabe aqui no sentido de finalidade, meta (cf. Carrió, Princípios Jurídicos y Positivismo Jurídico, p. 23). Tais princípios dão o sentido de orientação da República, regulando-lhe a atividade, impondo-lhe um telos do qual não deve desviar-se. Por seu caráter, são princípios fundamentais teleológicos.

Os princípios fundamentais originários, instituídos, de reconhecimento e teleológicos constituem o núcleo sensível da Constituição Federal de tal modo que a constituinte estadual neles encontra a condição fundamental de sua principialidade decorrente. Neste sentido, eles são intocáveis, pois alterá-los é colocar-se como constituinte originário. Do ângulo da hermenêutica constitucional, diria que tais princípios não admitem interpretação restritiva, desdobrando-se numa série de direitos, garantias e deveres que deles decorrem. Com base neste fundamento, ademais, o constituinte originário procede, assim, à positivação de certas normas que impõem limites ao poder constituinte derivado (art. 60, § 4.°) e outras que disciplinam a intervenção da União nos Estados (art. 34) bem como de Estados em Municípios (art. 35) ou da União em Municípios do Distrito Federal(art. 35). As normas do art. 60, § 4.° não estatuem princípios, mas reportam-se a eles para limitar o poder constituinte derivado. Já as regras do art. 34, com base em princípios, estatuem regras, normas dotadas de sanção (intervenção) em caso de violação de certos conteúdos que também se reportam a princípios.

A Constituição, porém, ao instituir o princípio federativo, já delineia a federação, estabelecendo-lhe certos princípios comuns de organização. Se uma federação é uma repartição de competência, a Constituição Federal distingue entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 18) conforme um princípio de autonomia política, que faz parte do princípio federativo. A instauração de quatro ordens jurídicas coexistentes é uma opção do constituinte que exige, no entanto, compatibilidade e conformidade de suas regras. Para efeito desta exi­gência é que se estabelecem os princípios de organização. Dentre eles mencionem-se os constantes do art. 37, referentes à Administração Pública dos quatro entes políticos da Federação e comuns a eles. São eles o princípio da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade (que são, aliás, seguidos de regras comuns a todos eles). Aqui se incluem também o princípio da unidade do regime jurídico e do plano de carreira para os servidores, bem como o da isonomia de vencimentos para cargos e atribuições iguais ou assemelhados, o princípio da proporcionalidade eleitoral (art. 45 c/c art. 27 e art. 29, IV), os do art. 93 referentes à magistratura, os do art. 145, § 1.º (pessoalidade e gradualidade, conforme a capacidade contributiva, dos tributos), os do art. 150 (anterioridade na estatuição de tributos etc.), e ainda os do art. 170 (Ordem Econômica).

Os princípios comuns de organização são, em geral, específicos a certa classe ou assunto especial. Ora se referem à administração, ora à magistratura, ora aos servidores, ora à ordem econômica. Já por essa razão têm um peso menor que os princípios fundamentais, que afetam a estrutura global da Consti­tuição. Ao seu lado, porém, estão outros, que estão implícitos na Constituição, a qual os agasalha sem nomear, como seria o caso do princípio da prevalência hierárquica das normas referentes a direitos fundamentais sobre as demais normas constitucionais, o princípio da unicidade das normas constitucionais, o próprio princípio da supremacia constitucional etc.

Por fim, há de se lembrar que a Constituição contém também os chamados princípios estabelecidos, que, na verdade, são vedações expressas ao poder constituinte estadual, o que nos levaria a falar antes em regras.

Ora, a aceitarem-se estes comentários, devemos fazer notar que, quando a Constituição Federal fala em "observados os princípios desta Constituição", referindo-se ao constituinte estadual, reporta-se genericamente a princípios e regras, sem maiores distinções. Ou seja, pela própria indecisão terminológica do constituinte federal a que nos referimos anteriormente, ao falar do art. 37, devemos assinalar que sob a rubrica princípios estão aí incluídos também os princípios estabelecidos que, teoricamente, são vedações contidas em regras.

Com respeito às regras devemos reconhecer, ademais, que nem todas contêm vedações expressas. Assim, p. ex., o art. 19 contém regras que vedam à União, Estados, Distrito Federal e Municípios, expressamente, certos comportamentos normativos (p. ex., recusar fé a documentos públicos, criar distinções entre brasi­leiros ou preferências entre si etc.). Outras disciplinam a competência legislativa comum, concorrente e suplementar (art. 22, parágrafo único, arts. 23 e 24). Os §§ 1.º a 4.° do art. 24 contêm regras para a disciplina das competências suple­mentar e concorrente. A distribuição de competências, por meio de regras, contém, porém a contrario sensu vedações para o constituinte estadual. Em outros casos ainda, a Constituição Federal estende, compulsoriamente, aos Estados certas regras, como é o caso do art. 27, § 1.°, em que se manda aplicar as regras desta Constituição sobre sistema eleitoral, inviolabilidade, imunidades, remune­ração, perda de mandato, licença, impedimentos e incorporação às Forças Ar­madas.

Isto posto, resta ainda falar do sentido da expressão "observados os prin­cípios". Que significa, para o constituinte estadual, observar os princípios, aí incluídas as regras ou princípios estabelecidos?

Em primeiro lugar, devemos reconhecer que para observar princípios, o constituinte não precisa repeti-los na Constituição Estadual, embora nada impeça de fazê-lo. Observar um princípio significa assim abster-se de emitir regras com ele incompatíveis ou, positivamente, emitir regras constitucionais compatíveis. Não se cumpre um princípio repetindo o seu teor, mas emitindo regras que com ele compõem um conjunto hierarquicamente harmônico. Como princípios não exigem um comportamento específico nem são aplicáveis à maneira de um "tudo ou nada", observá-los significa seguir-lhes a orientação ao estabelecerem-se regras constitucionais estaduais. Isto confere ao constituinte decorrente uma certa flexibilidade legitimante que faz de sua competência um poder condicionado mas não limitado. Por outro lado, a inobservância dos princípios gera uma ilegitimidade das regras constituídas, cuja consequência é a desconsideração de poder constituinte decorrente.

Admitindo-se, como o fizemos, que os princípios fundamentais constituem primariamente o ato constituinte, deixar de observá-los é negar-se como poder constituinte. Ou seja, atos de inobservância dos princípios stricto sensu, em graus diferentes de ilegitimidade, são atos normativos inexistentes quanto à sua eficácia e anticonstitucionais quanto à normatividade. Não são propriamente inconsti­tucionais, mas contra a Constituição, i. é, emanados fora do âmbito de legiti­midade constituído originariamente. A força de alguns destes princípios é tal que o próprio constituinte federal estabelece, para sua violação, regras sancionadoras que autorizam a intervenção da União nos Estados. Aliás, só assim se explica, no seio de uma federação, esta fórmula esdrúxula da intervenção que, aparentemente, fere a idéia de federação, como faz ver, entre outros, Hans Kelsen (in La giustizia Constituzionale: L’Executione Federale, Milão, 1981, pp. 76 e ss.). As regras de intervenção, de certa maneira, suspendem, momentanea­mente, as prerrogativas federativas dos poderes federados em favor da União em relação aos Estados e destes em relação aos Municípios, porque ali estão atos que estão ocorrendo à margem da Constituição instauradora de um regime, por princípio, federativo. Os casos de intervenção, previstos em regras, são atos anticonstitucionais (art. 34, VII, "a", "b", "c", "d").

No que se refere à observância daqueles princípios de organização que, em grande parte, são princípios estabelecidos, mais próximos de regras, a sua inobservância acarreta a inconstitucionalidade da norma constituinte estadual, isto é, seus efeitos devem ser considerados nulos (mas não inexistentes), cabendo ao constituinte estadual a sua revogação. Isto vale tanto para os princípios de organização quanto para as regras propriamente ditas.

Esta questão nos parece importante para o tema. Ela tem a ver diretamente com o sentido da vinculação das constituintes estaduais aos princípios da Consti­tuição Federal. Por isso, vamos retomar o que foi dito.

1)O poder constituinte estadual é um poder decorrente, isto é, um poder condicionado mas cuja competência, no seu âmbito, goza do atributo da principialidade.

2)A condicionalidade do poder decorrente está nos princípios da Consti­tuição Federal.

3)A Constituição Federal, ao configurar-se como federativa, adianta-se, em alguns pontos, ao constituinte estadual, antecipando traços fundamentais da federação. Para isso se vale de princípios de organização e estabelecidos, e de regras.

4)Quando, portanto, a Constituição Federal exige, do constituinte estadual, a observância de princípios, engloba nesta expressão tanto princípios funda­mentais (originários, instituídos, teleológicos e de reconhecimento) quanto prin­cípios de organização, princípios estabelecidos e regras.

5)A expressão observância (dos princípios) tem sentido distinto, porém, quando pensamos na diferença entre princípio e regra e quando admitimos que a exegese dos princípios admite peso e importância diferentes quanto ao seu grau de legitimidade.

6)Em se tratando de princípios fundamentais, sua observância é absoluta. Observá-la significa compatibilizar estritamente as regras constitucionais estaduais ao sentido de orientação que eles imprimiram ao ato constituinte originário. Agir fora do seu parâmetro é agir a despeito do poder originário, é, portanto, um verdadeiro ato revolucionário. Neste caso, falamos em anticonstitucionalidade da constituinte estadual que, assim, se nega como poder decorrente.

7)Quanto aos princípios de organização, distinguimos aqueles que são

princípios, no sentido teórico proposto, e aqueles que têm mais o caráter de

regras, os chamados princípios estabelecidos. E há, por último, normas que

instituem regras.

8)A inobservância de princípios de organização tout court (p. ex., lega­lidade, moralidade, impessoalidade e publicidade) tem um caráter de ilegitimidade maior que a inobservância dos princípios de organização estabelecidos. Em graus diferentes de ilegitimidade, porém, a inobservância de ambos gera inconstitucionalidade. Também gera inconstitucionalidade a inobservância de regras.

9)A distinção entre anticonstitucionalidade e inconstitucionalidade tem uma repercussão importante. A anticonstitucionalidade gera um fato político novo, isto é, gera uma situação de desagregação política cuja consequência extrema é a situação revolucionária. Entre esta situação extrema e situações intermediárias, configuram-se casos que permitem o acionamento dos instru­mentos de defesa do Estado e das instituições democráticas (Título V), até o limite das ações cabíveis num processo revolucionário. Tenha-se em conta, porém, que para muitos casos de inobservância de princípios fundamentais estão também previstas regras cuja desobediência gerará declaração de inconstitucionalidade. Em outras palavras, se a inobservância de princípios fundamentais estiver também regulada por regras, a anticonstitucionalidade gera uma ação política que, no caso da inobservância das regras, permite também acionar os dispositivos de declaração de inconstitucionalidade. Assim, uma coisa é ferir, p. ex., os princípios fundamentais que regem as relações internacionais (art. 4.°, I-X), outra é ferir a regra de distribuição de competência que atribui à União manter relação com Estados estrangeiros (art. 21, I). No primeiro caso, temos anticonstitucionalidade; no segundo, inconstitucionalidade.

10)Atente-se para o fato de que a declaração de inconstitucionalidade visa a tornar a norma, assim inquinada, nula. Isto é, sua aptidão para produzir efeitos é negada ex tunc. Contudo, a declaração não revoga a norma, que continua vigente e eficaz até que o Senado suspenda sua executoriedade (art. 52, X). Ou seja, se não se declara a inconstitucionalidade por processo próprio, o sistema recepciona a norma que, então, regula a exigência de seu cumprimento pela seguinte regra dogmática de calibração: "não se pode deixar de cumprir ou obedecer comando do Poder Público, alegando sua invalidade". Com isso, o sistema prestigia a autoridade jurídica, devendo-se entender, com Kelsen, que as chamadas normas inconstitucionais são normas conforme a Constituição, que, todavia, são anuláveis ex tunc por um processo especial. É diferente a situação de anticonstitucionalidade, que desencadeia um fato político novo, com pretensão de legitimar a partir de si mesmo a desobediência, posto que o poder que a provoca está negado como poder jurídico-constitucional decorrente e se estrutura, em graus diferentes de legitimidade, como originário.

Estas considerações mostram, por fim, que o sistema constitucional é um sistema jurídico sensível aos aspectos políticos, econômicos e sociais muito mais do que o demais. Afinal, o aspecto político que mostramos na distinção entre inconstitucionalidade e anticonstitucionalidade na inobservância de princípios atesta que a configuração constitucional da federação não se reduz a bases mera­mente analíticas, mas aponta para os múltiplos sentidos da convivência básica do ser humano no espaço da cidadania.

Texto digitado e organizado por: Gabriela Faggin Mastro Andréa.