Reajustes salariais na sucessão dos Decretos Leis, qual a norma incidente no tempo?

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

 

A sucessão de decretos-leis versando matéria salarial, como todas as inconstitucionalidades que vêm sendo apontadas pelos especialistas, suscitou uma dúvida de ordem técnico-jurídica a propósito da norma incidente, no tempo, quando uma categoria profissional é apanhada, em pleno período de negociações, por uma alteração na legislação vigente. Pode ocorrer, como de fato ocorre no momento, que estas negociações principíem sob a tutela de um decreto-lei e terminem sob o império de outro. Sobrevindo o dissídio, surge então uma dúvida sobre qual norma deverá ser aplicada pelo tribunal, ao tomar a sua decisão.

Uma primeira opinião, a respeito, afirma que a norma aplicável é aquela vigente no momento da decisão. Dois são os argumentos em favor dessa assertiva. Primeiro, que o tribunal deve aplicar norma vigente e não norma que, por força da rejeição pelo Congresso – caso específico do Decreto 2045 – não mais existe. Segundo, que, em consequência, a sentença normativa, sendo constitutiva, é a partir dela que o reajuste é fixado, forçosamente de acordo com a norma vigente no momento em que é dada a sentença, atendendo-se inclusive ao disposto no art. 912 da CLT.

Uma segunda opinião, contudo, merece consideração; Esta afirma que a norma aplicável pelo tribunal há de ser a vigente por ocasião da data-base de reajuste da categoria. São os seguintes os argumentos em favor dessa assertiva.

O problema é colocado do mesmo modo: principiadas as negociações, não sobrevindo acordo e ocorrendo o dissídio, qual a norma aplicável? De início, do ponto de vista constitucional, leva-se em consideração o disposto no art. 55 e parágrafos da Lei Magna. Deve-se reconhecer, em princípio, que o referido artigo determina a imediata vigência do decreto-lei, a qual contudo, é temporária e provisória, sujeita que está a uma condição futura: a aprovação pelo Congresso. No entanto, desde o princípio de sua vigência, o decreto-lei tem eficácia plena, salvo quanto ao efeito revogador, como fizemos ver em nosso trabalho publicado em Indústria e Desenvolvimento, out.83, pág. 35 e no jornal O Estado de S. Paulo de 25 de setembro de 1983. Isto é, o decreto-lei suspende imediatamente a eficácia das disposições em contrário, mas só as revoga se aprovado pelo Congresso. Quanto aos demais efeitos, porém, por determinação expressa da Constituição, a eficácia do decreto-lei não implicará a nulidade dos atos praticados durante a sua vigência”. (grifamos)

Doutrinariamente, podemos distinguir entre nulidade, anulabilidade e ineficácia simples. Nulo é o ato cujos efeitos são desconsiderados desde o momento em que passou a viger. Anulável é o ato cujos efeitos são desconsiderados a partir do momento em que sua vigência cessa sendo eficaz no interregno. Simplesmente ineficaz é o ato cujos efeitos não se produzem pela falta de uma condição não realizada (suspensiva ou resolutiva). Ora. os decretos-leis baixados conforme o art. 55 da Constituição, tendo vigência temporária e provisória, estão sujeitos a uma ineficácia simples, posto que os seus efeitos dependem também do fator tempo. O constituinte, percebendo isso, ressalvou expressamente os atos praticados durante a sua vigência, dispondo que mesmo ocorrendo a rejeição, a qual, em tese, seria uma condição resolutiva, isto é, uma circunstância futura cuja ocorrência destrói os efeitos já produzidos, sua eficácia seria plena e definitiva: não há nulidade. Isto, obviamente, não exclui a anulabilidade, desde que não sejam feridos direitos adquiridos. Em síntese: os efeitos dos atos praticados durante a vigência temporária de um decreto-lei que venha a ser rejeitado não são desconstituídos pela rejeição, podendo, no entanto, ser anulados desde que não se firam direitos adquiridos.

Isto posto, o problema que estamos discutindo passa a admitir a seguinte formulação: o reajuste automático a partir da data-base da categoria e conforme um índice determinado é um efeito imediato do decreto-lei? em o sendo, rejeitado este decreto-lei, sendo vedada a nulidade deste efeito por causa de sua rejeição, poderá, contudo, este efeito ser anulado por outro decreto-lei? ou haverá, no caso, um direito adquirido?

Quanto a primeira questão, há de se distinguir os seguintes pontos: o reajuste automático, o índice a ser levado em conta e a data-base como prazo inicial do reajuste. O reajuste automático está estabelecido em lei (Lei 6708/79), embora alguns dos seus dispositivos tenham sido alterados por norma posterior.

Sua ementa fala em "correção automática de salários" (grifamos) e o seu art. lº. determina que "o valor monetário dos salários será corrigido, semestralmente, de acordo com o índice Nacional de Preços ao Consumidor, variando o fator de aplicação na forma desta lei". O que foi alterado posteriormente foi o fator de aplicação e sua forma, ou seja, o índice a ser levado em conta. Porém, não foi alterado o art. 4º. desta lei que determina: "a contagem de tempo para fins de correção salarial será feita a partir da data-base da categoria profissional". Ora, conforme o art. 3º. da mesma lei, também não alterado salvo quanto ao fator de aplicação e sua forma, "a correção dos valores monetários dos salários, na forma do artigo anterior (alterada), independerá de negociação coletiva e poderá ser reclamada, individualmente, pelos empregados" (grifamos). A análise conjunta destes dispositivos nos faz ver que o decreto-lei 2045, alterando apenas o fator de aplicação e sua forma mas mantendo os demais dispositivos mencionados, tem por efeito imediato a constituição de um direito ao reajuste na forma por ele prevista. Trata-se, a nosso ver, de um efeito que, ademais, é pleno, pois tem todos os requisitos do chamado direito adquirido.

Conforme preleciona Rubens Limongi França (Direito Intertemporal Brasileiro, 2ª ed. 1968, p. 432 ss.), direito adquirido "é a consequência de uma lei, por via direta ou por intermédio de um fato idôneo; consequência que, tendo passado a integrar o patrimônio material ou moral do sujeito, - não se fez valer antes da vigência da lei nova sobre o mesmo objeto". Sendo consequência de uma lei, o titular pode exercê-lo, pois já entrou em seu patrimônio. E este ingresso no patrimônio não precisa ser imediato, mas basta que se tenha dado antes da vigência da lei nova. Ademais, não se trata de ingresso no plano dos fatos (eficácia social) mas o plano jurídico (eficácia jurídica), o que pode ocorrer por via direta ou por meio de fato idôneo.

Ora, quando o Decreto-lei 2045 entrou em vigor, alterando apenas o fator de aplicação e a forma do reajuste, o reajuste, na base de 80% do INPC, entrou para o patrimônio do empregado desde que tenha ocorrido o falo idôneo previsto (via indireta), ou seja, a data-base, aperfeiçoando-se o efeito: a constituição do direito (adquirido). Ou seja. o reajuste automático, semestral e a partir da data-base é o fato aquisitivo específico, interno à lei, que depende de um requisito exterior, acidental, que é o quando ocorre a data-base. Se este já ocorreu, o requisito acidental também se aperfeiçoou.

Contra este argumento poder-se-ia objetar, no entanto, que o art. 912 da CLT determina que "os dispositivos de caráter imperativo terão aplicação imediata às relações iniciadas mas não consumadas". Ora, iniciada a negociação, mas não sendo obtido acordo ou convenção, sendo o dissídio julgado já na vigência de um novo decreto-lei, este deverá ser aplicado pelo tribunal, ademais que a sentença normativa tem natureza constitutiva, embora retroagindo à data-base. Em que pese a força do argumento, quer-nos parecer que a negociação em tela exclui o reajuste automático, tanto que o art. 3º da Lei 6708/79 determina expressamente que a correção dos valores monetários dos salários "independerá de negociação coletiva". Não se trata, pois, quanto a este item, de relação apenas iniciada mas não consumada. Ao contrário, neste ponto de correção, não há mais nada a negociar. Além disso, a sentença normativa, embora tenha natureza constitutiva, é norma individual e o caráter constitutivo se refere apenas ao quantum concreto do reajuste de cada categoria, mas não à data-base e ao critério vigente no momento para a correção. Isto é, ela constitui o quantum concreto para determinada categoria profissional conforme a lei e o direito adquirido.

Isto posto, sendo o reajuste automático, conforme o critério vigente no momento em que a categoria profissional tem a sua data-base, um efeito imediato do decreto-lei, a sua rejeição pelo Congresso não pode provocar a sua nulidade. Este efeito é definitivo, a rejeição não tem efeito resolutivo. Em consequência, pelo tribunal, nos casos de dissídios coletivos ajuizados após o prazo de 60 dias a que se refere o §3º do art. 618 da CLT, a norma a ser aplicada é aquela vigente a época da ocorrência da data-base.

Resta, contudo, uma questão: poderia norma posterior anular o efeito da norma anterior? Por tudo o que dissemos, havendo sido constituído direito adquirido para a categoria cuja data-base já ocorreu, este efeito, perenizado em que pese a rejeição do decreto-lei (no caso, o 2045), não poderá ser anulado ex-vi o disposto no art. 153, § 3º da Constituição. O decreto-lei 2065 vale para os casos posteriores, a partir da data em que entrou em vigor.

Texto digitado e organizado por: Gabriela Faggin Mastro Andréa.