Regulamentação da Ordem Econômica

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

 

* (Texto revisto pelo autor)

O tema proposto nesta sessão desta tarde é vasto e bastante complicado. Mas como estamos num seminário em que o Direito Constitucional deve prevalecer, vou tentar limitar a discussão a algum dos temas que provoquem a questão constitucional.

Gostaria de começar com uma frase de um dos papas do liberalismo da escola de Chicago: "Não existe, infelizmente, uma boa solução para o monopólio técnico. Existe apenas a escolha entre três demônios: o monopólio privado desregulamentado; o monopólio privado regulamentado pelo Estado e a produção estatal." As três soluções são demoníacas. E é aqui que entra a questão, de um lado, da regulamentação dos mercados e, de outro lado, da sua desregulamentação e o papel das agências do tipo do CADE ou da Secretaria de Direito Econômico, isto é, naquelas agências chamadas tradicionalmente de antitruste ou agências de guarda, promoção da concorrência. O que significa isto?

Em primeiro lugar vamos examinar este problema, colocado por Milton Friedman: a Constituição brasileira, como sabemos, traz entre os seus princípios básicos da ordem econômica, no art. 170, inc. IV, o chamado princípio da livre concorrência. Por outro lado, no caput do mesmo artigo aparece a livre iniciativa como um dos fundamentos da ordem econômica e no inc. IV, do art. l.º da CF, a livre iniciativa é também um dos fundamentos da República. Por tudo isto, é óbvio que poderíamos apontar nossa Constituição como uma Constituição onde a liberdade, o chamado "livre mercado", seria particularmente protegida. Tenho, de um lado, a livre iniciativa, como um dos fundamentos da República, além de fundamento da Ordem Econômica e tenho, entre os princípios da ordem econômica, o princípio da livre concorrência.

A questão, no entanto, não é tão simples porque, em primeiro lugar, é preciso chamar a atenção para o fato de que a livre concorrência como um princípio do chamado "livre mercado" não é necessariamente idêntica à livre iniciativa. Ou seja, quando falo em mercado livre, quando digo que o regime é do livre mercado posso estar me referindo à ausência de uma interferência externa no seu próprio funcionamento. Mas isto não quer dizer que livre mercado propicie imediatamente livre iniciativa. Há uma diferença entre as duas coisas. Ou seja, livre mercado, num certo sentido, é neutro perante a livre iniciativa. Livre mercado, regido pelo princípio da livre concorrência, significa apenas, num primeiro momento, a possibilidade de auto-regulação, ele se regula. Regular-se significa, entre outras coisas, que é no mercado que se formam os preços conforme as suas próprias regras e é no mercado que se dá a boa alocação dos recursos. Nesse sentido é que o mercado se autorregula. Mas desta autorregulação, isto é, do fato do mercado ser livre e, portanto, não sofrer interferências externas não decorre a livre iniciativa. E a livre iniciativa é mais forte no mandamento constitucional porque além de ser fundamento da Ordem Econômica, é fundamento da República. Ora, se do livre mercado não decorre necessariamente uma proteção à livre iniciativa, o assunto tem que ser examinado com um certo cuidado, no que diz respeito à intervenção do Estado na economia.

O livre mercado, protegido pelo princípio da livre concorrência, proporciona competitividade, o que é fator de importância relevante na formação, por exemplo, dos preços. Competitividade é um fator fundamental do livre mercado e, portanto, da própria concorrência. Ela é função da existência de mercados segmentados, do dinamismo tecnológico, do uso adequado da economia de escala. Ou seja, nesse modelo nós podemos perceber que a competitividade é um elemento importante na formação do preço, na alocação de recursos, na dinâmica do mercado. E ela, à primeira vista, exclui aquilo que poderíamos chamar de cooperação: ajuste, por exemplo, de preços entre competidores etc. Portanto, para haver competitividade, há que evitar-se estes tipos de ajustes. Os ajustes prejudicam à competitividade e tendem a provocar exclusões, por exemplo, de agentes econômicos que com isso sentem que a sua liberdade de iniciativa passa a ser restringida. Por exemplo, se dois concorrentes dividem entre si um mercado podem estar excluindo outros competidores, prejudicando a concorrência livre.

A partir desse momento, podemos entender que a competitividade deverá ser promovida e ela será tão mais bem promovida quanto mais se garanta aos agentes a sua livre iniciativa. Esta garantia, que se dá aos agentes em termos da sua livre iniciativa, ocorre entre outras coisas, por meio do mandamento constitucional que ordena reprimir o abuso do poder econômico. Eis uma das formas pelas quais aparece essa garantia da livre iniciativa, tendo em vista a livre concorrência.

A questão, no entanto, não é tão simples assim. Aparentemente, fomentando a competitividade e protegendo, por via de repressão ao abuso do poder econômico, a livre iniciativa, estaríamos harmonicamente entendendo em que sentido a Constituição teria por fundamento a livre iniciativa e por princípio a livre concorrência. Só que a questão, repito, não é tão simples assim, porque dentro da concorrência, pode-se vislumbrar, como mostrou Elizabeth Farina em tese recente de livre docência na Faculdade de Economia da USP, dois comportamentos possíveis. De um lado, os agentes econômicos competem, isto é, eles são rivais no sentido extremo: um vai contra o outro, um procura ganhar do outro, eles disputam espaços, técnicas, preços, enfim, temos a competitividade como essência da concorrência. De outro, dentro do mesmo fenômeno da concorrência existem outros comportamentos, que são inevitáveis e que, curiosamente, são o oposto da competitividade. Esses comportamentos são os chamados comportamentos cooperativos. O que se quer dizer com isso é que é impossível uma competitividade sem comportamentos cooperativos. Quando trabalhamos com aqueles bens, chamados não-cooperativos, por exemplo, a produção de pão, a competitividade funciona em larga escala e com bons efeitos sem necessidade de cooperação, isto é, ela propicia o quadro para a livre iniciativa. No entanto, quando entramos no terreno dos chamados bens cooperativos, começa a ficar inevitável a interferência do Estado. Os bens cooperativos são bens chamados não-exclusivos, não-rivais, portanto, não-competitivos e que, se colocados na mão da iniciativa privada pura e simplesmente, provocam distorções dentro do mercado. Esses bens que têm um sentido "público" (e estou falando no sentido econômico e não no sentido jurídico da expressão), podem ser, num exemplo de E. Farina, um programa de combate a pragas na agricultura. Nesse caso, a presença do Estado é uma presença importante a garantir a livre iniciativa. Ela é importante porque conduzir a administração desses bens em termos de alocação ótima de recursos e de um tratamento coerente deles tendo em vista a formação de preços só pode estar ou preponderantemente só pode estar, na mão de uma entidade estatal na medida em que, se realizada por entidade privada, provocar-se-iam distorções como o aparecimento dos chamados aproveitadores; se alguém promove um bem cooperativo, logo aparece aquele que se aproveita e se aproveita de uma forma pela qual não paga. Por isso, a tendência é que, nesses casos, o Estado continue a interferir e a promover alocação dos recursos.

A questão se complica um pouco, quando falamos, no entanto, dos chamados bens coletivos, isto é, aqueles que resultam de uma informação assimétrica e imperfeita dentro do mercado. Eles são coletivos porque se deixarmos o mercado à solta, dentro da mera competitividade, eles não são alocados de uma forma razoável e também provocam distorções. Por exemplo, a cobrança de direitos autorais. Existe uma entidade no país que faz essa cobrança. E aqui aparece para o administrador público um dilema: se interferir e mandar acabar com a identidade, porque isto constitui uma espécie de monopólio e/ou cartel que pode prejudicar a competitividade, corre-se o risco de, por causa da informação assimétrica e imperfeita que os próprios autores têm do processo de cobrança ou de divulgação das suas próprias obras, obterem-se resultados expressivamente injustos e até ineficientes.

Os bens coletivos, portanto, provocam o aparecimento, dentro de um mercado livre, de associações privadas, que não são estatais, mas que exercem uma função paraestatal, que tendem a administrar a necessária cooperação para que a competitividade funcione. É aí que entra o direito econômico, é aí que entra a repressão ao abuso do poder econômico. Toda vez que estamos diante destes bens coletivos, começam a aparecer estas associações, formal ou informalmente, que principiam a se entender, isto é, realizam uma espécie de entendimento, uma espécie de cooperação que lhes permite, no entanto, o exercício da competitividade. Só que aqui entram problemas de definição de fronteiras complicadíssimas. A cooperação deve estar sempre voltada para a competitividade, isto é, coopera-se para que a competitividade possa ser realizada da maneira mais eficiente. A tentação, no entanto, é que, nesta hora, estas associações permanentes ou precárias, partam para fórmulas de controle da própria competitividade, interferindo nela e provocando o alijamento da livre iniciativa. Ou seja, os associados ou os concorrentes se reúnem para conseguir implementar uma forma necessária de cooperação e sofrem a tentação de começar a determinar fórmulas de avaliação do mercado, divisão do mercado, estabelecimento comum de preços ou de formação de preços etc.

A presença dessas associações, precárias ou permanentes, é, dentro da estrutura do livre mercado, inevitável. O direito econômico da livre concorrência entra exatamente para formular as linhas que definem o que é e o que não é admissível na cooperação, tendo em vista a promoção e o fomento da atividade. É aqui que entra o direito da livre concorrência, e é aqui que entra o mandamento constitucional de repressão ao abuso do poder econômico. Na estrutura constitucional, percebemos, então, nesses termos, que o fundamento da livre iniciativa como um fundamento da República e da Ordem Econômica, não é diretamente decorrente do livre mercado porque o livre mercado pode propiciar distorções que, no limite, aniquilem a livre iniciativa. Mas o livre mercado, com as devidas regulações que lhe propicia o princípio de livre concorrência em termos de razoável harmonia entre competitividade e cooperação, pode fomentar a própria livre iniciativa. O elemento básico constitucional deste fomento é a repressão do abuso ao poder econômico.

A legislação brasileira (e a legislação do mundo inteiro) no entanto, prevê uma segunda forma de trabalhar esse problema. Essa segunda forma não se dá em termos de repressão, mas na forma de autorizações de operações que envolvem justamente cooperação. Essa autorização prévia dessas operações é um instrumento também necessário. Nesse caso não estamos propriamente dentro dos comportamentos infrativos (abusos) que prejudicam a concorrência, no sentido de que expulsam a livre iniciativa, mas ficamos, por assim dizer, no seu limiar. Isto pode ser percebido, por exemplo, em termos de acordos, joint ventures, acordos de distribuição, organização de franquias etc. Isso, às vezes, é propiciado ou, pelo menos, fomentado pelo Estado (vide, por exemplo, a questão das câmaras setoriais, onde são trazidos todos os agentes para conversarem entre si). Nestas situações é que entra um tipo de regulação prévia da parte do direito da concorrência. E aqui entra a questão da autorização das fusões, dos atos de concentração. Neste terreno ocorre, assim, uma interferência para a boa condução das relações de cooperação, previamente a qualquer hipótese de infração à ordem econômica. Qual é o fundamento constitucional deste tipo de atuação? A meu ver, vamos encontrar isto em alguns capítulos da Constituição e aqui é necessário, talvez, uma interpretação sistemática que puxe elementos de outros Capítulos que não o da Ordem Econômica. Eu me referiria principalmente ao que está no art. 219 da CF e nos artigos anteriores, o 218 também. O art. 219 diz que "O mercado interno integra o patrimônio nacional...". Ao integrar o mercado interno o patrimônio nacional (note-se, ele integra o patrimônio nacional, obviamente, não integra o patrimônio do Estado), ele tem que ser gerido.

Aqui entra a cominação entre o que está disposto neste art. 219 com aquilo que vamos encontrar na Ordem Econômica em termos das funções do Estado. E dentre estas funções aparece a da fiscalização. A fiscalização tem dois sentidos. Ela pode ter o sentido da fiscalização em termos de repressão, mas também pode ter o sentido da fiscalização intermitente da prevenção. Nesse sentido, poderíamos, então, dizer que há também na Constituição fundamento para esse tipo de atuação do Estado que ao se antecipar aos atos de cooperação, permite que se previnam as possíveis distorções a que o mercado, não poucas vezes, é levado, ou seja, ao invés de propiciar, de fomentar a competitividade, acaba-se fazendo exatamente o contrário, o que nos leva à exclusão da livre iniciativa.

Nesses termos, parece-me que os fenômenos que estamos recebendo nos dias de hoje, o fenômeno da privatização, o fenômeno da globalização, a entrada de concorrentes de um mercado estrangeiro dentro do mercado nacional, aguça e traz de novo, quando falamos de bens coletivos, o problema da cooperação. Justamente num momento de privatização da economia e num momento de globalização da economia, o direito da concorrência se faz mais necessário do que nunca, porque quando temos dirigismo estatal, o direito da concorrência é desnecessário, mas numa economia aberta, ele se torna imprescindível.

Fonte: Cadernos de Direito Constitucional e Ciência, – Janeiro-Março de 1997, ano 5, nº 18, RT, São Paulo, pp. 95-98.

(Digitalizado e conferido por Gabriela Faggin Mastro Andréa)