Tercio Sampaio Ferraz Jr.
Centra-se a questão no necessário relacionamento entre a liberdade de contratar, garantida pelo art. 170 como decorrência da livre iniciativa e as imitações impostas contra o abuso do poder econômico, conforme o art. 173, § 4.°, todos da Constituição Federal. É pois o próprio princípio da livre concorrência que merece aqui a devida análise e explicitação.
Os mais autorizados intérpretes da Constituição de 1988 têm assinalado, com razão, a importância da inserção, pela primeira vez, do conceito de iniciativa privada como fundamento da ordem econômica, em Texto Constitucional Brasileiro (assim Miguel Reale, "A Ordem Econômica Liberal na Constituição de 1988" in Constituição de 1988 — O Avanço do Retrocesso, org. Paulo Mercadante, Rio de Janeiro, 1990, p. 19). Isto, obviamente, não quer significar que a concorrência tivesse sido ali tratada nos moldes do mercado oitocentista, supostamente ordenado por uma estrutura atomística e fluída, isto é, pela pluralidade de agentes e pela influência isolada e dominadora de uns sobre os outros, em que a liberdade negocial (autonomia privada) era uma exigência em termos de disponibilidade, a saber, possibilidade de os sujeitos determinarem, sem ser obstados, as quantidades e qualidades de bens desejados, bem como entrar e sair a seu talante dos sistemas relacionais (ver Reale, ob. cit., p. 21).
Afinal, desde o final da década de 50, o influxo das forças econômicas do Ocidente desenvolvido fazia-se sentir no Brasil, que passava a perceber, por exemplo, que as sociedades mercantis e industriais, privadas na sua organização jurídica, ao assumirem as formas burocratizadas análogas às dos entes políticos, detinham um poder cujo exercício, se, de uni lado, multiplicava a sua potencialidade econômica, de outro tendia às estratégias da concentração e da dominação, impedindo-se a possibilidade de regulação dos mercados conforme os parâmetros pressupostos pelo tradicional Direito Privado, observando-se, ao contrário, sua insuficiência progressiva.
No quadro que então se esboçava e que viria a tomar traços mais nítidos nas décadas seguintes, já se percebia que o mercado concorrencial era antes um processo comportamental competitivo que admite gradações tanto na atomicidade quanto na fluidez de sua estrutura. Ora, a competitividade se, de um lado, exigia a descentralização de coordenação como base na formação dos preços, o que supõe a apropriação privada dos bens de produção e a liberdade negocial, não excluía, de outro, ao revés, incorporava à estrutura do mercado uma série de práticas estratégicas de mútua e recíproca consideração dos respectivos comportamentos, fazendo com que a luta passasse a ter ali um novo peso estrutural. Ela não seria apenas ativadora do processo, mas o elemento que regula e, no seu limite, pode alterar unilateralmente a própria estrutura. Com isso, o culto da liberdade negocial como sujeita apenas aos limites da tradicional autonomia privada enquanto simples autonomia da vontade perdia em densidade (sobre esta evolução, com maior detalhamento, ver nosso trabalho: "Lei de Defesa da Concorrência, Origem Histórica e Base Constitucional" in Arquivos do Ministério da Justiça, ano 45, n. 180, 1992).
As primeiras manifestações de uma economia de escala e de uma sociedade de consumo, no Brasil, tomavam-se perceptíveis na segunda metade da década de 60. E, de certo modo, foram antecipadas na Lei 4.137/62 que, no entanto, não se libertava ainda plenamente das concepções pregressas. Por isso, no tratamento da matéria, a partir da Constituição vigente (1946), o legislador preocupava-se com as formas de poder econômico no que elas tinham de abusivo, expressando-se preponderantemente no que Benjamin M. Shieber (Abusos do Poder Econômico, Ed. RT, S. Paulo, 1966 p. 28 e ss.) chamou de "linguagem de finalidade": o abuso estava na intenção de dominar mercados, eliminar concorrentes, aumentar lucros arbitrariamente. Ou seja, dava-se ao abuso o sentido de uma ilicitude sujeita a um regramento estritamente penal ("A lei, a que se refere o art. 148, é penal", dizia Pontes de Miranda em seus Comentários à Constituição de 1946, vol. IV), cavando-se ainda fundo as fronteiras entre a autonomia da vontade (Direito Privado) e o abuso criminoso (Direito Público), sem nuanças intermediárias.
Esta orientação foi tão forte que, mesmo sob a Constituição de 1967/69 (que, propriamente, não usava a linguagem finalista - ver art. 157, VI: "repressão ao abuso do poder econômico, caracterizado..."- grifei), tomava corpo, em 1985, uma corrente pela qual estariam derrogadas, por força da Constituição então vigente, todas as disposições coativas que não se enquadrassem estritamente no trinômio finalista: dominação de mercados, eliminação de concorrência e aumento arbitrário de lucros (cf., Franceschini: Poder Econômico: Exercício e Abuso - Direito Antitruste Brasileiro, Ed. RT, S. Paulo, 1985, p. 15 e também, no mesmo volume, José Frederico Marques: Direito Penal Econômico - Princípios sobre a Interpretação de suas Normas - Do Conceito de Monopólio, p. 478). Com isso, até mesmo o art. 74 da Lei 4.137/62, de aspecto mais regulativo e menos repressivo, ficava relegado a um mero instrumento de correção interpretativa nos julgados do CADE (v. Franceschini, ob. cit., Repertório Jurisprudencial, n.º 70, p. 73).
Em tudo isso há de se ter em conta, portanto, que a Constituição de 1988, ao disciplinar a livre concorrência, não apenas reforça a visão moderna do mercado, pressentida em 1962, mas é também uma resposta a uma segunda desorientação sofrida pela Lei 4.137 por força do intervencionismo estatizante e controlador da economia, sobretudo nos moldes da década de 70 e mesmo da década de 80, que atrelara a iniciativa privada às benesses (e ao comando) das políticas governamentais, gerando a franca, ostensiva e até oficial cartelização de preços, aliada a uma perversa cartorialização do mercado. Assim, a leitura dos dispositivos constitucionais vigentes tem de guardar a devida distância, tanto do que se refere a uma radicalização da "linguagem de finalidade" no tratamento do poder econômico abusivo, quanto de uma "administrativização" extensiva da livre iniciativa, conforme os desígnios da Emenda 1/1969 que procurava o sentido de sua legitimação na eficiência econômico-tecnocrática e quase a reduziu a um dado de manipulação dos planejamentos econômicos. Ou como diz Miguel Reale na obra citada (p. 21): "Tem-se dito que a Constituição atual não prevê a intervenção no domínio econômico. É lançar o dardo longe demais, contra a estrutura mesma da sociedade atual, sem o Estado intervencionista. O importante, porém, é saber como e quando essa intervenção se dá de maneira lícita. A intervenção no mundo econômico é referida, aliás, pela própria Constituição, no art. 149, que reza: "Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico...'" (grifado no original). Devemos reconhecer - conclui Reale - "que esta intervenção está implícita nos textos do Capítulo 1 do Título VII, e mais propriamente no art. 173...".
Saliente-se, destarte e inicialmente, que o princípio da livre concorrência, do modo como está inserido no art. 170 do Texto Constitucional, articula-se necessariamente com os demais. Note-se que, dos nove princípios da ordem econômica, apenas o segundo (propriedade privada) e o quarto (livre concorrência) estiram a corda na direção de um pleno e radical livre exercício da atividade econômica. Os demais dão-lhes a justa medida. Assim, a propriedade há de atender a sua função social (inc. III), a livre concorrência tem de ser posta a serviço do consumidor (inc. V), não deve agredir o meio ambiente (VI) nem favorecer desigualdades regionais e sociais (VII) ou impedir a busca do pleno emprego (VIII), sobretudo deve estar atenta às empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte (IX), isto sem olvidar que o primeiro deles é o princípio da soberania nacional (inc. I). Portanto, se é inegável que a liberdade negocial é principiologicamente assegurada pela Constituição, não menos verdade é que a concorrência está longe de ser considerada um fato econômico cuja disciplina jurídica só pudesse exercer-se externamente, nos termos do direito privado e do direito público, administrativo e penal, e jamais quanto à sua própria estrutura, nos termos do direito econômico.
Isto, evidentemente, não torna a Constituição brasileira de 1988 uma constituição intervencionista, por exemplo, à maneira da Carta de 1967/69. 0 que se quer expressar é que não é possível tratar a concorrência nos moldes do mercado oitocentista e a fortiori de um liberalismo individualista, incapaz de entender o disposto no art. 173, § 4.°, por isolá-lo de outros dispositivos de extrema relevância.
O mencionado dispositivo manda que a lei reprima "o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário de lucros". Ao contrário da Constituição anterior, que usava a fórmula "caracterizado pela dominação de mercados" etc., a Lei Magna retoma a linguagem de finalidade, o que, aparentemente, reforça a sua estrita natureza penal. Em consequência, pareceria que o constituinte conferiu à matéria um tratamento cerrado, restringindo o papel do Estado a de um simples vigilante - "gendarme" - do mercado, cujos conflitos ou têm relevância pública ou têm relevância privada, cabendo, de modo estanque, os primeiros ao Direito Público (e aí a função de órgãos como o CADE) e os segundos, ao Direito Privado (e, então, a participação direta do Judiciário, sem necessidade de passar por instâncias administrativas).
A Constituição, porém, não trata da defesa da concorrência num contexto de disposições prescritivas estanques. Note-se, inicialmente, que o § 4.° do art. 173 está inserido num dispositivo cujo capuz cuida da "exploração direta de atividade econômica pelo Estado". Os §§ 1.º, 2.º e 3.º tratam de delimitar particularmente a atividade da empresa pública e o § 5.° determina que a lei, "sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-se às prescrições compatíveis com sua natureza nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular" (grifei). Em suma, o art. 173, como um todo, que cuida da articulação do Estado na economia, estabelece normativamente uma concepção global do mercado, no qual concorrem empresas públicas e privadas (§ 3.º "A lei regulamentará as relações da empresa pública com o Estado e a sociedade"), num contexto abrangente ("ordem econômica e financeira" e "economia popular" - § 5.º'). Nesse contexto é que se insere a legislação de Direito Econômico, cujo objetivo é cuidar para que o desenvolvimento econômico ou técnico do sistema mercadológico não seja comprometido por comportamentos dos agentes que possam levar a distorções, como o impedimento do afluxo de recursos a certos setores ou o bloqueio da possibilidade de expansão de concorrentes ou a mera afirmação da prepotência econômica que, sem maiores justificações, seja manifestação de um poderio arbitrário, individualista e egoísta.
Nesse contexto, a Constituição, que declara o mercado interno como patrimônio nacional (art. 219), exige do Estado, como agente normativo e regulador da atividade econômica (art. 174), o exercício da função de fiscalização. Dentro desta concepção global, a repressão aos abusos do poder econômico está referida a atos da vida econômica usual (submetendo-se todos os agentes ao regime próprio das empresas privadas, diz o § 1.º do art. 173) - atos que não são diferentes a ponto de serem classificados em virtude de uma natureza distinta (cf., José Frederico Marques,ob. cit., p. 477). Portanto, os conflitos por eles eventualmente provocados podem e devem ser tratados por distintas legislações, não tendo cabimento distribuí-los de modo estanque pelos diversos ramos jurídicos. O mesmo ato e mesmo conflito pode ser enquadrado corno concorrência desleal nos termos da legislação penal, corno ilícito civil sujeito às indenizações respectivas ou como infração administrativa a ser apreciada pelo INPI. É o ponto de vista da concepção global do mercado como patrimônio nacional (não patrimônio do Estado) que qualifica a competência da SDE ou do CADE.
Ora, deste ponto de vista da concepção global do mercado, própria da Constituição de 1988, a linguagem de finalidade não tem a mesma natureza que teve no passado. O dispositivo constitucional não exclui a possibilidade, em legislação própria, de punição de atos praticados contra a ordem econômica em termos penais e, portanto, submetidos à tipicidade que lhe seja própria. Mas, em termos de uma legislação de defesa da concorrência, o que está em questão não é uma estrita responsabilidade subjetiva, de tal modo que, como dizia Frederico Marques à luz da Constituição de 1946, para constituir-se fato indiciariamente delituoso fosse necessário que a conduta tivesse sido "integrada ou completada pelos elementos subjetivos e normativos do tipo" (ob. cit., p. 478). Esta é a concepção atrelada ainda à visão atomística e fluida do mercado, que reduzia a infração de direito econômico a relações interindividuais. A Constituição Brasileira atual, ao contrário, está antes preocupada não exclusivamente com um ato individual, consciente e intencionalmente predisposto a ferir a ordem econômica e a livre concorrência, como se o agente deliberadamente atuasse naquela direção, mas com a repercussão destes atos no mercado-patrimônio nacional. Este é o novo sentido da linguagem de finalidade em seu contexto contemporâneo. "Abuso de poder econômico que vise à dominação de mercado, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros" é expressão que não designa apenas uma qualidade do agente, mas uma qualidade do ato. Se o agente exorbita do seu poder econômico, dependendo do caráter deliberado de sua conduta, ele pode sujeitar-se à lei penal ou à lei civil, obrigando-se à multa penal ou à indenização civil. Porém, mesmo sem agir (subjetivamente) de modo deliberado (dolo direto), seu ato abusivo pode (ou não) repercutir na livre concorrência, distorcendo-a. Se não quisermos falar em responsabilidade objetiva, teremos que falar em dolo eventual, devendo a lei presumir que o agente, ao praticar atos negociais, assumiu como possíveis eventuais consequências lesivas para o mercado.
Em suma, para a Constituição de 1988, a inserção da livre concorrência como princípio da ordem econômica trouxe à concepção de abuso do poder econômico o sentido de uma infração contra o mercado, não sendo mais radicalmente decisivo os atos abusivos serem qualificados na forma de um ato de um agente contra outro agente. Andou bem neste sentido, a Lei 8.158/91, ao constituir como infração à ordem econômica qualquer acordo, deliberação conjunta de empresas, ato, conduta ou prática tendo por objeto (possibilidade do dolo direto) ou produzindo o efeito de (dolo eventual) dominar mercado de bens ou serviços, prejudicar a livre concorrência (mercado como patrimônio nacional objetivamente considerado) ou aumentar arbitrariamente os lucros, ainda que os fins visados não sejam alcançados. Esta última fórmula mostra claramente que o cerne da infração não está só na intencionalidade dirigida, predatória contra um concorrente, mas na sua significação objetiva para o mercado. Por isso, e com razão, determina, no art. 22, que, na apuração dos atos ou atividades previstos na Lei, a autoridade leve em conta, primordialmente, os efeitos econômicos negativos produzidos no mercado, ainda que não caracterize dolo ou culpa dos agentes causadores, dando um passo, corretamente, na direção da responsabilidade objetiva. O mercado aqui, como na Constituição, não é, obviamente, o conjunto dos agentes, mas o conjunto das ações econômicas e suas relações.
Isto posto, podemos enfrentar os problemas interpretativos decorrentes de alguns dispositivos da legislação brasileira de proteção à livre concorrência.
O primeiro pede o entendimento dos incs. IX e XVI do art. 3.° da Lei 8.158/ 91. O inc. IX dispõe: "dificultar ou romper a continuidade de relações comerciais de prazo indeterminado, com o objetivo de dominar o mercado ou causar dificuldades ao funcionamento de outra empresa".
O texto fala em dificultar ou romper. Portanto, refere-se não apenas a uma interrupção (romper), mas também à simples criação de dificuldades. Não se trata de quaisquer dificuldades, mas daquelas que levem a outra parte a um constrangimento, isto é, conduzam a outra parte a um rompimento, pela impossibilidade de manutenção das relações. Dificultar, portanto, significa uma forma maliciosa de atuar, de modo a dar a impressão de que não se quer romper, pois o rompimento acaba vindo do outro lado. Romper, por sua vez, tem o sentido forte de partir, dilacerar, quebrar, despedaçar, dividir com violência (Caldas Aulete, Dicionário Contemporâneo de Língua Portuguesa, v. 5.º, verbete romper). Rompimento, assim, é diferente de distrato, que ocorre por vontade ou mútuo consenso, revogação, causa legal, resolução, nulidade, rescisão, morte ou vencimento de prazo. 0 rompimento tem a nota da violência, da unilateralidade arbitrária, à qual falta plausibilidade ou justa causa (ver, a propósito, a Jurisprudência n. 402 do CADE, in Franceschini, ob. cit., p. 355).
As relações comerciais referidas devem ser por prazo indeterminado. O legislador não colheu, pois, as relações por prazo determinado, que também podem ser rompidas. Neste caso, porém, sofre a parte atingida, não o mercado. Por isso que se protege a continuidade regular, o cotidiano permanente das relações comerciais. Vê-se que o objetivo foi assegurar a estrutura do sistema, que preside a relação entre as ações: o mercado como um contínuo. A legislação não está meramente preocupada com o relacionamento interindividual, intermitente e ocasional, mas com a sua repercussão em termos de regularidade de funcionamento do mercado. Este é o bem protegido.
A linguagem de finalidade está presente: com o objetivo de dominar o mercado ou causar dificuldades ao funcionamento de outra empresa. Trata-se de dolo eventual, o que não exclui o dolo direto nem a apreciação conforme o art. 22 ("ainda que não se caracterize dolo ou culpa dos agentes causadores"). São duas situações diferentes. Dominar o mercado pressupõe urna atividade que vise ao próprio mercado em que atua, operacionalmente, o agente. Causar dificuldades ao funcionamento de outra empresa significa uma repercussão indireta. Atinge-se uma empresa cujos objetivos operacionais estão em outro mercado. Ou seja, no primeiro caso, prejudica-se o concorrente. No segundo, um agente com o qual não concorre necessariamente, mas com quem mantém relações. Parece claro que esta segunda hipótese teve de ser explicitada porque dentro do mercado há diversos mercados e a defesa da concorrência não se reduz à proteção de concorrentes contra concorrentes.
Dominar o mercado é comandá-lo de uma posição privilegiada, de tal modo que os outros agentes econômicos se obriguem a pautar sua conduta por um interesse alheio, sem que isto beneficie a produção da riqueza e os consumidores. Causar dificuldades ao funcionamento não precisa ser impedir a consecução dos objetivos operacionais; basta que sua intensidade seja afetada e a qualidade diminuída. A outra empresa até funciona, isto é, atinge seu objetivo, mas funciona mal. Não por incapacidade ou por razões objetivas, mas pelo comportamento do outro. Deve haver um nexo causal entre o rompimento das relações ou sua dificultação e o mau funcionamento. Este nexo deve ser apreciado do ângulo do mercado (produção/consumo) e sua ocorrência detectada na alteração da posição relativa ocupada pela empresa afetada, conforme indicadores econômicos.
Como a linguagem de finalidade se refere à ação de um agente, é preciso levar em consideração o aspecto objetivo da sua situação. É necessário, pois, que o agente se encontre numa posição que lhe dê condições de cometer o ato. Esta posição tem de ser de poder econômico, pois a infração é por abuso de poder. A posição de poder é relativa, mas pode ser medida no contexto do mercado. Pode ser mais ou menos favorável à infração. É mais evidente, com esta consequência, quando é a situação de posição dominante.
O inc. XVI reza: "criar dificuldades à constituição, ao funcionamento ou ao desenvolvimento de empresas". Nesta formulação aparece também, com uma pequena diferença, na Lei 4.137/62 (art. 2.°, I, g). Nos termos da Lei 8.158/91, e em confronto com o inc. IX, é importante destacar a diferença. Na Lei 4.137/62 empresa está no singular. Na Lei 8.158/91, no plural. Esta diferença nos leva a dizer que o disposto na Lei 4,137,162 foi absorvido no inc. IX do art. 3.° da Lei 8.158'91. Como vimos, ali se cuida da repercussão dos atos no funcionamento de outra empresa. Já no inc. XVI, a infração está no comportamento do agente em face de um conjunto ou de uma empresa dentro de um conjunto. No inc. IX, outra empresa pode ser aquela que não é concorrente. No inc. XVI trata-se de um contexto de concorrentes. Daí o peculiar objetivo de dificultar a constituição e o desenvolvimento, além do funcionamento. Além disso, não é preciso que entre o agente e as empresas haja relações comerciais. Basta o contexto concorrencial. Mas é possível enquadrar neste inciso a conduta que atinge empresas de um outro mercado concorrente, com o qual o agente se relacione embora não concorra dentro dele, criando, indiretamente, um prejuízo à livre concorrência.
Estas observações nos levam a distinguir entre o abuso do poder econômico pelo rompimento de relações comerciais de prazo indeterminado e a mera ruptura contratual regulada pelo direito privado.
Já avançamos neste ponto no início deste trabalho. Convém, no entanto, acentuar alguns aspectos. A chamada resilição unilateral, exceção ao princípio da obrigatoriedade da convenção e do distrato que tem por efeito a exigência do mútuo consentimento, tem sido admitida em hipóteses excepcionais. No caso de contratos por tempo indeterminado, com base na presunção de que as partes não querem obrigar-se perpetuamente, há um direito de resilir, que se exercita mediante denúncia, com ou sem aviso prévio à outra parte. Não se exige que a denúncia seja justificada, embora a parte que venha a resilir injustamente fique obrigada a indenização por perdas e danos (cf., Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro, v. 3.°, S. Paulo, 1986, p. 130).
A resilição unilateral injusta não se confunde com o rompimento de que trata o inc. IX do art. 3.º da Lei 8.158/ 91. Enquanto na resilição injusta resguarda-se a autonomia privada, donde a indenização como consequência, no rompimento, com o objetivo de dominar o mercado ou causar dificuldades ao funcionamento de outra empresa, o princípio resguardado é o da proteção à onerosidade do investimento no interesse do mercado. Daí decorre, como consequência, a exigência de que uma relação seja continuada, mesmo contra a vontade de uma das partes, até que, no interesse da produção e circulação da riqueza, o custo do investimento, afetado pelo rompimento, seja absorvido. Ou seja, na ruptura contratual regida pelo direito privado, prevalece a autonomia da vontade, posto que a resilição unilateral, ainda que injusta, é mantida, resolvendo-se a injustiça em indenização. Na ruptura por abuso de poder econômico prevalece o interesse do mercado, onde o fator tempo é decisivo para que não se percam investimentos ineficientemente.
Isto, aliás, foi percebido por Miguel Reate que, na elaboração do Anteprojeto do Código Civil propôs, na disciplina da resilição unilateral de contratos por prazo indeterminado, que se inserisse uma regra de preservação da parte mais fraca contra o abuso do poder econômico, do seguinte teor: "Se, porém, dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos" (cf., Miguel Reate, "Abusos do Poder Econômico e Garantias Individuais" in Franceschini, ob. cit., p. 524). Esta regra explicita bem o objetivo do inc. IX do art. 3.° da Lei 8,158/91. Ocorre ali uma intervenção nas relações mercantis privadas em nome de um interesse maior do mercado concorrencial. Este interesse localizou-se, de um lado, nos custos de um investimento para a sociedade econômica como um todo, de outro, no razoável equilíbrio que deve presidir as relações mesmo quando são desiguais as forças. É por isso que, nesse caso, a ruptura não pode ser tratada apenas em termos de indenização por perdas e danos, solução que pode até satisfazer a parte prejudicada, mas deixar inatendido um interesse maior do mercado.
Por último, há de se perguntar pelas circunstâncias em que um rompimento pode converter-se em abuso. Tenha-se em conta, inicialmente, que o princípio da livre concorrência exige do Estado a imposição, por via normativa, de um comportamento dos agentes econômicos adequado ao interesse coletivo. De um lado, garante-se a liberdade econômica, isto é, o acesso e o exercício plenos de qualquer atividade lícita no mercado, de outro, tem-se em vista o atendimento à eficiência no uso de recursos escassos da comunidade e a justiça econômica. A liberdade econômica tem por efeito a possibilidade quantitativa e qualitativa de expansão das empresas, considerada como um valor positivo do mercado. Ela é o conteúdo de um direito subjetivo de o agente organizar e exercitar qualquer atividade voltada à obtenção de um justo rendimento de capital. No exercício desta liberdade, o mercado concorrencial admite e exige o uso estratégico das posições relativas de poder em que se encontram os agentes ou que são por eles conquistadas. Trata-se de posições de dominância geradas por diversos fatores como conhecimento técnico, detenção de direitos, prestígio, solidez financeira etc.
Ora, o exercício deste poder em condições de liberdade deve ser compatível com a eficiência e a justiça econômicas. A eficiência para aplicações em que eles sejam mais escassos, contribuindo assim para reduzir a escassez. A eficiência de que aqui se trata não é, pois, a eficiência na obtenção do beneficio individual, mas do mercado como um todo. Como diz Fábio Nusdeo ("Abuso do Poder Econômico", Enciclopédia Saraiva, v. 2.º/123) "para um vendedor monopolista poderá ser muito mais vantajoso restringir a produção e elevar os preços do que fazer o contrário, ou seja, aumentar a produção e deixar cair os preços". Deste modo, porém, "o sistema de preços não estará assinalando corretamente as necessidades da coletividade a serem atendidas, impedindo o afluxo de recursos a certos setores". Do mesmo modo, uma posição dominante de uma empresa (ou de um conjunto delas) pode "afetar, pelo mesmo processo, a possibilidade de expansão de outras firmas que dependam dos produtos oferecidos pela primeira, comprometendo o desenvolvimento econômico ou técnico de todo o sistema".
A eficiência, neste sentido, determina a distribuição mais racional dos recursos, isto é, sua distribuição a mais baixo custo, portanto, para o consumidor (cf., Alberto Pinheiro Xavier, "Repressão aos Abusos do Poder Econômico", in Curso de Direito Empresarial, S. Paulo, 1976, v. 3.°/80). Ou seja, repugna eticamente que os consumidores - e o processo produtivo não faz sentido sem o seu atendimento - sejam obrigados a suportar uma escassez relativa e a consequente alteração nos preços porque alguém quer alijar um parceiro do sistema. Fere-se um princípio de justiça econômica.
Pois bem, nestas circunstâncias podemos entender quando o rompimento de relações comerciais por prazo indeterminado pode converter-se em abuso. Se a mera resilição unilateral é possível e quando injustificada, gera direito a indenização, o rompimento referido é, na verdade, uma resilição unilateral abusiva, nos termos da defesa da concorrência, quando o uso estratégico do poder - situação de dominância - é incompatível com a eficiência e a justiça econômicas. O agente que detém uma posição de poder (pelas várias condições em que isto ocorre) age estrategicamente, não podendo imaginar-se que não meça cuidadosamente as consequências dos atos jurídicos que pratica. O art. 3.° da Lei 8.158/91, ao falar em "produzindo o efeito" presume que o agente econômico em, posição de poder, por exemplo: posição dominante, não pode deixar de assumir o risco da configuração do abuso ao praticar atos que ferem a eficiência e a justiça econômicas. Portanto, é pela circunstância de estar, numa relação econômica, colocado numa posição de poder (monopólio natural, oligopólio, detenção exclusiva de uma tecnologia etc.) que um simples ato de resilição unilateral pode configurar um abuso, pois a lei presume que o agente, assim posto, assume o risco, consentido previamente no resultado, caso este venha a ocorrer ou mesmo quando o efeito reste frustrado.
Há de se levar em consideração, porém, para melhor compreensão da questão, a regra constante do inc. IX do art. 3.° da Lei 8.158/91, em face do princípio da liberdade de contratar, O tema já foi discutido. Reitere-se, no entanto, um ponto relevante. A liberdade de contratar decorre da livre iniciativa. Os dispositivos constitucionais e legais sobre a repressão ao abuso do poder econômico, ao contrário do que possa parecer, não devem ser vistos como limitações à liberdade de iniciativa. Ao contrário, como bem viu Alberto Xavier (ob. cit., p. 87), eles são uma garantia a ela proporcionada. A repressão ao abuso só limita o abuso, pois este destrói o mercado concorrencial e onde isto ocorre não há mais liberdade.
Assim, será um equívoco contrapor liberdade de contratar e a qualificação, como infração, do rompimento das relações comerciais por prazo indeterminado. As disciplinas do direito privado e do direito econômico são distintas pelos seus objetivos, como se viu pela resposta ao quesito n. 2. Mas o direito econômico não toma abusivo o que o direito civil e comercial reconhece como Direito. Isto seria um contra-senso. O que ocorre com a coibição do abuso inerente ao rompimento de que fala o inc. IX do art. 3.° da Lei 8.158/91 é, pois, a garantia da liberdade de contrato, de distrato e até da própria resilição unilateral. O direito econômico, ao alcançar o poder de resilir unilateralmente, percebe o liame, não suspeitado do ponto de vista privado estritamente fechado em si, entre um exercício de direito e o seu abuso, isto é, abuso de direito. Miguel Reale (ob. cit., p. 524) nos diz, nesse sentido: "uma das diretrizes salutares será considerar, em natural ou necessária complementaridade, o abuso do poder econômico e o abuso de direito. São, como já salientei, conceitos jurídicos distintos, mas que, no plano efetivo da práxis, muitas vezes se combinam para atentar contra situações subjetivas merecedoras de amparo". E segue seu texto exemplificando justamente com a faculdade de resilir unilateralmente contratos por tempo indeterminado, no qual se demonstra "a coincidência dos dois abusos". Marca-se, nesse sentido, um último traço divisor, não menos importante, porém, entre o aspecto privado e o ângulo da lei de defesa da concorrência na análise da questão.
São Paulo, abril/1993.
Fonte: Revista dos Tribunais-Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas; ano 1; n.º 14;julho-setembro de 1993. Direito Econômico, Resilição unilateral de relações comerciais de prazo indeterminado e a lei de defesa da concorrência, pp.270-279;
Digitação corrigido por Sonia Silva Barros Dias.