Tercio Sampaio Ferraz Jr.
A pergunta da Folha:
Você acha que Sadam Hussein deve ser julgado como criminoso de guerra por um tribunal internacional?
Sim, minha resposta é sim, mas não incondicionada. Em princípio, se houver razões suficientes para uma denúncia e seu acabamento pela caracterização dos delitos, não só Sadam Hussein, mas qualquer ser humano, no exercício do poder político que ele desvirtue e perverta, merece ir a julgamento. Não me parece, portanto, que, de início, a questão deva ser recebida emocionalmente: só porque se trata do presidente iraquiano e não deste ou daquele outro.
Desde 1950 a comunidade internacional admite a existência de um direito penal internacional. O que significa a afirmação de um interesse público que não deve se confundir com os interesses nacionais, que são particulares. O interesse em questão não resulta, ademais, de uma somatória dos interesses estatais em termos das acomodações usuais em que o jogo de forças atua, tantas vezes, decididamente. É mais do que isso e sobrepaira a essas acomodações. Por isso nada deve ter em comum com a ideia de retaliação nem mesmo da comunidade, como um todo, contra o indivíduo que viola aqueles princípios. Neste sentido, uma ação penal pública-internacional não visaria à proteção de interesse de todos contra o interesse de um único, mas ao restabelecimento da justiça, enquanto harmonia interna da comunidade humana.
Quando se fala numa submissão de Hussein a uma corte internacional é possível que logo se argumente em termos do iníquo desequilíbrio entre os mais fortes e o mais fraco, de vingança, com óbvia má-fé, de vencedores contra perdedores. Estas considerações são corretas quando estão em conflito os interesses particulares das nações, quando está em jogo a medida das reparações de guerra, o restabelecimento econômico de uma situação prévia etc. No caso, porém, falamos de justiça contra o abuso extenso e desumano do poder, o que ocorre, por exemplo, quando um governante, ou quem quer que detenha parcelas deste poder, usa e dispõe do ser humano como um objeto supérfluo, que se substitui à mercê das necessidades de consumo. E quando isto ocorre, não há fins que possam justificar os meios, nem diferenças econômicas, sociais ou culturais que funcionem como atenuantes. Assassinar membros de um grupo social, submeter um grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física ou mental, em parte ou totalmente, não são delitos contra o interesse coletivo dos Estados, mas atingem a própria humanidade.
Não se deve olvidar, acima de tudo, que o exercício do poder público porta o vírus da tentação da onipotência, cuja consequência perversa é a prepotência. O julgamento de crimes executados no exercício do poder, no plano internacional, nem sempre conduz a resultados efetivos. Mas, mesmo assim, talvez se constituísse num freio à irrazão de Estado e um correto encaminhamento do princípio de que a guerra deve ser proscrita na consciência do gênero humano.
Fonte: FOLHA DE S. PAULO – 02.03.1991