Tercio Sampaio Ferraz Jr.
NIKLAS LUHMANN é, indubitavelmente, um dos mais interessantes autores que vêm se ocupando da sociologia do direito nos últimos quinze anos. Em confronto com a produção mais difundida, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, seu enfoque empírico do fenómeno jurídico se distingue dos demais ao menos por três razões básicas. Em primeiro lugar, porque afronta de modo explícito a questão teórica da definição do direito, elaborada já no presente volume e aperfeiçoada em trabalhos posteriores. Em segundo lugar, porque propõe uma análise dos problemas precípuos da sociologia do direito a partir de uma perspectiva unitária e bastante original. Em terceiro, porque amplia esta perspectiva não só dentro de uma concepção global da teoria sociológica mas também de um ângulo epistemológico e até de uma filosofia geral.
Luhmann concebe a sociedade como um sistema estruturado de ações significativamente relacionadas que não inclui, mas exclui do sistema social o homem — concreto que passa, analiticamente, a fazer parte do seu mundo circundante. Ou seja, a conexão de sentido que liga as ações do sistema social não coincide com a conexão de sentido das ações do ser humano concreto. Homem concreto e sociedade são um para o outro, mundo circundante, sendo, um para o outro, complexo e contingente. O homem é para a sociedade e esta para aquele um problema a resolver. Apesar disso, ambos são de tal modo estruturados que possam coexistir. Na verdade, o homem concreto precisa da sociedade para viver, embora isto não queira dizer que ele faça parte dela. Segue-se daí que a juridicidade das relações inter-humanas não é dedutível da natureza humana. O direito é visto, então, como uma estrutura que define os limites e as interações da sociedade. Como estrutura, ele é indispensável, por possibilitar uma estabilização de expectativas nas interações. Ele funciona como um mecanismo que neutraliza a contingência das ações individuais, permitindo que cada ser humano possa esperar, com um mínimo de garantia, o comportamento do outro e vice-versa.
Para se ter uma ideia de como funciona esta concepção de Luhmann, podemos imaginar uma situação entre dois indivíduos que trocam entre si, por exemplo, tijolos por madeira. Não é impossível prever-se que esta troca pudesse ser realizada sem que o direito nela interviesse como estrutura. Quando, porém, começamos a pensar nas contingências que poderiam afetar as expectativas recíprocas dos trocadores, veremos que há uma série de fatores que complicam a situação ad infinitum. Para que haja um mínimo de garantia, é preciso que as partes possam ter uma relativa certeza de que o combinado agora prevalecerá no futuro. Não só pela mutabilidade das opiniões e desejos, mas também das cintingências biofísicas (alguém pode morrer antes de completada a transação), o negócio está sujeito variações imprevisíveis no tempo. Contra esta contingência temporal que afeta as expectativas recíprocas, é o estabelecimento de normas que irá dar a elas a garantia requerida. Normas, segundo Luhmann, garantem as expectativas (mas não o comportamento correspondente) contra desilusões. Assim, estabelecido por via contratual que o negócio será realizado dentro de 30 dias, respondendo a parte inadimplente pelos prejuízos etc., fica garantida a expectativa de cada um contra o comportamento desiludidor do outro. As normas não podem evitar as desilusões (por exemplo, que os tijolos não sejam entregues), mas garantem a expectativa, permitindo que, apesar dos fatos contrários ao que se esperava, a parte prejudicada mantenha, sob protesto, o seu ponto de vista. Normas, nestes termos, são expectativas de comportamento, garantidas de modo contrafático. Normas dão às expectativas duração.
Mesmo com a celebração de um contrato no sentido de norma entre as partes, novas contingências poderiam ser previstas. Uma delas seria a interposição de outra norma, de fora, que provocasse uma reviravolta na expectativa garantida. Qual delas prevalece, em caso de dúvida? Aqui entra um segundo mecanismo de controle das contingências e que se refere à possibilidade de garantir uma expectativa normativa contra a outra. Para obtê-la, temos que supor que os outros, aqueles que não participam do negócio, apoiam isto ou aquilo. Segundo Luhmann, os mecanismos sociais que permitem esta suposição, isto é, que permitem imputar a terceiros um consenso suposto que garante o sucesso provável de uma expectativa normativa contra as demais chamam-se instituições. E o processo referido de suposição se chama institucionalização. Assim, por exemplo, o contrato é uma dessas instituições que, no caso, garantiria o estabelecido entre as partes por acordo mútuo contra uma outra norma que uma das partes quisesse impor unilateralmente. A idéia de que o acordo é superior ao imposto unilateralmente, nos negócios privados, é uma instituição, isto é, conta com o consenso presumido de terceiros Em suma, através da institucionalização conferimos às expectativas o consenso de terceiros. ainda que, de fato, alguns não estejam de acordo.
No que diz respeito ao conteúdo das expectativas em jogo, pode haver , por último, um terceiro tipo de contingência. Que nos garante que os tijolos, objeto da troca, sejam, na intenção de ambas as partes, a mesma coisa? De qualidade superior ou inferior, na hora de se concretizar a troca, tijolos e madeira podem desiludir as expectativas quanto ao seu conteúdo. Para enfrentar esta terceira contingência Luhmann se refere aos núcleos significativos, isto é, centros doadores de sentido dotados de garantia relativa. Por exemplo, o dono dos tijolos confia pessoalmente no dono da madeira. A pessoa funciona como centro doador de sentido à troca a ser realizada em termos do conteúdo daquilo que se espera. Ou se confia no dono da madeira que é um comerciante respeitado, caso em que o núcleo significativo é o papel social exercido. Ou, caso nem pessoa nem papel sejam conhecidos, se confia na equidade ou na justiça que devem prevalecer, caso em que o núcleo significativo é um valor. Os núcleos são mais ou menos abstratos, portanto mais ou menos confiáveis. Quanto mais abstraio, mais extenso é o âmbito de sua atuação, menos confiável é concretamente e vice-versa.
Normas, instituições e núcleos significativos não são mecanismos congruentes entre si. Nem sempre normas são adequadas a instituições e estas a valores ou pessoas e assim reciprocamente. Por isso Luhmann entende, afinal, que o direito é uma generalização congruente e dinâmica entre eles, possibilitando, socialmente, uma imunização simbólica de certas expectativas contra os fatos, em termos de se poder atuar de modo indiferente ao que realmente acontece ou venha a acontecer — indiferença controlada (Luhmann, Rechtssoziologie, Reinbeck bei Hamburg, 1972. vol. l, pag. 94).
Note-se que, neste esboço de concepção do direito que resumimos para o leitor, estão pressupostas algumas categorias teóricas fundamentais. A primeira delas é a complexidade. Para entendê-la é preciso explicar duas outras, a de sistema e a de mundo circundante. Isto porque, lembremos, a sociedade é um sistema e o homem concreto faz parte do seu mundo circundante.
Pois bem, sistema é para Luhmann um conjunto de elementos delimitados segundo o princípio da diferenciação. Os elementos, ligados uns aos outros, excluem outros elementos do seu convívio, formam em relação a estes, um conjunto diferenciado. Todo sistema pressupõe, portanto, um mundo circundante com o qual se limita. O mundo é, por hipótese o que não pertence ao sistema. Ora, se o sistema é um conjunto estruturado, o mundo é, em relação a ele, complexidade, isto é, um conjunto aberto e infinito de possibilidades. Ou seja, todo sistema é uma redução seletiva de possibilidades em comparação com as possibilidades infinitas do mundo circundante. Como as possibilidades selecionadas do sistema podem ou não ocorrer, diz-se que o sistema é sempre contingente. Aquilo que garante o sistema contra a contingência das possibilidades escolhidas é a estrutura do sistema. Nestes termos: a sociedade é um sistema de interações sempre ameaçado pela contingência; a sociedade escolhe interações baseadas, por exemplo, na reciprocidade, mas o indivíduo concreto, que faz parte do mundo circundante, introduz na sociedade a contingência do seu arbítrio. Aí aparece o direito como uma das estruturas sociais que garantem as expectativas sociais contra a contingência a que estão sujeitas (Rechtssoziologie, cit. I — 31).
A questão básica do presente volume, que ora se apresenta ao leitor, se resume, assim, em saber-se em que sentido se pode chamar esta estrutura — o direito - de legítima.
O tratamento que dá Luhmann ao problema da legitimidade se põe no terreno puramente fático. Uma estrutura jurídica é para ele legítima na medida em que é capaz de produzir uma prontidão generalizada para aceitação de suas decisões, ainda indeterminadas quanto ao seu conteúdo concreto, dentro de certa margem de tolerância.
A posição de Luhmann se insere, até certo ponto dentre as chamadas concepções decisionistas da legitimidade. Normas jurídicas concebidas como decisões só podem ser fundadas em outras decisões, havendo, então, uma decisão última que estabelece inapelavelmente a legitimidade da série. Como as decisões normativas são proposições deônticas, de dever-se, a elas não cabe a alternativa verdadeiro/falso Com isso, a possibilidade de se fundar a legitimidade em valores supremos é rechaçada. Isto porque, na série regressiva das decisões, sempre topamos com um plurarismo de valores que não se fundam em verdade, mas são. ao contrário, atos de crença, admitidos como fatos.
Luhmann. contudo, é um decisionista mais arguto. Sem eliminar o caráter decisório da legitimidade, ele evita o problema do regresso a uma decisão última. no início da série, mostrando que a legitimidade não está ali, mas no próprio processo que vai do ponto inicial do procedimento de tomada de decisão até a própria decisão tomada. É. assim, o procedimento mesmo que confere legitimidade e não uma de suas partes componentes.
Procedimentos são para ele sistemas de ação, através dos quais os endereçados das decisões aprendem a aceitar uma decisão que vai ocorrer, antes da sua ocorrência concreta. Trata-se de sistemas no sentido acima mencionado, pelos quais os diferentes motivos a que alguém possa sentir-se obrigado ou não a aceitar decisões são reduzidos e especificados num limite de alta probabilidade, de tal modo que o endereçado da decisão se vê na contingência de assumi-la, sem contestá-Ia, ainda que lhe seja, no caso, desfavorável.
Luhmann analisa, basicamente, três procedimentos jurídicos: o judiciário, o legislativo e o administrativo. Nenhum deles é entendido no sentido usual do direito processual, mas com o significado amplo de sistema empírico de ações sociais, controlados por regras jurídicas, mas também por componentes extra-jurídicos.
No procedimento judiciário, a confrontação direta entre os contendores, observa Luhmann, é reduzida e enfraquecida. Isto é obtido pela criação de lealdades (entre juizes, promotores, advogados e mesmo entre as partes) que se cruzam e não deixam ver quem é realmente contra e a favor: em tese, todos buscam uma decisão, Na verdade, o estabelecimento de instâncias de decisão retira e confere a posição de opositor para outras pessoas, criando-se condições para que os oponentes não decidam por si próprios, mas através dos papéis que vão assumindo no correr do procedimento: papel de parte processual decorrente, de autos e réu etc. A importância disto está em que o efeito obtido é o de limitar o conflito, impedindo-se a sua generalização. Assim, a maior discrepância entre os contendores, no início do processo, é controlada aos poucos, criando-se condições para a aceitação de uma decisão final. Note-se, porém, que a função legitimadora do procedimento não está em se produzir consenso entre as partes, mas em tornar inevitáveis e prováveis decepções em decepções difusas: apesar de descontentes, as partes aceitam a decisão. Um comportamento contrário é possível, mas a parte que teima em manter sua expectativa decepcionada acaba pagando um preço muito alto. o que a força a ceder. Neste sentido, a função legitimadora do procedimento não está em substituir uma decepção por um reconhecimento, mas em imunizar a decisão final contra as decepções inevitáveis.
Esta técnica de neutralizar as decepções é a mesma no caso das decisões legislativas e administrativas. O que muda é o sistema de procedimento. No caso do legislativo, trata-se de instrumentos macro-sociológicos, como a eleição, as discussões parlamentares que visam, justamente, a produzir o efeito de neutralização. No caso da administração, o processo se repete, com a diferença de que o decididor administrativo encontra meios para tomar suas decisões como se não houvesse decepcionado, remetendo suas condições de possibilidade ao legislativo e ao judiciário.
Em conclusão: para Luhmann, sendo a função de uma decisão absorver e reduzir insegurança, basta que se contorne a incerteza de qual decisão ocorrerá pela certeza de que uma decisão ocorrerá, para legitimá-la. Em certo sentido. Luhmann concebe a legitimidade como uma ilusão funcionalmente necessária, pois se baseia na ficção de que existe a possibilidade de decepção rebelde, só que esta não é, de fato, realizada. O direito se legitima na medida em que os seus procedimentos garantem esta ilusão.
Fonte: Apresentação e revisão do livro Legitimidade pelo Procedimento, de Niklas Luhmann, UnB; Brasília: 1980, pp. 1-5.