Tercio Sampaio Ferraz Jr
1. INTRODUÇÃO: DIREITO E VALOR
Não se pode negar, como nos diz Miguel Reale (O Direito como Experiência, São Paulo, 1968, p. 140), que o trabalho do jurista deve ser qualificado como dogmático, o que significa que a Ciência do Direito não pode prescindir de "modelos normativos" postos heteronomamente, podendo a sua validez ser contestada, em virtude de um vício de forma. O dogma implica, de fato, a sua posição em termos de uma "interferência decisória do Poder". Esta decisão, porém, se de um lado manifesta um momento de estabilidade e de certeza do direito, implica, por outro, uma "opção axiológica" que "lateja no bojo da regra jurídica positivada" (Reale).
Uma consequência desta estabilidade instável pode ser observada, por exemplo, na própria argumentação jurídica. Sua estrutura, como assinala Viehweg, revela caracteres peculiares, na medida em que os conceitos e proposições que compõem o seu discursa tomam significação na sua referência a aporias fundamentais, como é o caso do valor justiça (Topik und Jurisprudenz, München, 1965, p. 69). A argumentação chamada dogmática pode ser descrita como um pensamento com base em opiniões, no sentido de que ela se atém a uma opinião fixa (dogma), colocando-a fora de discussão, ao mesmo tempo, porém, que a articula de modo variado. Juridicamente isto se dá com o fito de garantir, para um grupo social determinado, um comportamento o mais possível livre de perturbações. Esta "função social" (Viehweg) da argumentação dogmática exige, de um lado, um cerne fixo e estável, que não pode ser discutido (dogma fundamental), de outro, uma flexibilidade de pensamento em torno deste cerne (interpretabilldade).
Existe aqui um dualismo patente. De um lado, reconhecemos que o direito expressa um processo de estabilização de expectativas que não podem ser instáveis, que têm, ao contrário, de ser pressupostas como invariantes. Afirmar um direito instável é tão absurdo como construir com pedras fluidas. Por outro lado, sabemos também, que desde o momento em que, por uma razão ou outra, haja desacordo quanto à solução normativa de um conflito, surge o problema da regra justa. A questão da justiça introduz na estrutura do direito um momento de flexibilidade.
À luz do que vimos dizendo, temos de reconhecer que se o direito é posto prevalecentemente como norma, esta não pode deixar de ser considerada como uma solução ou composição tensional que, no âmbito de certa conjuntura histórico-social, é possível atingir-se entre "exigências axiológicas" e um ''dado complexo de fatos" (Reale, op. cit. p. 201). Todo direito implica, neste sentido, um momento de estimativa, uma opção de natureza axiológica, uma referência constitutiva de sua estrutura a uma ordem de valor. Em que consiste, porém, esta dimensão valorativa? Ou ainda, qual a estrutura da chamada dimensão axiológica do direito?
2. VALOR: PROGRAMA VALOR ATIVO E CAMPO VALORATIVO
Valores, por exemplo, segurança, liberdade, riqueza, patriotismo, são símbolos de preferência para ações indeterminadamente permanentes. A este nível de abstração, eles podem ser entendidos, e, de fato, afirmados sem inibições, como fórmulas integradoras e sintéticas para a representação de consenso social. Neste sentido, compreendemos que as normas jurídicas constituam "modelos operacionais" (Reale), isto é, modelos que não são meros esquemas ideais pois a normatividade que eles expressam abstratamente se articula em "fatos" e "valores", resultando de um trabalho de aferição dos dados da experiência, tendo em vista a determinação de um tipo de comportamento possível e também necessário à sobrevivência do sistema social. Por outro lado, é preciso, porém, assinalar que, justamente quando ocorre a necessidade de estabelecer-se uma ação ou projeto de ação, devemos decidir sobre um conflito de valores: para isso, entretanto, não há, ao mesmo nível de abstração supra mencionado, nenhuma regra de validade genérica. Isto significa que se podemos abstrair pontos de vista valorativos, o mesmo não é possível quanto às relações, hierárquicas ou circulares, entre os valores. Neste sentido, os valores inerentes à norma jurídica não são dados (Gegebenheiten), nem mesmo tarefas (Aufgegebenheiten), absolutos, mas postulados.
A palavra "postulado" não significa, desde logo, relativismo axiológico, mas quer dizer que os valores não são entidades independentes, que permitem uma expressão unívoca, mas fatores que se determinam — instavelmente — num processo global. Neste processo, valores primariamente postulados podem sofrer mutações, já pela modificação nas suas condições de "realizabilidade", já pelo aparecimento de novos valores. Isto implica, como se pode imaginar, a possibilidade de proliferação dos valores e o consequente aparecimento de contradições e conflitos em larga escala.
O momento valorativo representa, portanto, de início, para o direito, um fator de instabilidade ou de indeterminabilidade. O valor básico da vida jurídica, conforme se reitera, é a justiça. Ora, a questão da justiça introduz na estrutura da norma uma dupla relatividade. A ideia de uma regra justa implica, de um lado, um problema de ajustamento a um estado de coisas aceito, a instituições fundamentais que constituem a base da vida social cotidiana. De outro, porém, pode significar a ânsia de superação de um estado de coisas, fundada em critérios que transcendem aquelas instituições. Estes dois aspectos, que A. Brecht (Teoria Política — Rio de Janeiro, 1965, vol. I, p. 197) refere como "ideia tradicional e transtradicional de justiça", nos permitem distinguir, no próprio conceito de valor, dois momentos funcionais diversos que desejamos denominar programa valorativo e campo valorativo.
Programa e campo valorativo constituem, a nosso ver, componentes básicos da estrutura da dimensão axiológica do direito. O Programa valorativo deve ser entendido como uma delimitação da realidade (dimensão fática), através de um projeto de sentido estimativo, de tal modo que se estabeleça um recorte no volume dos dados reais, para os quais a norma jurídica é determinante e que, deste modo, se tornam determinantes também para ela. O campo valorativo, por sua vez, não se confunde com a dimensão fática do direito entendida como os dados do mundo circundante aos quais se refere um conjunto de qualificações. Consiste ao contrario, apenas no âmbito do real possível que constitui o conteúdo material da norma. Assim, quando falamos em norma justa, ou estamos pensando no programa valorativo, enquanto projeto modificativo e demarcatório da realidade visada, ou no campo valorativo, enquanto ajustamento à realidade visada.
Se nos é permitida uma comparação, tomando como exemplo o modelo cibernético de informação, diríamos que a dimensão axiológica do direito tem um canal de entrada (input) — campo valorativo — e um de saída (output) — programa valorativo. Assim, quando falamos que o valor, no direito, constitui prisma, critério de apreciação da dimensão fática, sobre a qual ele incide e na qual se realiza, devemos distinguir aí dois movimentos distintos. Enquanto realização, o valor sofre um processo seletivo externo na "recepção de informações". Enquanto apreciação, corresponde ele a um processo seletivo interno de "elaboração de informações". Pois bem: o processo seletivo externo constitui o campo valorativo, o processo seletivo interno constitui o programa valorativo. Por último, estes processos seletivos equivalem ao chamado processo de concretização dos valores.
3. MODOS DE CONCRETIZAÇÃO DO VALOR: CONCRETIZAÇÃO PINALÍSTICA E CONDICIONAL
Toda concretização de valor, é nossa tese, consiste num processo seletivo. Valores, como dissemos, são fórmulas integradoras e sintéticas que não constituem um mundo abstraio e válido em si — mundo dos valores —. mas são necessariamente dependentes: valores "valem-para" no sentido de que se dirigem para alguma coisa (cf. o neokantiano Emil Lask e sua "Hingeltungstheorie" em nossa tese "Die Zweidimensionalität dês Rechts ais Voraussetzung für den Methodendualismus von Emil Lask", Meisenheim/Glan, 1970, p. 137 ss.). Os valores jurídicos "valem-para" os comportamentos sociais em termos desse processo de seleção que chamamos de concretização.
A moderna teoria dos sistemas (cf. Luriimmn: Soziologie dês politischen Systems – em "Soziologische Aulklürung", Opladen 1971. p. 162 ss.) concebe o sistema social como uma estrutura complexa. "Complexidade" é entendida como o conjunto dos comportamentos possíveis, como a existência de alternativas, possibilidades de variação, conflitos, ausência de consenso, donde se segue que a estrutura social "institucionaliza", em certos limites, contradições, mudanças e a possibilidade de sua ocorrência. A "complexidade" não pode, entretanto, em princípio, ser mais ampla que a própria capacidade do sistema em reduzi-la. Esta capacidade de reduzir o âmbito das possibilidades, mas não de acabar com elas, denomina-se "seletividade". Neste quadro, valores são fórmulas seletivas que organizam um campo de possibilidades. Quando a partir delas, uma é escolhida pela participação decisória do Poder, entendido como "seletividade fortalecida do sistema" (Luhmann), e esta seleção é aceita por outros como premissa de suas próprias decisões, temos uma concretização jurídica do valor. Embora a concretização repouse apenas numa decisão, ela permanece visível na sua "seletividade". Exatamente este permanecer visível de outras possibilidades é que funciona como motivação: a aceitação por parte de outros ocorre à vista de alternativas permanentemente estabilizadas, que constituem, para todos, uma situação incômoda. As possibilidades de concretização no sistema jurídico, onde a conexão de "complexidade" e "seletividade" é bastante aguda, dependem, assim, de como as alternativas, que devem ser evitadas, se deixam combinar umas com as outras ou umas contra as outras, mantendo-se a sobrevivência do sistema como condição da decisão. Com isto. a extensão e os modos de concretização variam conforme a "complexidade" da totalidade do sistema, isto é, o número das suas possibilidades.
Ora, conforme o modelo "programa-campo valorativo" através do qual pretendemos representar a estrutura da dimensão axiológica do direito, existem para a concretização dos valores duas possibilidades limite: ou ela se dá a partir do campo valorativo (input) ou do programa valorativo (output). Neste caso (output). o valor é posto como invariante e utilizado como critério para a seleção dos diferentes comportamentos. O valor, então, é estabelecido como fim e o modo de concretização pode ser denominado finalístico. No outro caso (input), um comportamento ou um conjunto deles é estabelecido como invariante de tal medo que, sempre que ele ocorra, um valor determinado ou determinável aparece para justificá-lo. Temos aqui um modo de concretização que denominamos condicional. (Num sentido semelhante, referindo-se ao problema da "programação", Luhmann, op. cit., p. 191, nos fala em "Zweckprogramm" e "konditionales Programm"). Concretização finalística e condicional constituem modos, "tipos" fundamentais que delimitam nos seus extremos as possibilidades de concretização. Ambas, entretanto, combinam-se, na verdade, de maneira múltipla, o que torna a concretização um processo bastante complexo.
De fato, estes dois modos típicos nunca se dão de maneira "pura". Um sistema jurídico dado não pode jamais prescindir de um deles em favor do outro. Contudo, é possível constatar-se a predominância deste ou daquele. No direito moderno, das democracias ocidentais, nota-se, por exemplo, a ocorrência mais frequente de concretizações condicionais, que articulam determinadas ou determináveis consequências jurídicas a situações de fato definidas: isto é, sempre uma situação possa ser verificada, uma decisão ou ação correspondente deve ocorrer. Esta predominância, que não deve ser entendida como característica essencial do fenômeno jurídico, explica-se pelo processo de "positivação" (normas jurídicas valem por força de decisão) que sofre o direito em nossos dias e pela sobrecarga das responsabilidades burocráticas, o que exige técnicas de planejamento da atividade jurídica que possibilitem o estabelecimento relativamente centralizado e relativamente preciso da correlação "se... então" e a delegação de sua execução, no sentido de que quem pode demonstrar o "se", pode provocar o "então". Observa-se, neste caso, uma subordinação da concretização finalística à condicional, de modo que, através dela, a massa dos conflitos axiológicos pode ser mais eficientemente reduzida.
Esta predominância, entretanto, não pode dar-se de maneira absoluta, sob pena de o sistema perder sua própria autonomia. Na verdade, a estrutura da dimensão axiológica do direito revela, em princípio, uma certa ausência de coordenação e simetria nos modos de concretização, o que, aliás, é condição da vida jurídica. Se a concretização condicional reforça a estabilidade do sistema, ocorrendo, sobretudo, nos chamados "estados de direito", onde o valor exerce mais uma função justificadora, o que permite, a organização da vida jurídica num esquema mais ou menos estável de regras e exceções, a sua predominância pode, contudo, desencadear processos não controláveis de concretização finalística, que bem expressam as insatisfações dos movimentos estudantis e, grosso modo, das novas gerações em todo o mundo. Por outro lado, a concretização finalística, própria dos "estados policiais", dos socialismos planificados ou de estados em que o desenvolvimento industrial se tornou exigência forçada, pode provocar, se predominante, uma série de dificuldades, desde que a mera fixação de fins para a ação nunca ocorre de modo unívoco, mas funciona, ao contrário, apenas como orientação necessariamente elástica para a comparação e opção entre meios apropriados, não podendo a prescrição ou proibição de certos fins constituir um juízo merecedor de confiança para a ação.
Da nossa exposição decorre, como se vê, que a dimensão axiológica do direito tem, em principio, uma estrutura caracteristicamente instável, já pela flexibilidade significativa dos valores, já pela ocorrência não coordenada e assimétrica dos modos de concretização, o que quer dizer: a concretização dos valores pressupõe, de um lado, a flexibilidade significativa, de outro, é, ela própria, enquanto momento de determinação daquela significação, flexível e instável. Segue-se daí uma dupla flexibilidade e instabilidade, o que caracteriza a relação ambivalente da dimensão axiológica do direito em face da dimensão fática. Esta ambivalência condiciona, por sua vez, a participação decisória do Poder, enquanto "seletividade fortalecida", refletindo-se de modo peculiar, na dimensão normativa.
Dissemos, porém, anteriormente, que todo direito expressa um processo de estabilização de expectativa que não podem ser instáveis. Ora, os elementos constitutivos da dimensão axiológica do direito até agora aventados não parecem suficientes para esclarecer como isto se dá. Devemos reconhecer, portanto, a existência de outros recursos no interior mesmo da estrutura axiológica que expliquem aquela ocorrência. Quais são eles?
4. O PAPEL DA IDEOLOGIA NA ESTRUTURA DA DIMENSÃO AXIOLÓGICA DO DIREITO.
Sabemos que um sistema jurídico, numa situação concreta de decisão, tem de simplificá-la, referindo as relações conflitivas a determinadas possibilidades. Isto exige, para além dos dois modos de concretização, um processo de neutralização das relevâncias valorativas possíveis, o que se torna concretamente necessário na medida em que a confiança ingênua na validez dos fins tradicionais desaparece e a mobilização e diferenciação da ordem social abalam os fundamentos seguros do consenso.
Este processo de neutralização se efetiva através de pontos de vista Ideológicos. "Ideologia" é, sem dúvida, um termo equívoco. No século 19 e na primeira metade do século 20, a reflexão sobre o pensamento ideológico nos conduziu à problemática do conhecimento transparente a si próprio. Mannheim empreendeu, neste sentido, uma análise da ideologia em termos de relação entre valor e ação como um conjunto de variações possíveis num sistema teórico, as quais se limitam mutuamente. Esta concepção, contudo, contém um princípio do qual ninguém se safa e que acaba por tornar toda a investigação inconsequente. A questão tem sido. por isso, retomada por alguns pensadores (cf. Cari Priedrich: Man and his Government. An empirical theory of politics — New York. San Francisco, London, 1963, p. 83 ss.; N. Luhmann: Wahrheít und Ideologie, em Soziologische Aufklarung, ed. cít. p. 54 ss.), os quais procuram propor uma interpretação manifestamente funcional da ideologia. Nela se baseiam as considerações seguintes.
Ideologia é, a nosso ver, um conceito de natureza axiológica. Ou seja, o ponto de vista ideológico envolve também uma atitude valorativa. Só que. enquanto os valores em geral constituem prisma, critério de avaliação de ações, nas quais eles se realizam, a valoração ideológica tem por objeto imediato os próprios valores. Não desconhecemos, ao fazer esta asserção, que os próprios valores se julgam, na medida em que é sempre possível submeter um valor a outro e, a partir dai, num processo reflexivo, constituir ordens valorativas hierárquicas. Esta valoração, porém, dada a reflexividade regressiva e circular dos valores — valores julgam-se uns aos outros ad infinitum — é necessariamente flexível e instável. A valoração ideológica, ao contrário, é uma atitude rígida e limitada. Ela atua no sentido de que a função seletiva do valor na orientação da ação se torna consciente e é, então, utilizada para valorar outros valores. Em outras palavras, a valoração ideológica cria a possibilidade de se estimar as próprias estimativas, selecionar as seleções, em última análise, valorar os valores. Nesta medida, a valoração, de certo modo, se desacredita como tal, pois a ideologia estabelece condições para que os valores variem conforme as necessidades e possibilidades da ação, ao garantir o consenso daqueles que precisam manifestar os seus valores, assegurando-lhes a possibilidade de expressão, mas, ao mesmo tempo, estabelece uma instância que neutraliza a valoração, na medida em que ela perverte o valor, retirando-lhe a reflexividade infinitamente regressiva e circular.
Um exemplo deste papel da ideologia pode ser visto nos sistemas políticos multipartidários. Muitos deles desenvolvem esta espécie de perversão dos valores dominantes, através da inversão de fins e meios na política (o exemplo é de Luhmann). A ação política, diz-se, deve visar a objetivos concretos. O Poder, nestes termos, é dado aos políticos na forma de competências decisórias que devem realizar aqueles objetivos. Por outro lado, o objetivo dos partidos é obter e manter aquele Poder, de tal modo que os programas partidários são elaborados a fim de alcançar este objetivo. Os programas, assim, enquanto meios passam a subordinar-se a este fim. Esta perversão, de natureza ideológica, neutraliza, deste modo, os valores na medida em que os instrumentaliza. O mesmo processo pode ser observado em sistemas de partido único ou de hipertrofia do Executivo.
Isto posto, podemos entender agora em que sentido a ideologia atua, no interior da dimensão axiológica do direito, como um fator estabilizador. Isto pode ser observado nos dois modos de concretização mencionados. Através da ideologia, não só cada um deles, de per si, se torna mais compreensível, mas sobretudo a sua combinação nos sistemas se faz mais transparente.
De fato, a valoração ideológica constitui um elemento importante da concretização. Os valores, estabelecidos, na concretização finalística, como invariantes, têm de ser concebidos abstratamente, para deixar em aberto as diversas possibilidades de ação. Ora, isto só pode ser alcançado quando sua "seletividade" interna é dirigida aos comportamentos visados, que, de modo variado, podem ser cumpridos, de tal maneira que eles próprios venham a funcionar como prisma para a seleção dos meios apropriados. Vê-se, por aí, que a concretização finalística pode, em virtude de sua flexibilidade abstraía, ocasionar dificuldades. A ideia de que o direito aos fins dá também direito aos meios perde sua força, na medida em que o estabelecimento do valor, de per si, não constitui orientação segura para a ação. Nesta medida, a valoração ideológica atua no sentido de neutralizar os programas valorativos, ao determinar quais fins, em certas circunstâncias e condições, possibilitam a indicação dos meios e sua justificação. Ela torna, assim, a concretização finalística numa concretização-finalística CONDICIONAL.
O mesmo pode ser dito para a concretização condicional. Aí também, a fixação de certos comportamentos, aos quais correspondem certos valores justificado rés só pode ser alcançada na medida em que a "seletividade" externa é dirigida aos valores que devem justificar os comportamentos de modo a constituir argumentos objetivos para a decisão. Isto exige uma redução formal dos valores que garanta quais as possibilidades de decisão, para além dos casos concretos, que devem ser abertas ou bloqueadas. Também aqui a valoração ideológica atua no sentido de neutralizar o campo valorativo, através da criação de expressões simbólicas como regras de hermenêutica, ficções, distinções formais, que, de certa maneira, de instrumentos que são. passam a constituir verdadeiros objetivos da atividade jurídica. Com isso. a concretização condicional se faz concretização-condicional FINALÍSTICA.
O efeito da valoração ideológica é, portanto, o de tornar rígida a flexibilidade do momento valorativo. Ela explica, a nosso ver, ao nível axiológico, o momento da dogmaticidade no direito, o seu caráter de estabilidade. A ideologia fixa a regra positivada, dando-lhe um cerne axiológico indisputável, de tal modo que ela, em princípio, não possa ser questionada, permitindo-se apenas a sua discussão técnico-instrumental, pois a ideologia manifesta uma superioridade valoradora, ao eliminar, artificialmente, outras possibilidades. A inevitabilidade de múltiplas ideologias, por sua vez, mesmo quando em confronto, não esconde o seu relacionamento mutuamente indiferente, de tal modo que, mesmo quando elas se contrapõem e se criticam, um verdadeiro diálogo entre elas nunca chega a realizar-se.
Evidentemente, o perigo de processo de ideologização está numa perda eventual de contato com a própria complexidade do sistema que pode, no limite, tornar-se totalmente incontrolável. Este perigo é contornável, na medida em que a neutralização ideológica permaneça formal, isto é, não impeça, ao contrário, propicie o oportunismo do câmbio de valores. Um direito totalmente ideologizado perverte o sentido da justiça, ao torná-la rígida e inflexível. Isto é. a instrumentalização neutralizante e total da vida jurídica constitui uma utopia suicida que já levou à morte muitos sistemas políticos.
Fonte: Anais do VIII Congresso Interamericano de Filosofia e V da Sociedade Interamericana de Filosofia, Instituto Brasileiro de Filosofia, São Paulo: 1974, pp.471-478.