Tercio Sampaio Ferraz Jr.
Uma avaliação serena do sistema político brasileiro depois de 64 não pode negar que esse, tecnicamente considerado, funcionou bem. Nesse sentido, basta observar que os mecanismos operacionais foram acionados de modo inteligente. O esforço inicial de reconstrução econômica, convergindo para a correção de certas distorções através da modernização e racionalização da economia, e a expansão econômica acelerada que marcou a etapa seguinte, dimensionada pela diversificação das exportações, são dados que não devem ser menosprezados.
No entanto, como Celso Lafer mostrou em seu livro sobre O sistema político brasileiro, todos esses resultados foram obtidos, ao longo do tempo, com muitos custos: custos políticos, em termos de supressão das liberdades públicas; custos sociais, em termos de acentuadas desigualdades na distribuição de renda; custos culturais, em termos de freios na criatividade.
O governo do presidente Geisel tentou, sem dúvida, enfrentar o problema dos custos, mas, ao mesmo tempo, sem querer alterar os resultados. Todavia, teve de enfrentar uma conjuntura altamente desfavorável, a partir da crise energética, a qual se expressou pela redução gradativa do excedente líquido de capitais, ampliando a tensão entre o setor público e a iniciativa privada. O ministério que assumiu o governo, em março de 1974, teve a percepção de que o sistema deveria passar por uma série de mudanças e adaptações, com a finalidade de não comprometer seus objetivos iniciais. Passou-se a falar, então, em máximo de desenvolvimento possível (ou seja, a manutenção dos resultados) com um mínimo de segurança indispensável (isto é, a diminuição dos custos).
A colocação desses objetivos acarretou um elenco, de medidas destinadas a expandir os segmentos do mercado interno, mediante uma nova política de preços que dividia os ganhos de produtividade entre o produtor e o consumidor, bem como pela elevação dos salários reais, permitindo uma melhor redistribuição de riquezas. Além disso, procedeu-se, no início do governo do presidente Geisel, a um amplo debate dos temas nacionais. A partir, daí é que se começou a falar em distensão, criando-se a esperança de reabertura, comprometida pelas eleições de 74.
Foi nesse momento em que as dificuldades afloraram: a formulação e execução da política econômica, sem ter à disposição um instrumental, político que permitisse o debate interno e diminuísse a quota de responsabilidade exclusiva da presidência, pouco a pouco tornou-se monológica e imprevisível. Com isso, o problema também se tornou político num sentido mais amplo, pois a questão da participação na formulação das grandes decisões é fundamental à sobrevivência dos regimes que procuram legitimar as relações entre governantes e governados.
Às vésperas da gestão Figueiredo, volta-se a falar em redemocratização. Com todos os relativismos que possam ser proclamados, o ideal democrático não pode escapar, contudo, destes dois importantes pilares de sustentação: a noção de representação dos governos pelos governantes e a noção de identidade ou comunhão de ideias.
Na tradição ocidental, representação vem sendo entendida como participação mediata e institucionalizada através de instrumentos políticos
conhecidos, como a eleição, mandatos populares e pluralismo partidário, liberdade de expressão, aos quais se acrescentam, hoje, os instrumentos técnicos da moderna tecnocracia, como conselhos, econômicos e comissões de alto nível, nos quais a presença autêntica dos governados não pode ser desprezada. Por sua vez, identidade significa participação consciente, verdadeira comunhão de ideias e politização aberta dos governados na direção do seu destino.
Para que uma democracia entre nos trilhos de sua viabilidade, parece claro que a participação exclui tanto a representação manipulada quanto a identidade forjada, embora reconheçamos que a realização de ambas não seja um jogo fácil, o qual requer, ao contrário, a intuição dos rumos e o senso dos caminhos.
Essa não é uma tarefa simples de ser executada. Não existem modelos prontos e a democracia não se realiza somente porque o País foi vestido com roupas de uma aparente legalidade. Não basta devolver ao povo a possibilidade formalmente irrestrita de escolher seus governados. Isso é necessário, mas também é preciso, ao mesmo tempo, estimular a lealdade. É importante demonstrar que a legalidade não é nem cortina de fumaça para o autoritarismo, nem uma peça que apenas dá a medida para a burla. Na tradição brasileira, a crença da legalidade é muito pobre. Essa crença em princípios abstratos é esvaziada pelos recursos ao pistolão, ao jeitinho e aos apadrinhamentos. Ora, o exercício de uma democracia exige uma legalidade atuante, o que implica o fortalecimento das instituições e não apenas sua regulamentação formal.
O que se deve evitar, de qualquer modo, é que o pilar da representação continue a ser viciado paulatinamente, na medida em que se lance uma aura de descrédito nos seus instrumentos, rninimi-zando-se o papel do Legislativo, esvaziando-se o sistema partidário, limitando-se a presença do Judiciário e restringindo-se o diálogo nos mecanismos tecnológicos. Em consequência, não se pode deixar que o pilar de identidade também venha a ser abalado, tomando-se adesão por consenso e o debate por contestação.
Não se pode negar que a democracia pressupõe um mecanismo de aceitação dos governantes' pelos governados, o que requer a participação por representação conciliada com autêntica identidade.
Isso significa uma nova mentalidade com respeito aos canais de participação, de tal modo que a segurança do Estado não acabe sendo vista como segurança desse contra a sociedade. Essa visão é distorcida e não leva em consideração a comunhão de ideias e o pilar da identidade. Conduz a um endeusamento da coerção organizada, como um instrumento de defesa que termina por defender-se a si mesma contra aqueles que realmente deveria defender.
Não há dúvida de que, neste limiar de um processo sucessório em andamento, o rumo e a estratégia corretos não são um ovo de Colombo. Mas de um modó ou de outro, é preciso pó-lo de pé. Eis um desafio que nos lançamos a nós mesmos. Porém, assim como é preciso que cada um tome dele consciência, também é necessário que essa consciência seja aproveitada e vista com alto espírito cívico de desinteressada colaboração.
Fonte: Quinta-feira, 9-2-78 — O ESTADO DE S. PAULO.