Tercio Sampaio Ferraz Jr.
(Pareceres do Processo IASP 01/279)
Ao
Instituto dos Advogados de São Paulo
Excelentíssimo Senhor Presidente do IASP, Dr. Nelson Kojranski:
Honrado com sua solicitação para manifestar-me sobre o tema do sigilo bancário, esclareço que farei observações gerais sobre a temática, esperando, com isso, atender ao interesse desse prestigioso instituto.
O sigilo bancário não é tema expresso na Constituição Federal. Sua discussão, na doutrina e na jurisprudência, vem por meio do entendimento sobretudo do inc. XII, correlacionado com o inc. X do art. 5.°, que tratam, respectivamente, da inviolabilidade do sigilo da correspondência, telegráfica, de dados e telefônica, do direito à privacidade e do segredo profissional. Particularmente importante é a discussão em torno da inviolabilidade do sigilo de dados, expressão que não existia nas constituições anteriores. Não sendo expressa a menção a sigilo bancário na Constituição, seu estatuto constitucional depende de interpretação.
O art. 38 da Lei 4.595/64, recebida como complementar, determina, em seu caput: "As instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados". O art. 1.°da LC 105/2001 manteve, genericamente, a obrigação de manter sigilo, explicitando, nos §§ 3.° as exceções ao dever de sigilo e 4.° os casos autorizados de quebra.
Do disposto nesse artigo depreende-se, primeiro, que o sigilo é uma obrigação imposta às instituições financeiras, cuja violação, fora das hipóteses autorizadas, constitui crime (art. 10). Trata-se de obrigação perante o cliente e um direito perante terceiros que exijam a sua quebra. Desta obrigação pode a instituição ser excepcionada quando a prestação de informações é determinada pelo Poder Judiciário, mas os dados, de acordo com aquela lei, permaneciam sigilosos no interior da causa (art. 38 da Lei 4.595/64, que, neste ponto, parece-me, permanece em vigor). Segundo, que a lei entende que o sigilo tem por objeto "operações ativas e passivas e serviços prestados". A LC 105/2001, art. 5.°, ordena que o Poder Executivo disciplinará os critérios segundo os quais as instituições financeiras informarão à administração tributária da União as operações efetuadas pelos usuários de seus serviços. Como tais operações são documentadas e, hoje, armazenadas em bancos de dados, haveria espaço para subsumir o sigilo bancário ao sigilo de dados de que fala a Constituição no seu art. 5.°, XII, entendendo que o sigilo bancário estaria até diretamente ali agasalhado? Por outro lado, como se diz de operações e serviços prestados, poder-se-ia invocar, para o prestador, o sigilo profissional, remetendo a base constitucional ao inc. XIV do art. 5.°? Mais ainda, como fica a questão perante o disposto no art. 5.°, XII?
Assim posta, a questão parece relativamente simples, mas, na verdade, envolve controvérsia.
O sigilo de dados é uma hipótese nova, trazida pela Constituição Federal de 1988 (art. 5.°, XII). A inovação trouxe com ela dúvidas interpretativas que merecem, por isso mesmo, uma reflexão mais detida.
Em primeiro lugar, a expressão "dados, constante do inc. XII, manifesta uma certa impropriedade (Celso Bastos & Ives Gandra, p. 73). Os citados autores reconhecem que por "dados" não se entende o objeto de comunicação, mas uma modalidade tecnológica de comunicação. Clara, nesse sentido, a observação de Manoel Gonçalves Ferreira Filho (p. 38): "Sigilo de dados. O direito anterior não fazia referência a essa hipótese. Ela veio a ser prevista, sem dúvida, em decorrência do desenvolvimento da informática. Os dados aqui são os dados informáticos (v. incs. XII e LXXII)". A interpretação faz sentido. Como já fiz observar em outro passo (cf. Ferraz Júnior: "Sigilo de dados: o direito à privacidade e os limites à função fiscalizadora do Estado", Revista da Faculdade de Direito da USP, 1993, p. 440 et seq.), o sigilo, no inc. XII do art. 5.°, está referido à comunicação, no interesse da defesa da privacidade. Isto é feito, no texto, em dois blocos: a Constituição fala em sigilo "da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas". Note-se, para a caracterização dos blocos, que a conjunção e une correspondência com telegrafia, segue-se uma vírgula e, depois, a conjunção de dados com comunicações telefônicas. Há uma simetria nos dois blocos. Obviamente o que se regula é comunicação por correspondência e telegrafia, comunicação de dados e telefonia. O que fere a inviolabilidade do sigilo é, pois, entrar na comunicação alheia, fazendo com que o que deve ficar entre sujeitos que se comunicam privadamente passe ilegitimamente ao domínio de um terceiro. Ou seja, a inviolabilidade do sigilo garante, numa sociedade democrática, o cidadão contra a intromissão clandestina ou não autorizada pelas partes na comunicação entre elas, como, por exemplo, a censura de correspondência ou a figura do hacker. Por outro lado, se alguém elabora para si um cadastro sobre certas pessoas, com informações marcadas por avaliações negativas, e o torna público, poderá estar cometendo difamação, mas não quebra sigilo de dados. Se estes dados, armazenados eletronicamente, são transmitidos, privadamente, a um parceiro, em relações mercadológicas, para defesa do mercado (banco de dados), também não estará havendo quebra de sigilo. Mas se alguém entra nesta transmissão, como um terceiro que nada tem a ver com a relação comunicativa, ou por ato próprio ou porque uma das partes lhe cede o acesso sem o consentimento da outra, estará violado o sigilo de dados.
A distinção é decisiva: o objeto protegido pelo inc. XII do art. 5.° da CF, ao assegurar a inviolabilidade do sigilo, não são os dados em si, mas a sua comunicação. A troca de informações (comunicação) é que não pode ser violada por sujeito estranho à comunicação. Doutro modo, se alguém, não por razões profissionais, ficasse sabendo legitimamente de dados incriminadores relativos a uma pessoa, ficaria impedido de cumprir o seu dever de denunciá-los!
Quando, por outro lado, alguém - um outro - intercepta uma mensagem, por exemplo, abre uma carta que não lhe foi endereçada, ocorre violação de sigilo. Não importa o conteúdo da comunicação epistolar, não importa, pois, que, na carta, esteja apenas a reprodução de um artigo de jornal publicado na véspera. O sigilo terá sido violado de qualquer modo, mesmo se o conteúdo da correspondência é público, pois a proteção não é para o que consta da mensagem (tecnicamente, o chamado relato ou conteúdo comunicado), mas para a ação de enviá-la e recebê-la.
Visto deste ângulo, toma seu correto sentido o disposto no inc. XII do art. 5.° da CF, quando ali se admite, apenas para a comunicação telefônica e, assim mesmo, só para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, por ordem judicial, a quebra do sigilo. Note-se, antes de mais nada, que dos quatro meios de comunicação ali mencionados - correspondência, telegrafia, dados, telefonia - só o último se caracteriza por sua instantaneidade. Isto é, a comunicação telefônica só é enquanto ocorre. Encerrada, não deixa vestígios no que se refere ao relato das mensagens e aos sujeitos comunicadores. É apenas possível, a posteriori, verificar qual unidade telefônica ligou para outra. A gravação de conversas telefônicas por meio chamado "grampeamento" é, pois, necessária para que o conteúdo possa ser conservado.
Como isto é tecnicamente possível, o constituinte autorizou esta única excecão à inviolabilidade do sigilo de comunicação, mas, com essa única ressalva, não permitiu absolutamente a entrada de terceiros na comunicação alheia, ainda que, em nome do interesse público, um juiz viesse autorizá-los (a Constituição, na verdade, no art. 5.°, XII, ressalva a investigação criminal ou instrução processual, mas também, excepcionalmente, em caso de estado de defesa - art. 136, § 1.°, 1, b, e - e no estado de sítio - art. 139, III -, admite possíveis restrições ao sigilo da correspondência e das comunicações).
Esta proibição absoluta, porém, não significa que, no interesse público, não se possa ter acesso - a posteriori - à identificação dos sujeitos e ao conteúdo ou relato das mensagens comunicadas. Por exemplo, o que se veda é uma autorização judicial para interceptar correspondência, mas não para requerer busca e apreensão de documentos (cartas, ofícios). Esta observação nos coloca, pois, claramente, que a questão de saber quais elementos de uma mensagem podem ser fiscalizados e requisitados não se confunde com a questão de saber se e quando uma autoridade pode entrar no processo comunicativo entre dois sujeitos. São coisas distintas que devem ser examinadas distintamente. Assim, por exemplo, solicitar ao juiz que permita à autoridade acesso à movimentação bancária de alguém não significa pedir para interceptar suas ordens ao banco (sigilo da comunicação), mas acesso a dados armazenados (sigilo da mensagem informada).
A primeira solicitação - salvo se o meio for o telefone, porque aí o dado se perde - é inadmissível; já a segunda é possível. Ou seja, o processo comunicativo, durante sua ocorrência, entre o cliente e o banco, quer por correspondência, por telex, por meios eletrônicos etc., não pode ser interceptado. Mas, depois de encerrado o processo comunicativo, é possível obrigar, por exemplo, por ordem judicial, o receptor de uma mensagem a revelá-la a terceiros, mesmo sem autorização do emissor ou obrigar este a revelar o conteúdo da mensagem que enviou, sem autorização do receptor. Sempre mediante autorização judicial? Em que circunstâncias, em que limites? É nesta questão que aparece o problema do sigilo bancário.
A análise do inc. X do art. 5º. da Constituição nos orienta a resposta: os limites devem ser buscados naquelas informações transmitidas que, em termos de privacidade, são constitutivas da integridade moral da pessoa. O problema, portanto, é saber se as operações de crédito, ativas e passivas, e os serviços prestados constituem o âmbito da privacidade de alguém.
Há certas informações, situações, vivências, sentimentos que o indivíduo faz privativos, só seus, excluindo outros do acesso a eles. A Constituição Federal diz que eles são invioláveis. Trata-se do direito fundamental à privacidade( art.5º, X). Em questão está o direito de o indivíduo excluir do conhecimento de terceiros aquilo que só a ele é pertinente e que diz respeito ao seu modo de ser exclusivo no âmbito de sua vida privada.
Trata-se de um direito subjetivo fundamental. Como direito subjetivo, manifesta uma estrutura básica, cujos elementos são o sujeito, o conteúdo e o objeto. O sujeito é o titular do direito. Em se tratando de um dos direitos fundamentais do indivíduo, o sujeito é toda e qualquer pessoa, física ou jurídica, brasileira ou estrangeira, residente (ou transeunte – cf. Mello Filho, p. 20) no País (art. 5º, caput). O conteúdo é a faculdade específica atribuída ao sujeito, que pode ser a faculdade de constranger os outros ou de resistir-lhes (caso dos direitos pessoais) ou de dispor, gozar, usufruir( caso dos direitos reais). A privacidade, como direito, tem por conteúdo a faculdade de constranger os outros ao respeito e de resistir à violação do que lhe é próprio, isto é, das situações vitais que, por só a ele dizerem respeito, deseja manter para si, ao abrigo de sua única e discricionária decisão. O objeto é o bem protegido, que pode ser uma res (uma coisa, não necessariamente física, no caso de direitos reais) ou um interesse (no caso dos direitos pessoais). No direito à privacidade, o objeto é, sinteticamente, a integridade moral do sujeito.
Tanto conteúdo quanto objeto são muito claros no art. 12 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, em que se lê: “ Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tal intromissões ou ataques toda pessoa tem direito à proteção da lei”. No Brasil, a Lei 5.250/67 ainda em vigor (Lei de Imprensa) estabelece responsabilidade civil nos casos de calúnia e difamação se o fato imputado, ainda que verdadeiro, disser “respeito à vida privada do ofendido e a divulgação não foi motivada em razão de interesse público”.
O direito à privacidade tem raízes modernas. No antigo Direito Romano, a oposição entre o público e o privado tinha a ver com a separação entre o que era de utilidade comum e o que dizia respeito à ultilidade dos particulares. Com base nesta distinção afirmava-se a supremacia do público sobre o privado. Mas o público, como já se esboçava na Grécia antiga, passando a princípio básico das democracias modernas, é também o que aparece, o que é visível a todos, em oposição ao secreto, ao segredo, ao ato de um poder por isso arbitrário, isto é, porque não se mostra. Já o privado é o que pertence à ordem do que não se mostra em público, do que não se informa a todos nem deve ou precisa ser transparente, por dizer respeito às exigências vitais de cada indivíduo, impostas pela necessidade de sobrevivência, que circunscreviam o âmbito do privativo.
A distinção entre a esfera pública e a privada, que para os romanos e os gregos era clara, perde nitidez na era moderna, que se vê atravessada pela noção do social, comum tanto ao público (político) como ao privado ( familiar).
A afirmação generalizada da sociabilidade da natureza humana trouxe o problema da distinção entre o social público (área da política) e o social privado (área do econômico, do mercado), donde o aparecimento de duas novas e importantes dicotomias que estão na raiz dos direitos humanos modernos: Estado e sociedade, sociedade e indivíduo. E nesse contexto que surge a privacidade. O social privado, o mercado, passa a exigir a garantia de um interesse comum (livre concorrência, propriedade privada dos bens de produção) que não se confunda com o governo (política), embora dele precise para ser garantido. Mas contra a presença abrangente e avassaladora desse interesse comum, isto é, do mercado que nivela os homens à mercadoria, contrapõe-se a privacidade do indivíduo (Ferraz, Introdução ao estudo do direito, São Paulo,1988, p.131). O direito à privacidade, portanto, é uma figura moderna, construída a partir da esfera privada e nela delineada, em contraposição ao social e, por extensão, ao político.
Analisando-se, pois, o público e o privado na sua acepção contemporânea, deve-se reconhecer que o público-político é dominado pelo princípio da transparência e da igualdade; já o social-privado está sob o domínio do princípio da diferenciação( no sentido do direito de ser diferente, por exemplo, à maneira de Stuart Mill, On liberty, New York/London, 1975, p.70); por fim, o terreno da individualidade privativa é regido pelo princípio da exclusividade.
Este último, como mostra Hannah Arendt com base em Kant( cf. Celso Lafer. A reconstrução dos direitos humanos. São Paulo, 1988, p.267), visa a assegurar ao indivíduo a sua identidade diante dos riscos proporcionados pela niveladora pressão social e pela incontrastável impositividade do poder político. Aquilo que é exclusivo é o que passa pelas opções pessoais, afetadas pela subjetividade do indivíduo e que não são dominadas nem por normas nem por padrões objetivos. O princípio da exclusividade comporta três atributos principais: a solidão ( donde o desejo de estar só), o segredo( donde a exigência de sigilo) e a autonomia (donde a liberdade de decidir sobre si mesmo como centro emanador de informações). A privacidade tem a ver, pois, com esta possibilidade de criar para si e para um círculo que lhe é próprio um âmbito seu, do qual se excluem terceiros( aqueles que participam de outros interesses e círculos comunicativos).
No recôndito da privacidade se esconde, em primeiro lugar, a intimidade. A intimidade não exige publicidade, porque não envolve direitos de terceiros. No âmbito da privacidade, a intimidade é o mais exclusivo dos seus direitos.
No que tange à intimidade, trata-se da informação daqueles dados que a pessoa guarda para si e que dão consistência à sua pessoalidade, dados de foro íntimo, expressões de auto-estima, avaliações personalíssimas com respeito a outros, pudores, enfim dados que, quando constantes de processos comunicativos, exigem do receptor extrema lealdade e alta confiança e que, se devassados, desnudariam a personalidade, quebrariam a consistência psíquica, destruindo a integridade moral do sujeito. Seu correlato, em face de um eventual receptor, é o sigilo profissional (CF, art. 5.°, XIV). Em termos do princípio da exclusividade, diríamos que esta é, nesses casos, de grau máximo. Em consequência, o emissor pode comunicar tais dados, se o desejar, mas a ninguém é dado exigir dele a informação transmitida, salvo em casos especialíssimos em que a intimidade de alguém venha a intervir na intimidade de outrem: o direito de não ser obrigado a revelar situações íntimas é limitado pelo direito de o receptor recusar informações íntimas que lhe tiram a própria intimidade. Por isso, em processos que versem situações íntimas, a lei garante o sigilo. A inexigibilidade desses dados, salvo quando alguém se vê por eles ferido na sua própria intimidade, faz deles um limite ao direito de acesso à informação (art.5º,XIV, da CF).
No que diz respeito à vida privada, é a informação de dados referentes às opções da convivência, como a escolha de amigos, a frequência de lugares, os relacionamentos civis e comerciais, ou seja, de dados que, embora digam respeito aos outros, não afetam(embora, no interior da própria convivência, possam vir a afetar) direitos de terceiros (exclusividade da convivência). Pelo sentido inexoravelmente comunicacional da convivência, a vida privada compõe, porém, um conjunto de situações que, usualmente, são informadas sem constrangimento. São dados que, embora privativos - como o nome, endereço, profissão, idade, estado civil, filiação, número de registro público oficial, etc. -, condicionam o próprio intercâmbio humano em sociedade, constituem elementos de identificação que tornam a comunicação possível, corrente e segura. Por isso, a inviolabilidade da privacidade pela proteção desses dados em si, pelo sigilo, não faz sentido. Assim, a inviolabilidade de informações referentes à vida privada só tem pertinência para aquelas associadas aos elementos identificadores usados nas relações de convivência, as quais só dizem respeito aos que convivem. Dito de outro modo, os elementos de identificação só são protegidos quando compõem relações de convivência privativas: a proteção é para elas, não para eles. Em consequência, simples cadastros de elementos identificadores (nome, endereço, RG, filiação, etc.) não são protegidos. Mas cadastros que envolvam relações de convivência privadas ( por exemplo, nas relações de clientela, desde quando é cliente, se a relação foi interrompida, as razões pelas quais isto ocorreu, quais os interesses peculiares do cliente, sua capacidade de satisfazer aqueles interesses etc.) estão sob proteção. Afinal, o risco à integridade moral do sujeito, objeto do direito à privacidade, não está no nome, mas na exploração do nome, não está nos elementos de identificação que condicionam as relações privadas, mas na apropriação dessas relações por terceiros a quem elas não dizem respeito. Pensar de outro modo seria tornar impossível, no limite, o acesso ao registro de comércio, ao registro de empregados, ao registro de navio etc., em nome de uma absurda proteção da privacidade.
Por último, a honra e a imagem. A privacidade, nesse caso, protege a informação de dados que envolvam avaliações(negativas) do comportamento que, publicadas, podem ferir o bom nome do sujeito, isto é, o modo como ele supõe e deseja ser visto pelos outros. Repita-se que o direito à privacidade protege a honra, podendo ocorrer a inviolabilidade do sigilo referente a avaliações que um sujeito faz sobre outro e que, por interferir em sua honra, comunica restritivamente, por razões de interesse pessoal. É o caso, por exemplo, de cadastros pessoais que contêm avaliações negativas sobre a conduta (mau pagador, devedor impontual e relapso etc.). No tocante à imagem, para além do que ela significa de boa imagem, assimilando-se, nesse sentido, a honra, a proteção refere-se a dados que alguém fornece a alguém e não deseja ver explorados(comercialmente, por exemplo) por terceiros.
Por estas considerações pode-se perceber que o âmbito da privacidade ( o objeto do direito subjetivo, cujo conteúdo é a faculdade de excluir terceiros) tem a ver com aquilo que é nuclear para a auto-consistência moral da pessoa, ou seja, da pessoa moral ou física, que lhe confere um lugar na convivência e que não pode ser aberto a qualquer um, salvo por sua iniciativa ou pela iniciativa conjunta dos participantes, e em relação ao que se garante a faculdade de resistir (de excluir) a indevida intromissão de outros. Este âmbito, cuja existência formal pode ser reconhecida como um universal humano, conhece, porém, variações ditadas pelo tempo, pelo lugar, pelos costumes etc.
Isto posto cabe a pergunta: em que sentido podem subsumir-se as operações ativas e passivas e serviços prestados pelas instituições financeiras e do que elas são obrigadas, por lei, ao sigilo, ao âmbito objetivo do direito à privacidade? Enquadram-se, genericamente, na proteção constitucional à intimidade, à vida privada, à imagem e à honra as operações ativas e passivas do cliente com o banco, bem como os serviços que lhe presta?
Trata-se, usualmente, de relações (e respectiva documentação) que dizem respeito, sem dúvida, ao cliente e ao seu banco. Créditos concedidos, débitos contraídos, ordens dadas e executadas, saldos consumidos ou ainda existentes, tudo isto compõe um universo de âmbito privado. Mas sua pertinência usual ao âmbito privado não induz, por necessidade estritamente formal( relação lógica de gênero/espécie), ao terreno constitucional da privacidade. Afinal, nem tudo o que compõe o âmbito privado pertence ao âmbito da privacidade. Por exemplo, a aquisição de um imóvel é realizada por escritura pública, ocorre no âmbito do direito privado, mas não pertence ao âmbito da privacidade. Mas os motivos pessoais pelos quais alguém adquire a propriedade não podem ser devassados, pois pertencem à sua intimidade.
O que poderá definir, pois, essa pertinência é uma razão de ordem finalística: a proteção da consistência psicossocial do sujeito contra a pressão exercida pela sociedade e , se ilegítima, pelo Estado. Por conta dessa consistência é possível perceber que o fundamento da privacidade não é a propriedade, mas a liberdade (cf. sobre essa discussão na Suprema Corte americana, Posner: The economics of Justice, 1987). A privacidade não protege posses, propriedades, mas relações: de confiança, de lealdade, estratégicas, de proteção ao foro íntimo contra curiosidade etc. Daí a importância da exclusão de terceiros da resistência à intromissão.
Não é tão simples subsumir os sigilos do mundo econômico, em especial da pessoa jurídica, à privacidade. Até porque estes parecem ter, antes, um acentuado sentido de propriedade, mais do que de liberdade. Recordo que durante anos a burocracia do INPI, no Brasil, exigia que o segredo de fonte do software, objeto de contrato de transferência de tecnologia, fosse revelado ao adquirente, sob pena de impedir a sua realização.
Assim, se quisermos entender como privacidade a proteção de sigilo conferida a operações bancárias, a segredos industriais e comerciais, a estratégias de mercado, às declarações de renda etc., teremos que admitir que ela não é instituída porque constitui uma defesa da propriedade (para isto existem outros institutos, como as patentes, as marcas, as tecnologias, a autoria), mas tem antes uma relevância pragmática, no contexto do regime econômico da concorrência, num sentido próprio de proteção da pessoa contra a intromissão indevida de terceiros. Entende-se, assim, que se trata de uma proteção ilegítima, de ordem constitucional, cujo objeto não é o documento de posse da instituição financeira, mas a liberdade de relação nele consistente. Por isso, também, se essa liberdade não é afetada, nada impede que o documento possa ser requisitado.
Na espécie, uma informação de operações bancárias pode, portanto, ter uma repercussão no plano da privacidade (embora possa ter também no campo da propriedade), como, por exemplo, a conta bancária que alguém mantém em nome de um filho publicamente não reconhecido e que, por alguma razão de pudor, não deseja revelar a ninguém. Ou o empréstimo obtido pela empresa junto à instituição financeira, que pode ter um sentido contábil, mas fazer parte, também, de uma estratégia de expansão (livre iniciativa) num mercado disputado. Por isso se entende o cuidado do legislador em preservar, genericamente, as operações e os serviços bancários, mas também a cautela da jurisprudência em traçar limites. Veja-se, por exemplo, o posicionamento do TJMG no julgamento do Mandado de Segurança 397 em antigo acórdão de 02.12.1953 e, no mesmo sentido, a 20.06.1979, também a manifestação do 2.° TACivSP em aresto relatado pelo Des. Joaquim Francisco, em cujo voto se lê:
"(...) Ora, o primeiro documento - o relatório do fiscal Milton da Silva Torres - é peça meramente informativa de uso interno do banco, no processamento de um pedido de financiamento. Demais disso, o interesse das parles exauriu-se nos esclarecimentos obtidos quando da tomada do depoimento daquele fiscal, como testemunha, confirmando que foi o indeferimento do banco para o custeio de um cafezal a ser erradicado.
Quanto ao segundo documento - cópia do indeferimento do pedido de financiamento feito pelo autor ou pelo Sr. Alcides dos Santos - basta que o banco informe ao Juízo qual o motivo determinante do indeferimento ou somente confirme o indeferimento sem remeter peças ou informação que envolvam juízo de valor; a serem resguardadas pelo dever-direito de sigilo bancário." (RT 529/150 -grifei.)
Com a mesma cautela, a doutrina também é cuidadosa ao distinguir diferentes situações. Veja-se, a propósito, o que diz Covello (Sigilo bancário. São Paulo, 1991, p. 93):
"O fato de a pessoa ser cliente do banco deve ficar sob sigilo?
A resposta não é tão simples como pode parecer à primeira vista. Bernardino Gonzaga entende que esse fato é hoje corriqueiro e banal de modo que a divulgação de que o indivíduo é cliente do estabelecimento bancário não constitui violação do dever de reserva, especialmente porque é difícil nos dias que correm alguém não ser cliente de banco ou não recorrer ao banco para obter algum serviço.
Certo é também que muitas vezes esse fato é notório, sendo mesmo comum a hipótese de o próprio cliente propalar a sua condição de cliente de determinado banco como traço de status ou, então, para fazer do banco seu agente de cobrança. Certas entidades filantrópicas divulgam até pelos meios de comunicação o número de suas contas bancárias com o fito de arrecadarem donativos através da instituição financeira. Onde há notoriedade, não há falar em segredo, muito menos em obrigação de segredo a cargo do banco."
A revelação do nome é muito distinta da revelação do nome aliada ao serviço. É o que nota o mesmo autor, ao comentar:
"Não obstante, é de considerar que, em determinados casos, convém ao cliente ocultar esse informe, como ocorre, por exemplo, quando alguém contrata a locação de cofre de segurança com o estabelecimento de crédito. A maior vantagem desse serviço, além da segurança da custódia, é o seu caráter sigiloso, pois presume-se que o usuário do cofre tenha interesse em ocultar de terceiro a própria circunstância de ter a disponibilidade da caixa de segurança no estabelecimento bancário. Também a custódia de títulos e valores e, bem assim, o depósito pecuniário revestem esse mesmo caráter, por isso que, para o banco, é sempre melhor calar."
Em relação, porém, ao nome, sua posição não deixa dúvida:
"Agora, a revelação de que determinada pessoa se vale dos serviços de caixa do banco não nos parece constituir violação do segredo, porque esse fato é corriqueiro, nos dias atuais. O banco não é esconderijo."
Pois bem, por disposição legal e em face do resguardo da privacidade, com relação a operações ativas e passivas e a serviços prestados, as instituições financeiras são obrigadas a guardar sigilo. O sigilo, porém, a que estão obrigadas, componente estrutural do direito do cliente, não implica, sempre e necessariamente, que estejamos falando de privacidade. A própria Constituição não alia sigilo apenas à privacidade.
O direito à privacidade, assim, não é propriamente um género do direito à inviolabilidade do domicílio (estar-só), da correspondência (segredo) etc., mas apenas tem a ver com ele. Pontes de Miranda vê na inviolabilidade da correspondência e do segredo profissional um direito fundamental de "negação", uma liberdade de "negação". Como direito subjetivo fundamental aqui também há que se distinguir entre o objeto e o conteúdo. O conteúdo, a faculdade específica atribuída ao sujeito, é a faculdade de resistir ao devassamento, isto é, de manter o sigilo (da informação materializada na correspondência, na telegrafia, na comunicação de dados, na telefonia). A distinção é importante. Sigilo não é o bem protegido, não é o objeto do direito fundamental à privacidade. Diz respeito à faculdade de agir (manter sigilo, resistir ao devassamento), conteúdo estrutural do direito.
Como faculdade, porém, a manutenção do sigilo não está a serviço apenas da liberdade individual de "negação" de comunicação. Serve também à sociedade e ao Estado. Veja-se, a propósito, o inc. XXXIII do art. 5º da CF, que assegura a todos receber, dos órgãos públicos, informações de seu particular, ou de interesse coletivo ou geral, "ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado". Nada obsta que um banco oficial ou o Banco Central estivesse realizando uma grande operação cambial que, no interesse da soberania econômica do País, devesse ser mantida sob sigilo. Aqui o sigilo seria faculdade (conteúdo) atribuída à sociedade e ao Estado (sujeitos), em proteção de sua segurança (objeto). Haveria, portanto, um equívoco em falar-se em direito ao sigilo tomando a faculdade (conteúdo) pelo bem protegido (objeto), como se tratasse em si de um único direito fundamental. Ao contrário, é preciso reconhecer que o sigilo, a faculdade de manter sigilo, pode dizer respeito a informações privadas (inc. XII do art. 5°) ou de interesse da sociedade ou do Estado (inc. XXXIII do mesmo artigo). No primeiro caso, o bem protegido é uma liberdade de "negação", e, daí, a privacidade. No segundo, a segurança coletiva ou um interesse de soberania.
A liberdade de "negação" de informar o próprio pensamento tem a ver com a privacidade. Ninguém pode ser constrangido a informar sobre a sua privacidade. Mesmo a liberdade de omitir informação privativa é, porém, também um fato que tem por limite a liberdade de comunicar uma informação privativa: esta possibilidade é um fato que está na base da denúncia e do comportamento do denunciante. Diante deste fato a Constituição não o proíbe, mas ressalva e garante o sigilo profissional, isto é, a faculdade de resistir ao devassamento de informações mesmo ilegais que um sujeito, em razão de sua profissão, pode lhe ver confiadas (art. 5.", XIV). Mesmo assim, nem todo ofício está protegido pelo sigilo profissional: só aquele que, por sua natureza, exige a confidência ampla no interesse de quem confidencia. É o caso do médico, do advogado, do padre, do psicólogo etc., mas que, na palavra de Baleeiro, não alcança a profissão de banqueiro (Direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro, 1972, p. 550) Fora aqueles casos, a denúncia é uma possibilidade e até uma exigência.
Note-se, pois, que a faculdade de resistir ao devassamento (de manter sigilo), conteúdo estrutural de diferentes direitos fundamentais, não é um fim em si mesmo, parte indiscernível de um direito fundamental (uma espécie de direito fundamental da pessoa ao sigilo), mas um instrumento fundamental, cuja essência é a assessoriedade. A inviolabilidade do sigilo, como tal, pode garantir o indivíduo e sua privacidade ou a privacidade de terceiros ou ainda a segurança da sociedade e do Estado. No campo do exercício profissional, pode garantir a confidência, mesmo ilegal, que alguém ouve em razão de ofício. Mas não acoberta a ilegalidade perpetrada no âmbito da privacidade e da qual alguém, sem violência física ou mental, tem notícia.
A inviolabilidade do sigilo, não sendo faculdade exclusiva a serviço da privacidade (é também da segurança da sociedade e do Estado), é conditio sine qua non (condição), mas não é conditio per quam (causa) do direito fundamental à privacidade. Ou seja, se não houver inviolabilidade do sigilo não há privacidade, mas se houver inviolabilidade do sigilo isto não significa que haja privacidade (pode haver outra coisa, como a segurança do Estado ou da sociedade). O direito à privacidade, em consequência, sendo um fundamento em si mesmo, permite dizer que a privacidade de um indivíduo só se limita pela privacidade de outro indivíduo (como a liberdade de um só encontra limite na liberdade do outro). O mesmo, porém, não vale para a inviolabilidade do sigilo, cuja instrumentalidade remete à avaliação ponderada dos fins, à chamada "Abwägung" (sopesamento) da dogmática constitucional alemã (Eberhard Grabitz. Freiheit und Verfassungsrecht. Tübingen, 1976, p. 5). Ou seja, o posicionamento largamente difundido, na jurisprudência e na doutrina, de que o sigilo bancário é relativo não se refere à privacidade das relações ou do foro íntimo, mas à instrumentalidade do sigilo.
Tudo isso mostra, em síntese, que, quando a Constituição garante a inviolabilidade do sigilo, o princípio do sopesamento exige que o intérprete saiba distinguir entre o devassamento que fere o direito à privacidade, no seu objeto, em relação com outros objetos de outros direitos até, também protegidos pelo sigilo. Mostra também que o sigilo bancário, embora tenha a ver com privacidade, não conhece uma subsunção imediata na Constituição, embora esta, tendo em vista a inviolabilidade do direito à privacidade, exija do legislador a máxima cautela com a publicidade das relações privadas.
Isto nos conduz ao problema seguinte: a obrigação de sigilo, imposta, em nome dessa cautela, às instituições financeiras, pode ser excepcionada?
O problema, conhecido como a possibilidade de quebra de sigilo bancário, tem duas facetas: uma refere-se ao fundamento objetivo, isto é, em nome de que interesse a privacidade pode ser excepcionada; outra, ao fundamento subjetivo, isto é, quem pode excepcionar.
No início da década de 90, o Min. Carlos Mário Velloso, relator de decisão que tinha por objeto o sigilo bancário, não teve dúvidas em afirmar que não se tratava de "um direito absoluto, devendo ceder, é certo, diante do interesse público, do interesse da justiça, do interesse social, conforme aliás tem decidido esta Corte" (grifei; segue copiosa citação da jurisprudência do STF e da doutrina – cf.STF, Sessão Plenária, ac.de 25.03.1992). Do mesmo modo, no mundo financeiro internacional (e na legislação brasileira mais recente), já se notam importantes mudanças no conceito de sigilo bancário quando estão envolvidas atividades criminosas (David E. Spencer.” Capital flight and bank segcrecy:the end of an era?”. International Financial Law Review. London, may, 1992).
O direito de acesso à informação é proclamado, de forma genérica, no inc. XIV do art. 5º. da CF, fazendo-se ali a ressalva para o sigilo de fonte, quando necessário ao exercício profissional. Por extensão, estão também ressalvadas as informações que dizem respeito à intimidade, à vida privada, que afetem a honra e a imagem. Neste sentido, os atos processuais são públicos, mas correm em segredo de justiça quando dizem respeito a informações referentes à intimidade (inc.LX).
O acesso a informações, no processo administrativo, é assegurado a qualquer pessoa que tenha interesse atingido por ato constante do processo ou que atue na defesa do interesse coletivo ou geral, ressalvado o sigilo imprescindível à segurança da sociedade e do Estado (inc.XXXIII).
Esses dispositivos mostram uma preocupação do constituinte em buscar o devido equilíbrio entre o público e o privado, mais especificamente, o privativo, no que toca à obtenção de informações. O interesse público, assim, prevalece se a informação requisitada está a seu serviço (é imprescindível). Prevalece ainda sobre o interesse privado se o sigilo deve ser mantido por razões públicas (segurança da sociedade e do Estado). Não prevalece contra o segredo profissional. Quando se trata de informação sobre intimidade, exige que esta seja conservada, ocorrendo uma espécie não de quebra do sigilo, mas de transferência de sigilo. E quando se trata de sigilo da comunicação (correspondência, telegrafia, dados, telefonia), a prevalência do privado é absoluta, ressalvada a telefonia, só com autorização judicial e só para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, e as situações de estado de sítio e de defesa. Como esclarecido, esta prevalência é para qualquer tentativa de interceptação da comunicação, não para a requisição, a posteriori, de informações comunicadas.
Se há interesse público envolvido, o sigilo privado sobre informações armazenadas pode ser excepcionado. Tais interesses são os que a doutrina considera primários, ou interesses da coletividade como um todo, mas não os interesses secundários, que o Estado, pelo só fato de ser sujeito de direitos, poderia ter, como qualquer outra pessoa (cf. sobre esses termos Celso Antônio Bandeira de Mello, citando Alessi, em Curso de direito administrativo. São Paulo, 1996, p.30)
Para os interesses primários, o princípio da publicidade, portanto, impera nos processos administrativos. Mas a lei geral dos processos administrativos (Lei 9.784/99, art.2º, par. ún.), não obstante a previsão expressa da Constituição Federal (art.37), ressalva as hipóteses de sigilo previstas na própria Constituição. E a Lei 8.884/94, que disciplina o processo administrativo de competência dos órgãos de defesa da concorrência, prevê o respeito ao sigilo legal na requisição de documentos e informações (arts.7º,IX,14,II).
Na verdade, o que se observa destes dispositivos, constitucionais e legais, é que, no confronto entre o princípio da transparência, que domina a esfera pública, e o da exclusividade, que domina a privacidade, há uma percepção de que entre as duas esferas se insere a esfera do social e do mercado. Por isso, há uma forte tendência em submeter a privacidade à transparência, se o interesse público é primário e patente, mas procurando garantir a privacidade contra os interesses do mercado. Assim, o processo judicial manifesta, por si, um interesse público; por isso, em princípio, deve ser transparente, salvo se estiver em questão a intimidade. Os processos administrativos, por envolver matéria de interesse público, devem ser transparentes, ressalvado o sigilo legal, quando então alguns documentos poderiam ser protocolados em apartado. Ou seja, nestes casos, o sigilo não seria, propriamente, quebrado, mas “transferido de órgão para órgão, mantendo-se, porém, perante outros (sobre este conceito, v. Oswaldo Othon Saraiva Filho, “Sigilo bancário e administração tributária”, RT, Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas, 1995, II/57).
No que se refere ao sigilo bancário, esse posicionamento significaria que o sigilo é inviolável perante outros agentes privados (mercado), mas não perante autoridades, mas desde que obrigados ao sigilo. Em consequência, violável perante o mercado, só mediante autorização judicial. A questão, porém, é longe de ser pacífica e envolve a existência de competência conferida diretamente pela Constituição.
Assim, em favor da possibilidade de quebra de sigilo bancário diretamente por parte do Fisco, mediante processo administrativo específico, há quem defenda a interpretação de que tanto a LC 105/2001 como o CTN (art.197,II) teriam supedâneo constitucional no art. 145 da CF, que daria à Receita aquela competência, o que tem levado grandes objeções. As posições mais rígidas são, então, no sentido de que só o Poder Judiciário teria essa competência ou, quando muito, uma CPI do Congresso Nacional, posto que o art. 58, §3.º, da CF lhe conferiria poderes de investigação próprios das autoridades judiciais.
Examinemos o problema.
A questão do fundamento subjetivo, isto é, de quem pode quebrar o sigilo, também ganha sentido na reflexão sobre a privacidade como um direito fundado na liberdade e não na propriedade.
Se o fundamento estivesse no direito de propriedade, faria sentido a tese de que, estando um determinado órgão obrigado ao sigilo, a transferência de documento sigiloso a outro, igualmente obrigado ao sigilo, significaria apenas a transferência de posse do documento. De resto, o sigilo estaria preservado.
Sucede, porém, que aquele fundamento está no direito de liberdade. Donde, o problema do sigilo bancário está antes na hipótese de proteção contra a intromissão indevida de terceiros. A exclusividade é exclusão de qualquer um que possa ter outro interesse marcado pela parcialidade. Ou seja, o princípio da exclusividade, tendo a ver com a liberdade de omitir informação, permite que alguém possa ver garantido o seu direito de um outro sujeito privado, alheio a uma relação, informar-se sobre o conteúdo das relações entre um emissor e um receptor sem autorização de um deles ou de ambos, mas também de ficar calado perante a autoridade investigadora ou de que informações de posse desta, porque obtidas ilegitimamente, não possam ser utilizadas contra ele.
É o que se percebe no voto do Min. Velloso, pronunciado no RE 215.301-CE (DJ 28.05.1999, RTJ 169/700), tendo por tema a quebra do sigilo bancário pelo Ministério Público. Reiterando que o sigilo bancário é direito que deve ceder "diante do interesse público, diante do interesse social, diante do interesse da justiça", esclarece que, todavia, "a quebra não pode ser feita por quem não tem o dever de imparcialidade". Em seu voto, aprovado por unanimidade pela 2.ª T. (Ministros Marco Aurélio, Maurício Corrêa, Nelson Jobim, ausente Néri da Silveira), considera que o Ministério Público, "por mais importantes que sejam suas funções, não tem a obrigação de ser imparcial".
Por outro lado, a exclusão de quem tem outro interesse marcado pela parcialidade reafirma a hipótese de que só o juiz, por ter o dever de imparcialidade, é autoridade competente para a quebra de sigilo. Ressalvadas a essa competência exclusiva só ocorrem ou porque a própria Constituição as faz em relação a alguma autoridade cuja competência inclui a do juiz (caso das CPIs do Congresso) ou porque, na sua materialidade, o outro interesse, em si próprio, não é parcial, mas é público e primariamente público. Seria este o caso da Administração Tributária?
O STF, assim, afirmando que o sigilo bancário tem fundamento constitucional no direito à privacidade, decidiu, por apertada margem, que o Ministério Público, conquanto não tivesse, na Constituição, clara competência para exigir, sem autorização judicial, informação protegida pelo referido sigilo, poderia fazê-lo, desde que se tratasse de operação bancária envolvendo verbas públicas (MS 21.729-DF, rel. Min. Marco Aurélio, 05.10.1995). Ou seja, matizava-se a incompetência genérica (ninguém, salvo o Poder Judiciário e as CPIs) pelo princípio da publicidade (ressalvada a investigação sobre objeto de interesse público primário).
Entendo que esta posição busca fundamento, ao fim e ao cabo, numa concepção do sigilo bancário como um objeto relevante para a esfera da privacidade e assim definido em lei, mas submetido às relatividades próprias da exigência instrumental de sigilo. Assim, o sigilo há de ser mantido se não há interesse público primário nele envolvido. Neste caso, só a autoridade judicial pode quebrá-lo ou a CPI do Congresso, nos limites de sua competência constitucional. Havendo interesse público primário é preciso que este esteja constituído pelo próprio documento exigido (caso de operação com verbas públicas) e não que seja mero instrumento para a perseguição de outro interesse ainda que público.
Como ficaria, então, a quebra de sigilo bancário pela própria autoridade Fiscal, sem autorização judicial? Estaria admitido, falando-se de interesse público primário? Em que limites a autoridade fiscal pode exercer sua atuação fiscalizadora, no que diz respeito ao disposto nos incs. X e XII do art. 5.º da CF?
O art. 174 da Constituição determina que o Estado, como agente normativo e regulador da atividade econômica, exerça, entre outras, a função de fiscalização, na forma da lei. Fiscalizar, um dos sentidos da palavra controlar (cf. Fábio Comparato, p. 14), significa vigiar, verificar e, nos casos de anormalidade, censurar (Caldas Aulete, verbete "fiscalizar"). Fiscalização é, pois, vigilância, donde verificação continuada e, detectada a anormalidade, é censura. O acesso continuado a informações faz parte da fiscalização. Sem isso não há vigilância. O acesso intermitente, na verificação da anormalidade, faz parte da censura, que implica castigo, punição.
A competência da administração fazendária para o exercício da função fiscalizadora encontra embasamento constitucional em vários dispositivos.
Por exemplo, na prevenção (vigilância) e repressão (censura) do contrabando e do descaminho, em sua área de competência, ela é afirmada no art. 144, § 1.º, II. Já o art. 145, § 1.°, ao estabelecer o princípio da capacidade contributiva conforme o qual os impostos, sempre que possível, devem ter caráter pessoal e ser graduados, faculta à administração tributária, "especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte". Esta faculdade de identificar está ligada à implementação de um princípio. Note-se que o constituinte usa a expressão especialmente para conferir a faculdade referida. Este advérbio, em português, significa "de modo especial; particularmente; principalmente; nomeadamente" (Aulete, verbete "especialmente"). Ou seja, pode significar exclusivamente (só para aquela espécie) ou principalmente (sobretudo, mas não só para aquela espécie). Ora, tendo em vista a função fiscalizadora da administração tributária, parece-nos que o advérbio está usado no segundo e não no primeiro sentido. Ou seja, o constituinte, de um lado, escreveu especialmente porque a mencionada faculdade de identificar não é de presunção óbvia para o efeito de assegurar efetividade àquele princípio e, se não fosse aí inscrita, não se poderia inferir a sua autorização. De outro lado, porque o fez expressamente, admitiu, ao fazê-lo, implicitamente e a contrario sensu, que a identificação de patrimônio, rendimento e atividades econômicas do contribuinte é uma presunção da função fiscalizadora da administração tributária. Interpretar de outro modo é tomar impossível a exigência de declaração de bens, de rendimentos etc.
Por cautela, embora isso nem fosse preciso, o dispositivo exige respeito aos direitos individuais. Ademais que a identificação se faça nos termos da lei. Isto vale tanto para o caso especial, como para a fiscalização em geral.
No que se refere à fiscalização em geral, vale, em termos legais, o disposto no art. 5.° da LC 105/2001. Até agora falamos da fiscalização intermitente, que procede mediante processo instaurado. Resta-nos examinar o teor daquele artigo.
Trata-se de informações contínuas, referentes à identificação de titulares de operações financeiras e seus montantes, vedada a identificação da origem e natureza dos gastos. Feriria tal identificação a privacidade enquanto autoconsistência moral da pessoa?
Como se vê está aqui a possibilidade de se exigirem informações cadastrais
relativas a nome, filiação, endereço e número de inscrição no CPF ou CGC, aliadas
a montantes das operações.
Que este tipo de dado possa ser exigido pela administração fazendária no exercício da fiscalização intermitente, parece-me plausível. O art. 5.º da LC 105/2001 refere-se, porém, à fiscalização continuada, em termos de vigilância. O que se pretende é alcançar, pelo cruzamento de cadastros de nomes, endereços, filiação (para os casos de homonímia) e número do CPF ou CGC, aliados a montantes, pistas que conduzam a eventuais fraudes, como uso de documento fiscal falso, ou de terceiros, omissão de receita etc. O interesse da fiscalização não está, aí, na identificação das relações de convivência próprias da vida privada, mas na identificação de um documento oficial (CPF,CGC) e o respectivo portador e os montantes operacionalizados. Não se quer atingir o uso do serviço (bancário, de cartão de crédito etc.), mas a identidade tributária do usuário e o montante de sua movimentação financeira. É este dado e somente este dado que, não estando protegido pela privacidade, pode ser exigido sem a necessidade de processo instaurado.
Poder-se-ia contra-argumentar que, ao fornecer os elementos, identificadores do usuário e dos montantes, estar-se-iam também fornecendo dados referentes à sua vida privada. Em questão está a fiscalização-vigilância, isto é, a requisição de dados sem a instauração de processo. Afinal, compõem os montantes das operações um dado da privacidade, interditando-se à Administração o acesso à sua comunicação (entre instituição financeira e cliente)?
Não resta dúvida de que tanto a privacidade quanto a inviolabilidade de sigilo de dados, inseridas no art. 5.° da CF, são uma peça fundante da própria cidadania, ao lado de outros direitos fundamentais ali expressos. O sigilo, nesse sentido, tem a ver com a segurança do cidadão, princípio cujo conteúdo valorativo diz respeito à exclusão do arbítrio, não só de parte da sociedade como sobretudo do Estado, que só pode agir submisso à ordem normativa que o constitui. Nestes termos, a cidadania, exigência do princípio republicano, que a reclama como uma espécie de fundamento primeiro da vida política e, por consequência, do Estado, antecede o Estado, não sendo por ele instituída. É ela que constitui a distinção entre o público e o privado, sob pena de perversão da soberania popular (CF, art. 1.°, par. ún.). As competências estabelecidas e atribuídas ao Estado devem, pois, estar submetidas ao reconhecimento do indivíduo como cidadão, cuja dignidade se corporifica em direitos fundamentais.
Por outro lado, o Poder Público não pode ser inibido de exercei suas funções, mormente a de fiscalização, por isso que a própria Constituição, no rol mesmo dos direitos fundamentais, prevê o sigilo para atividades do próprio Estado. Quando o assunto envolve inviolabilidade de sigilo de dados privativos que protege o cidadão, mas não aquele interesse do cidadão cujo sentido social é primordial, o dever de fiscalização impõe, afinal, ao Fisco, na coleta e no tratamento dos dados, igual sigilo.
O sopesamento necessário entre essas duas premissas leva-me a entender que montantes de operações não fazem parte nem da intimidade nem da vida privada. Não perante a Administração Tributária (que deles tem o dever de sigilo, sendo inconstitucional sua comunicação a outros entes administrativos que não têm o mesmo dever). A mesma questão, aliás, já aparecia em semelhante dispositivo na lei referente à lavagem de dinheiro. Mas entendo, também, que o art. 5.º da LC 105/2001 contém uma delegação inconstitucional ao Poder Executivo. A própria lei deveria disciplinar os critérios que menciona.
Sendo estas as observações que tinha a fazer sobre o tema, subscrevo-me, atenciosamente.
Fonte: Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, ano 5, nº 9, janeiro-junho, 2002, RT: 2002, pp. 161-177
Texto digitado e organizado por: Gabriela Faggin Mastro Andréa.