Juntar polícias, Receita, Exército, inteligência.
É o conselho do advogado Tercio Sampaio Ferraz,
que já discutia o assunto em 1990,
quando era secretário de Justiça do ministro
Bernardo Cabral, no governo Collor.
Foi já no governo Collor, em 1990, que o crime organizado adquiriu, pela primeira vez, status de problema nacional e entrou para a agenda do Ministério da Justiça. Secretário executivo do ministro Bernardo Cabral, o advogado Tércio Sampaio Ferraz Jr. ouviu o conselho de um advogado paulista, seu amigo: “Tércio, está acontecendo no Brasil uma coisa muito perigosa, chamada crime organizado. E a gente não está fazendo nada”. O recado prosseguia com uma advertência: “Se esse negócio se alastrar, vamos ter muitos problemas”.
Quase três décadas depois, ante o colapso da segurança em quase metade do País, mais o poder paralelo que manda e desmanda nos presídios e a intervenção no Rio de Janeiro, o antigo secretário executivo conta, nesta entrevista a Gabriel Manzano, o fim do episódio: “Começamos a discutir o assunto ali por setembro, outubro de 1990. Em seguida o ministro Cabral caiu e eu saí com ele. A ideia não avançou”.
Na análise sobre o momento político-jurídico do País, Ferraz adverte que “o Rio vive uma situação de guerra e só se pode combater o crime organizado organizadamente”. Ele fala também do conturbado convívio, no País, entre justiça e vingança e das confusões que se fazem entre o papel do procurador ou do advogado, que são partes em um processo, e o do juiz ou ministro da corte, que tem de ser imparcial. Por fim, elogia a Lava Jato por ter rompido as barreiras entre ricos impunes e pobres desassistidos. A seguir, os principais trechos da entrevista.
‘ESTRUTURA URBANA
DO RIO É UMA COISA
PERVERSA E AJUDA
A AÇÃO DO CRIME’
Intervir no Rio foi uma boa ideia do governo Temer?
A intervenção traz desafios nada simples, dada a estrutura urbana do Rio, que é perversa para efeitos de segurança. Ali se criou uma situação de quase guerra. A convivência da criminalidade organizada com o todo social é diferente – e se traduz numa confusão que é uma vantagem e um atrativo para os criminosos.
Vantagem de que forma?
Eles já estão naturalmente próximos dos lugares onde vendem seu produto. O cenário lhes permite executar ações rápidas. Não falo do crime ocasional, mas do crime organizado. Uma coisa é invadir um banco com armas, outra é ter dentro de uma comunidade social armas pesadas, de guerra. Isso é um desafio difícil para uma intervenção? Sim, é ruim.
Ruim porque o campo de batalha inclui as próprias casas dos moradores, um problema inteiramente novo, é isso?
Novo não é. Um combate dessa natureza começou na Primeira Guerra Mundial, quando bombas e armas pesadas invadiram as cidades. A tomada de Antuérpia pelos nazistas, na Bélgica, foi um episódio terrível. Os canhões atiravam bombas fortíssimas sobre praças e igrejas, no centro da cidade.
Mas hoje os tempos são de paz, é possível aprovar leis e forçar seu cumprimento, superar conflitos sem massacres.
Outros tempos, sim, que trazem outros desafios. Vou lhe contar uma história de minha passagem pelo governo Collor, em 1990. Eu era secretário executivo do ministro da Justiça, Bernardo Cabral. Certo dia um advogado amigo meu me ligou e disse: “Tércio, tá acontecendo no Brasil uma coisa muito perigosa, chamada crime organizado. E a gente não está fazendo nada”. Aquilo estava apenas começando. Ele lembrou que “se esse negócio se alastrar, vamos ter muitos problemas”. E foi além: “Uma ideia talvez seja vocês criarem na Justiça um grupo pra estudar, sugiro chamar todos os secretários de Segurança”.
Desde esse telefonema, o governo central deixou que se passassem 28 anos. O que o sr. fez?
Aceitei a sugestão, convoquei os secretários e à minha volta muita gente estranhou. Começamos a discutir isso lá por setembro, outubro. Aí o Cabral caiu… e eu saí junto com ele. A ideia não avançou. Mas por que estou lembrando esse fato? Porque a ideia ficou. Você tem de combater o crime organizado organizadamente.
‘EU JÁ OUVIA EM 1990:
‘SE ISSO SE ALASTRAR,
VAMOS TER PROBLEMAS’
Somando-se as críticas políticas, as dúvidas jurídicas e o evidente improviso que marcou a iniciativa no Rio, não parece que organização seja o forte da iniciativa.
Muito disso pode ser explicado. Primeiro, não dá pra se usar o direito tal como foi desenvolvido no século 19, quando os conflitos sociais eram entre indivíduos. O que havia então era, no máximo, uma quadrilha – um grupo efêmero, com operações rápidas. O crime organizado, que se implanta pra valer nos anos 20 e 30 do século passado nos Estados Unidos, é um fenômeno de proporções inteiramente diferentes. E como os americanos se defenderam? Eles criaram uma polícia nacional, o que dentro de uma federação como aquela constituía uma agressão. Mas a prioridade era clara: combater um inimigo poderoso. Foram derrubando preconceitos, juntaram esforços com a polícia tributária. A propósito, foi com isso que pegaram o maior bandido da época, o Al Capone. Enfim, criaram organizações capazes de enfrentar o problema. No Brasil não temos isso.
O governo está agora tentando montar um Ministério da Segurança. É o caminho?
Se puserem na cabeça o que os outros já aprenderam, se articularem uma grande organização, juntando Receita, Polícia, Exército, e usando adequadamente a inteligência, por aí talvez consigamos alguma coisa nos próximos 20 anos.
Apesar dessa demora, seria uma resposta à altura da complexidade da situação que o País vive hoje?
Me parece que sim.
O sr. imagina que, na atual missão no Rio, se possa fazer tudo dentro do rigor da lei?
Vou lhe recordar um exemplo, não na área criminal mas na civil. Estive no Recife, por volta de 1980, e ali começavam as primeiras invasões urbanas. Para se ter a restituição da posse, o juiz determinava hora e local e como fazer isso – mas a natureza da ocupação complicava. O que aconteceu? Os juízes começaram a fazer vista grossa para resolver. Depois o código foi mudado pra permitir caminhos e soluções mais práticas. Do ponto de vista criminal, estamos vivendo hoje coisa parecida. Porque você não está enfrentando fulano ou sicrano. Está enfrentando o crime organizado, que sabe muito bem como lidar com isso. Ele envolve famílias em suas operações, quer elas queiram ou não, passa de uma casa à outra, toma conta da rua…
Isso significa que a autoridade tem de escolher entre cumprir a lei ou “fazer vista grossa” em nome de um interesse maior?
Eu não recriminaria um advogado que se queixasse disso. Porque ele foi educado para respeitar a lei e exigir que ela seja cumprida. O que temos aí é que essa atitude do advogado é legítima, mas a bola quente vai cair no colo de um juiz. E juiz não é parte. Para decidir ele tem de confrontar a lei com a vida real, com o dado social e humano. Por definição, juiz é imparcial.
O sr. está dando um curso em que compara as ideias de justiça e vingança. Como avalia esse confronto no Brasil de hoje?
Ao longo da história, a cultura ocidental fez um enorme esforço para separar vingança da justiça. Era um empenho em busca do Estado de Direito. Nesse processo, cabe à Justiça fazer com que a vingança seja posta de lado, consagrando-se a imparcialidade dos juízes. A ideia é que o Estado age pelo interesse geral: o indivíduo vai preso, deve ser reeducado. Não há nisso nada de vingança. Mas é claro que na sociedade há a subjetividade, é impossível retirá-la do contexto, conter o desejo de retaliação.
E na vida real, não só no Brasil, vive-se um período de ouro para os acusadores e vingadores, não?
Sim, vivemos um clima em que a acusação tem um relevo enorme. E a acusação é um fenômeno fortemente ligado à vingança. Veja-se a recente onda de denúncias de assédio, pelo mundo afora. Lembro aqui um fato essencial: a vingança olha um crime muito mais do ponto de vista da vítima. A Justiça racional tem de olhá-lo da perspectiva do autor.
Concretamente, o que isso quer dizer?
Que cabe à Justiça buscar equilíbrios entre o que ele, autor do crime, fez, e o modo como vai ser punido. Ou criar algo que a sociedade vê com olhos de repulsa, que se chama direito do criminoso. É uma expressão que, do ponto de vista da vingança, não faz sentido.
Sim, quem perdeu um ente querido assassinado, muitas vezes não quer saber de justiça, quer vingança.
De fato, essa é a perspectiva da vítima. Veja no caso da corrupção. Um sujeito roubou R$ 100 milhões e para a sociedade não basta ele devolver. Ele não pode ser olhado na rua, não deveria nem sobreviver em sua casa, tem é que sofrer. Isso afeta a aplicação da Justiça? Sim, afeta. É impossível separar as duas coisas na vida real.
Há quem acuse o projeto das Dez Medidas de ser inspirado por vingança. Concorda?
Eu diria que há sim um componente, mas não no sentido subjetivo. Ou seja, não estou dizendo que os promotores sejam vingativos. Mas no sentido de que o que se busca é uma possibilidade de justiça, ainda que impelida por um olhar de vingança. Papel de promotor é acusar, e acusar é algo mais próximo da vingança do que da justiça.
A propósito, que balanço o sr. faz da Lava Jato? Ela tem algo desse fenômeno?
A Lava Jato provocou uma sensibilidade social rumo a uma certa igualdade – ela tenta eliminar a discriminação entre o pobre e o rico. Não que nunca houvesse rico na prisão, mas ela rompeu uma barreira, o que é um fato importante, dada a nossa estrutura desigual. Quebrou um pouco aquela velha regra de que “a prisão é um lugar tão terrível que seria uma injustiça colocar um rico lá dentro”. Ela está impondo uma nova visão, do tipo “por pior que seja a prisão, quem cometeu um crime tem de ir pra cadeia”. Mas há um lado negativo, que é açular o espírito de vingança, socialmente falando. De uma forma difusa, desconcentrada. Mas é uma coisa que antes o Brasil não tinha.
FONTE: http://cultura.estadao.com.br/blogs/direto-da-fonte/solucao-para-o-rio-e-integrar-forcas-crime-organizado-so-se-combate-organizadamente/