Tercio Sampaio Ferraz Jr.
SUMARIO: 1. Dificuldades preliminares na colocação do problema - 2. A teoria da norma como teoria (pragmá-tica) da decisão — 3. O direito como sistema de controle do comportamento — 4. Dimensão pragmática da norma jurídica — 5. Os operadores pragmáticos, conteúdo e condições de aplicação da informação normativa — 6. Relação entre norma e sanção — 7. A validade das nor-mas do ângulo pragmático — 8. A efetividade das normas jurídicas — 9. A imperatividade das normas jurídicas — 10. A ordem normativa como sistema.
1. DIFICULDADES PRELIMINARES NA COLOCAÇÃO DO PROBLEMA
Embora o positivismo jurídico radical não corresponda à con-cepção mais aceita pela doutrina, a compreensão dominante da norma continua a vê-la como um imperativo acabado e dado antes do caso concreto ao qual ela se aplica.
Neste esquema usual de captação da norma pela teoria jurí-dica ocorre uma espécie de vácuo significativo, em que a norma não é nem a realidade, nem já situação à qual ela se aplica, mas uma entidade independente que faz, às vezes, da teoria da norma uma espécie de discurso vazio ou, pelo menos, equivocadamente abstrato. Sabemos de que estamos falando quando perguntamos a propósito de uma lei promulgada ontem, ou de uma sentença prolatada no tribunal, ou de um contrato firmado em nossa pre-sença etc. Mas a busca da norma jurídica em todos estes fenô-menos jurídicos parece uma empresa demasiadamente abstrata que acaba por construir seu objeto antes mesmo de começar a discorrer sobre ele.
Produto de um ato de vontade? Manifestação da superioridade de uma vontade sobre outra? Tipificação homogênea e geral para uma realidade singular e heterogênea? Entidade a se, que não se confunde com a realidade a que se aplica nem com a situação normada? Um esquema doador de sentido, como sugere Kelsen?
A questão, assim colocada, abre um leque de possibilidades. Para organizá-lo — e não para esgotá-lo — vamos propor um mo-delo de análise.
Modelo entende-se aqui como padrão esquemático, esquema simbólico que seleciona traços comuns de fenômenos individuais, ostensivamente diferentes, agrupando-os em classes. Neste sentido, modelos constituem objetos de teorias. Estas teorias são, por sua vez, modelos num segundo sentido, isto é, esquemas simbólicos que se referem aos anteriores, consistindo em sistemas de enun-ciados logicamente concatenados, sempre aproximativos, num grau de abstração superior. Chamemos o primeiro de modelo-objeto. Os segundos de modelos teóricos. Admitamos, sem maiores especificações, que nosso modelo-objeto é a norma jurídica. Veja-mos tipos de modelos teóricos que a ela se referem.
O primeiro deles é aquele que, diante da complexidade do fe-nômeno, procura dominá-lo através de recursos sistemáticos, dis-tinguindo o objeto de outros, classificando-o, descobrindo-lhe as estruturas imanentes, acentuando-lhe o caráter distintivo para poder revelá-lo na sua pureza. Denominemo-lo de modelo-analítico. O segundo, diante da mesma complexidade, se serve de instrumen-tos descritivos, subordinando a estes os recursos sistematizadores, procurando captar o objeto na sua pertinência inseparável ao con-texto dentro do qual e só dentro do qual é capaz de possuir um sentido. Por esta preocupação com o sentido contextual vamos chamá-lo de modelo hermenêutico. O terceiro, posto diante da mesma questão, vale-se de recursos funcionais, subordinando a estes os sistemáticos e os descritivos, procurando captar o objeto pela função que ele desempenha no contexto. Por acentuar este aspecto funcional, vamos chamá-lo de modelo empírico. Não por-que constitua uma descrição empírica de fatos, mas porque se preocupa com o papel desempenhado pelo objeto numa situação dada, procurando dar-lhe as condições de uma atuação melhor ou pior. Em linhas gerais, o primeiro modelo vê a norma como um objeto logicizado. O segundo a vê como o pólo de uma relação. O terceiro a encara como um processo decisório.
O leitor pode objetar que, nas diferentes teorias da norma jurídica de que já ouviu falar, estes caracteres não estão separados, mas combinados. É verdade. Mas não vamos nos preocupar com as teorias realizadas, pois ou ficaríamos numa mera classificação de posições estabelecidas ou numa enumeração infindável de uma série heteróclita. Nossa intenção é assumir um dos três modelos e propor uma teoria geral da norma jurídica.
Optamos é pelo terceiro modelo. Nossa abordagem não se coloca num prisma ontológico, ou seja, não aspiramos a uma de-terminação essencial da norma jurídica. Desejamos apenas exa-miná-la num dos seus aspectos de manifestação. Ao assumirmos o modelo empírico, que encara a norma como um processo comuni-cativo, somos conduzidos aos fenômenos linguísticos, do ponto de vista pragmático. Preliminarmente, desejamos, pois, situar teori-camente a análise, fornecer do o quadro conceitual com que tra-balhamos.
2. A TEORIA DA NORMA COMO TEORIA (PRAGMÁTICA) DA DECISÃO
Antes de mais nada, é bom que se esclareça em que sentido estamos usando o que chamamos de modelo empírico. Por este modelo entendemos um sistema explicativo do comportamento hu-mano enquanto regulado por normas. Embora a primeira impres-são, provocada pelo uso de termos como "empírico", "explicativo", "comportamento humano", seja a de que o jurista, neste caso, passa a encarar o direito como um fenômeno social a ser descrito, donde uma eventual redução da Ciência do Direito a Sociologia Jurídica, não é este o sentido que propomos para modelo empírico. Reconhecemos, é verdade, que correntes há e houve que praticaram uma espécie de sociologismo jurídico, com a expressa intenção de fazer da ciência jurídica uma ciência social, empírica nos moldes das ciências do comportamento (sociologia, psicologia). Mas não é a elas que nos reportamos. Nestes termos, o modelo empírico deve ser entendido não como descrição do direito como realidade social, mas como investigação dos instrumentos jurídicos de controle de comportamento. Não se trata de saber se o direito é um sistema de controle, mas, assumindo-se que ele o seja, como devemos fazer para exercer este controle.
A grande dificuldade de expor a questão nos moldes propostos está em que uma teoria da decisão jurídica está ainda para ser feita. O fenômeno da decisão é quase sempre analisado parcial-mente, disperso nos quadros da dogmática jurídica da teoria do método e do progresso, da administração etc. Deste modo, curio-samente, embora a produção de decisões vinculantes e obrigató-rias seja um tema incontornável para o jurista, a sua discussão em termos de ciência jurídica ou é restrita à discussão filosófica da legitimidade do direito ou se perde em indicações esparsas e não aprofundadasde técnicas decisórias (legislativas, administrativas, jurídicas). Nossa tarefa desdobra-se, nestes termos, primeiramente em encontrar, ao menos como hipóteses de trabalho, um sentido nuclear para o que se possa chamar de decisão.
Na mais antiga tradição, o termo decisão está ligado aos processos deliberativos. Assumindo-se que estes, do ângulo do indivíduo, constituem estados psicológicos de suspensão de juízo diante de opções possíveis, a decisão aparece como um ato final, em que uma possibilidade é escolhida, rejeitando-se outras. Modernamente, o conceito de decisão tem sido visto como o ato culminante de um processo que, num sentido amplo, pode ser chamado de aprendizagem. Em que pese divergências teoréticas importantes, costuma-se dizer que ao processo de aprendizagem pertencem “impulso”, “motivação”, “reação” e “recompensa”. “Impulso” pode ser entendido como uma questão conflitiva, isto é, um conjunto de proposições incompatíveis numa situação e que exigem uma resposta. A “motivação” corresponde ao conjunto de expectativas que nos forçam a encarar as incompatibilidades com um conflito, isto é, como exigindo uma resposta. A “reação’’ é propriamente a resposta exigida. A “recompensa” é o objetivo, a situação final na qual se alcança uma relação definitiva em função do ponto de partida. Nesse quadro, a decisão é procedimento cujo momento culminante é um ato de resposta. Com ela, podemos pretender uma satisfação imediata para o conflito, no sentido de que propostas incompatíveis são acomodadas ou superadas.
Esta resposta é uma forma de subordinação, que pode receber o nome de compromisso, conciliação ou tolerância, conforme as possibilidades incompatíveis pareçam a) equivalentemente convin-centes, b) não equivalentemente convincentes, mas sem que se veja qual a recompensa viável se tomada uma decisão, c) não equi-valentemente convincentes, mas obrigando a uma composição para evitar conflitos maiores. Com a decisão podemos também buscar satisfação mediata, quando somos obrigados a responder às in-compatibilidades relativas às condições das próprias "satisfações imediatas" (conflito sobre as possibilidades de conflito), caso em que a decisão se refere a expectativas grupais que devem ser le-vadas em conta para a solução de certos conflitos, expectativas sociopolíticas que se referem às condições de garantia dos objetivos grupais, e a expectativas jurídicas, referidas às condições institucionalizadoras da possibilidade mesma de determinação dos obje-tivos sociopolíticos.
Esta visão alargada da decisão faz-nos ver que se trata de um processo dentro de outro processo, muito mais amplo que a estrita deliberação individual. O ato decisório é visto aqui como um com-ponente de uma situação de comunicação entendida como um sis-tema interativo, pois decidir é ato de comportamento que, como tal, é sempre referido a outrem, em diferentes níveis recorrentes. Decisão é termo correlato de conflito. Este é entendido como con-junto de alternativas que surgem da diversidade de interesses, da diversidade no enfoque dos interesses, da diversidade das condições e de avaliação etc. e que não prevêem, em princípio, parâmetros qualificados de solução, exigindo, por isso mesmo, decisão. A decisão não é, necessariamente, estabelecimento de uma repartição equita-tiva entre as alternativas de melhores chances, pois isso pressupõe a situação ideal de um sujeito que delibera apenas depois de ter todos os dados relevantes, podendo enumerar e avaliar as alter-nativas de antemão. A decisão, neste sentido, não é um mero ato de escolha, possível em situações simples, mas não constituindo a regra nas situações complexas, onde as avaliações não são nítidas nem as alternativas são tão claras. Sua finalidade imediata é a absorção da insegurança (Simon/March) no sentido de que, a partir de alternativas incomparáveis (que, pela sua própria com-plexidade, constituem, cada uma de per si, novas alternativas: pagar ou sujeitar-se a um processo, sendo pagar entendível como pagar à vista, a prazo, com promissórias, com ou sem garantias etc.), obtemos outras premissas para uma decisão subsequente, sem ter de retornar continuamente às incompatibilidades primárias. Deci-dir, assim, é um ato de uma série que visa a transformar incom-patibilidades indecidíveis em alternativas decidíveis, mas que, num momento seguinte, podem gerar novas situações até mais com-plexas que as anteriores. Na verdade, o conceito moderno de de-cisão a liberta do tradicional conceito de harmonia e consenso, como se em toda decisão estivesse em jogo a possibilidade mesma de safar-se de vez de uma relação de conflito. Ao contrário, se o conflito é condição de possibilidade da decisão, na medida em que a exige, a partir dela ele não é eliminado, mas apenas transformado. Por essas observações podemos perceber que a concepção do que poderíamos chamar de decisão jurídica é correlata de uma concepção de conflito jurídico. Assumindo-se que conflitos ocorrem, socialmente, entre partes que se comunicam e que, ao mesmo tempo, são capazes de transmitir e receber informações, conflitos correspondem a uma interrupção na comunicação ou porque quem transmite se recusa a transmitir o que dela se espera ou quem recebe se recusa a receber criando-se expectativas desiludidas. Ora, há casos em que aos comunicadores sociais é atribuída a possibi-lidade de exigir a comunicação recusada. Esta possibilidade de exigência muda a situação, pois as alternativas que surgem da interrupção da comunicação deixam de ser a mera expressão subjetiva dos comunicadores sociais, para submeter-se a uma coordenaçõo-objetiva (Reale: Filosofia do Direito, págs. 607 e segs.) que liga os comunicadores entre si, conferindo-lhes esferas autô-nomas de ação, obriga-os e ao mesmo tempo lhes confere poderes.
Conflito jurídico, então, é uma questão incompatível no sen-tido de um conflito institucionalizado. Toda questão conflitiva pressupõe uma situação comunicativa estruturada, isto é, dotada de certas regras. Segue-se daí que há uma relação entre a estru-tura da situação e o modo do conflito. Uma situação pouco dife-renciada, em que a solução de conflitos se funde na capacidade individual das partes, o papel do que decide é bastante limitado e quase não se diferencia em relação às partes conflitantes. É o que ocorre, por exemplo, com o comportamento da autodefesa, em sociedades pouco complexas. O aumento da complexidade estru-tural da situação comunicativa implica, porém, uma diferenciação crescente do decididor. Esta diferenciação faz com que o conflito passe a referir-se também ao procedimento decisório, e, pois, à participação do decididor, atribuindo-lhe um comportamento pe-culiar, no que se refere à capacidade de decidir conflitos.
Esta peculiaridade, em oposição a outros meios de solução de conflitos (sociais, políticos, religiosos etc.) revela-se na sua capa-cidade de terminá-los e não apenas de solucioná-los. Vimos, porém, que decisões não eliminam conflitos. Que significa, pois, a afir-mação de que as decisões jurídicas terminam conflitos? Isto signi-fica, simplesmente, que a decisão jurídica (a lei, a norma consuetudinária, a decisão do juiz etc.) impede a continuação de um conflito: ela não o termina através de uma solução, mas o solu-ciona pondo-lhe um fim. Pôr-lhe um fim não quer dizer eliminar a incompatibilidade primitiva, mas trazê-la para uma situação, onde ela não pode mais ser retomada ou levada adiante (coisa julgada).
3. O DIREITO COMO SISTEMA DE CONTROLE DO COMPORTAMENTO
O desenvolvimento de um quadro teórico capaz de captar o direito, ligando a noção de decisão à noção de controle, está ainda no seu princípio: é verdade, autores há que empreendem uma tarefa deste gênero, mas os trabalhos publicados são antes mono-grafias sobre assuntos específicos, uma teoria da decisão jurídica como um problema de controle do comportamento estando ainda por ser feita.
Desejamos, contudo, fazer uma especial referência a obra re-centemente publicada entre nós (cf. Fábio Konder Comparato: O Poder de Controle na Sociedade Anônima), onde o tema é abor-dado já dentro de um espírito novo e que nos mostra os caminhos de uma concepção renovada da ciência jurídica nos quadros do modelo empírico.
Comparato nota que, em dois sentidos com que a lei usa em português, o neologismo controle — sentido forte de dominação e acepção mais atenuada de disciplina ou regulação — é o primeiro que merecia especial atenção do jurista, sobretudo tendo em vista a necessidade de incorporar o fenômeno do poder como elemento fundamental da teorização do direito. A doutrina costuma enca-rá-lo, porém, como simples fato extrajurídico, o que ocorre sobre-tudo no direito privado, mas também no direito público, onde a noção de poder é esvaziada pelas limitadas e restritivas concepções vigentes nos currículos jurídicos em termos de Teoria Geral do Estado. Tradicionalmente, a noção de poder costuma ser assina-lada nos processos de formação do direito, na verdade como um elemento importante, mas, que esgota sua função quando o direito surge, passando, daí por diante, a contrapor-se a ele nos termos da dicotomia do poder e direito, como se, nascido o direito, o poder se mantivesse um fenômeno isolado (em termos de arbítrio, força) ou então um fenômeno esvaziado (poder do Estado, juridicamente limitado). Como fenômeno isolado ele aparece, assim, como algo que põe em risco o próprio direito; como fenômeno esvaziado surge como um arbítrio castrado, cujo exercício se confunde com a obe-diência e a conformidade às leis.
Nessa dicotomia aflora uma concepção limitada do próprio poder, tido como uma constante transmissível, como algo que se tem, que se ganha, que se perde, que se divide, que se usa, perdendo-se, com isto, uma dimensão importante do problema, loca-lizado na relação à complexidade social e às exigências de formas de organização a ela compatíveis. Esta dificuldade pode ser sen-tida na utilização, pela teoria jurídica, de conceitos como o de vontade (do povo, da lei, do governo, da parte contratante), que tem operacionalidade limitada às ações individuais e se transporta com muito custo para situações complexas, onde a "vontade" se torna mais perceptível (qual a "vontade" que estabelece o cos-tume como norma obrigatória?). Teorias modernas, sobretudo no campo da Ciência Política, têm, por isso, reinterpretado o con-ceito de vontade em termos de privilégio das informações internas de um sistema sobre as externas, desaparecendo, com isso, a von-tade como suporte do poder e surgindo, no seu lugar, a noção de sistema de informações e seu controle.
A possibilidade de uma teoria jurídica do direito enquanto sistema de controle de comportamento nos obriga a reinterpretar a própria noção de sistema jurídico, visto, então, não como con-junto de normas ou conjunto de instituições, mas como um fenômeno de partes em comunicação. Admitimos que todo comporta-mento humano (falar, correr, comer, comprar, vender etc.) é ação dirigida a alguém. O princípio básico que domina este tipo de en-foque é o da interação. As partes referidas são seres humanos que se relacionam trocando mensagens. Interação é, justamente, uma série de mensagens trocadas pelas partes. Nesta troca, ao transmitir uma mensagem, uma parte não fornece apenas uma infor-mação, mas fornece, conjuntamente, uma informação sobre a in-formação que diz ao receptor como este deve se comportar perante o emissor. Por exemplo, quem diz: "por este documento o sujeito A obriga-se a pagar a B a quantia X pela prestação de serviço", além da informação sobre a obrigação de pagar e da contrapartida do serviço diz também como as partes devem encarar-se mutua-mente (elas se encaram como subordinadas, ao serviço correspon-dendo o pagamento e a prestação do serviço subordinando uma à outra). Denominando-se a informação contida na mensagem do relato e a informação sobre o modo de encará-la de cometimento, podemos dizer que o direito pode ser concebido como um modo de comunicar-se pelo qual uma parte tem condições de estabelecer um cometimento específico em relação à outra, controlando-lhe as possíveis reações.
Este controle, socialmente, pode ocorrer de diferentes modos: pelo uso da força, por uma superioridade culturalmente definida (relação entre médico e paciente), por uma característica sócio-cultural (relação entre pais e filhos). O controle jurídico se vale de uma referência básica das relações comunicativas entre as par-tes a um terceiro comunicador: o juiz, o árbitro, o legislador, numa palavra, o sujeito normativo, ou ainda, a norma.
4. DIMENSÃO PRAGMÁTICA DA NORMA JURÍDICA
Partamos, como exemplo, do seguinte texto: "ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita de autoridade competente. A lei disporá sobre a prestação de fiança. A prisão ou detenção de qualquer pessoa será imediatamente comunicada ao juiz competente, que a relaxará, se não for legal". Neste texto, uma informação é transmitida. Concomitanteniente, porém, há uma determinação da posição do emissor, em face do receptor. Em-bora aí o emissor não seja mencionado e haja uma multiplicidade de receptores, exercendo papéis diversos, façamos abstração deste dado e analisemos o texto, enquanto mensagem.
O objeto da mensagem normativa, do ângulo pragmático, é aquilo que se diz que, em razão do modelo comunicativo, se apre-senta como questão. Distinguimos, no que se refere ao objeto, entre relato e cometimento, como níveis separáveis. A idéia básica aqui expressada é a de que o ato de falar, dado o seu caráter internacional, sempre implica uma ordem, isto é, quem fala (ou decide), não só transmite uma informação (apela ao entendimento de al-guém), mas, ao mesmo tempo, impõe um comportamento. Por exemplo, quem diz: "você é um tolo", diz também: "este é o modo como eu quero que você perceba como eu o vejo". Respectivamente, temos o relato e o cometimento. O relato é a informação trans-mitida. O cometimento é uma informação sobre a informação, que diz como a informação transmitida deve ser entendida. Nas interações, em geral, o aspecto cometimento raramente é deliberado e consciente, o que pode ser fonte de equívocos. Para torná-lo,s ine-quívocos, ao menos numa certa medida, a convivência impôs re-gras, de cortesia, de boa educação. Assim, quando alguém diz: "você está engordando", pode corrigir a má impressão metacomunicando através de fórmulas como: "desculpe, não tive a intenção de ofendê-lo" ou "digo isto para o seu bem" etc. Aqui, o cometi-mento, isto é, a ordem para o outro, no sentido de como a infor-mação devia ser entendida, torna-se patente, através de novo ato de falar que, por sua vez, também terá, de novo, um aspecto relato e um aspecto cometimento, o que, então, poderia, eventualmente, gerar novo equívoco, levando as partes a se desentenderem pro-gressivamente. Em geral, os cometimentos são expressos de modo analógico, portanto, de modo não verbal, por exemplo, através do tom da voz, a mímica do rosto ou, em interações mais complexas, através de comportamentos simbólicos, como a organização de uma parada militar, um movimento de tropas que podem insinuar que uma troca de mensagens diplomáticas deva ser entendida como "nós somos poderosos, é bom que vocês nos tenham por amigos".
Ora, a aplicação desta distinção às normas jurídicas pode tra-zer curiosos esclarecimentos. Se é verdade que todo discurso tem um aspecto cometimento e outro relato, também é verdade que, embora, em geral, comuniquemo-nos tanto analógica quanto digitalmente, há discursos capazes de minimizar os aspectos analógicos, criando condições para uma metacomunicação adequada. Por exemplo, o discurso matemático. Este não é o caso, porém, do discurso normativo. Em cada norma, podemos perceber o aspecto cometimento e o aspecto relato, bem como a utilização tanto de linguagem analógica quanto digital. Embora o discurso normativo apresente uma tendência a digitalizar o seu aspecto cometimento, o uso mesmo da chamada linguagem natural já institui limite à digitação.
Normas jurídicas são decisões. Através delas, garantimos que certas decisões serão tomadas. Elas estabelecem assim controles, isto é, pré-decisões, cuja função é determinar outras decisões. Em-bora isto não signifique, como veremos, uma redução da norma à norma processual, o ponto de vista pragmático não deixa de res-saltar este aspecto procedimental do discurso normativo. No exem-plo que estamos analisando, podemos levantar uma série de alter-nativas conflitivas que envolvem decisões a tomar: ser preso ou não ser preso, legalmente ou ilegalmente, por autoridades ou por qualquer um, tendo cometido um delito ou não tendo cometido um delito, em flagrante ou não, pagando fiança ou não pagando, admi-tindo-se fiança ou não se admitindo etc. Estas alternativas são do tipo incompatível, portanto, conflitivas. A norma cumpre a tarefa de determinar quais as decisões, ou seja, quais alternativas deci-sórias devem ser escolhidas. O objeto do discurso normativo, ou seja, o objeto da situação comunicativa olhado do ângulo do comu-nicador normativo, não é propriamente o conjunto das alternativas, mas a decisão que, diante delas, deve ser tomada. Ou seja, no exemplo, são as decisões: só prender em flagrante delito ou por ordem escrita da autoridade, comunicar ao juiz a prisão ou de-tenção, relaxar a prisão ilegal. Temos, pois, dois ângulos distintos: as alternativas conflitivas (ser preso ou não, legalmente ou não), objeto do discurso dos comunicadores sociais, e o objeto do dis-curso do comunicador normativo, que também constitui um con-flito, diferente do outro, na medida em que considera um conflito sobre o conflito, que requer decisão sobre a decisão. Assim, o ob-jeto da norma, sua questão conflitiva, não é apenas "ser preso ou não ser preso", "legalmente ou ilegalmente", mas também "só prender em flagrante ou por ordem escrita: decisão obrigatória/ou proibida/ou permitida/ou indiferente/ou facultativa/etc.". Na ter-minologia pragmática, o comunicador normativo não apenas diz qual a decisão a ser tomada — pré-decisão — mas também como essa pré-decisão deve ser entendida pelo endereçado — informação sobre a informação. Respectivamente, temos o relato, e o cometi-mento do discurso normativo, que, no seu conjunto, formam o objeto do discurso.
5. OS OPERADORES PRAGMÁTICOS, CONTEÚDO E CONDIÇÕES DE APLICAÇÃO DA INFORMAÇÃO NORMATIVA
Normas jurídicas são entendidas aqui como discursos; por-tanto, do ângulo pragmático, interações em que alguém dá a en-tender a outrem alguma coisa, estebelecendo-se, concomitantemente, que tipo de relação há entre quem fala e quem ouve. Ou seja, o discurso normativo não é apenas constituído por uma mensagem, mas, também, por uma definição das posições de orador e ouvinte. A lógica deôntica costuma definir as "proposições nor-mativas" como prescrições, isto é, proposições construídas mediante os operadores ou funtores obrigatório, proibido e permitido, apli-cados a ações. Naturalmente, não às "ações mesmas" (plano em-pírico), mas à sua expressão linguística.
As ações, diz-nos von Wright, são interferências humanas no curso da Natureza. Se esta interferência é positiva — por exemplo, derrubar uma árvore —, trata-se de um ato. Se é negativa — por exemplo, não construir uma casa —, temos uma omissão. O con-ceito de omissão é mais complicado. Na linguagem cotidiana não significa simplesmente não fazer, mas não fazer algo. Só omitimos aquilo que devemos ou estamos habituados a fazer. Por exemplo, num dia de céu límpido, se alguém não abrir o guarda-chuva, não diríamos que houve uma omissão, que, é claro, só ocorreria se alguém se esquecesse de abrir o guarda-chuva, estando chovendo. Não se trata, além disso, de uma questão de agir consciente ou inconscientemente, mas de exprimir a relação entre algo que foi e como poderia ter sido. Por isso, o que uma pessoa descreve como um ato pode ser descrito por outra como uma omissão e vice-versa. Isto quer dizer que atos também exprimem uma relação de que foi, em função de como poderia ter sido. Assim, por exemplo, se alguém entra num quarto escuro e acende a luz, há um ato do ponto de vista do agente, mas uma omissão do ponto de vista do fotógrafo, que revelava chapas fotográficas. Isto nos permite dizer que ações não são apenas interferências no curso da Natureza, mas interferências em relação a como poderia ou deveria ter ocor-rido. Toda ação, nestes termos, traz uma nota de tipicidade cor-respondente à relação entre a interferência no curso da Natureza e o conjunto das articulações que circundam.
Esta concepção de ação implica, além disso, que partimos de um estado de coisas que muda para um outro estado de coisas (a luz está apagada muda para a luz está acesa). Para que a ação se realize, é preciso que os estados de coisas se apresentem, dê certo modo compatível com a ação (por exemplo, que a luz esteja apa-gada para passar a estar acesa). Fala-se, assim, em condições (ló-gicas) da ação e seu resultado. Dada uma condição de ação, é possível tanto realizar um ato como uma omissão, sendo diferente o resultado, num e noutro caso. Von Wright fala, em suma, que as normas são compostas de um operador normativo (permitir, obrigar), de uma descrição de ação e de uma descrição da condição de ação. O primeiro dá o caráter da norma (norma permissiva de obrigação), o segundo, o seu conteúdo (atos e omissões), o terceiro, a sua condição de aplicação.
Sob o ponto de vista da pragmática, a descrição da condição da ação constitui o aspecto-relato da mensagem normativa. Nisto, porém, não se esgota a sua análise, pois dela fazem parte o editor e o sujeito mais a relação metacomplementar que entre ambos se estabelece. A metacomplementaridade se determina ao nível ou aspecto-cometimento do discurso e é prevista, a nosso ver, pelos operadores normativos. Em outras palavras, os operadores norma-tivos têm uma dimensão pragmática além da dimensão sintática, pelas quais, não só é dado um caráter prescritivo ao discurso ao qualificar-se uma ação qualquer, mas também lhe é dado um caráter metacomplementar no qualificar a relação entre emissor e receptor.
Estabelecida uma norma, o editor, ao transmitir uma mensa-gem, define as posições de tal modo que o endereçado assuma uma relação complementar (metacomplementaridade). Para fazê-lo, ele pode simplesmente transmitir a mensagem ou pode, além disso, fazer um comentário sobre ela. Por exemplo: "efetuada a prisão, a autoridade comunicará ao juiz..." ou "efetuada a prisão, a autoridade é obrigada a comunicar ao juiz" ou "efetuada a prisão, a autoridade poderá comunicar ao juiz" etc. Expressões como "é obrigado", "está proibido", "está permitido", sob o ponto de vista da pragmática, são metacomunicacionais, correspondendo a "co-mentário" sobre a mensagem transmitida, no sentido de definir as relações entre as partes. Como a relação não é apenas complementar, mas imposição de complementaridade, as expressões obri-gar, permitir, proibir são fórmulas digitais, pelas quais a autoridade controla as possíveis reações do endereçado à definição das res-pectivas posições. Existem inúmeras fórmulas deste género na lin-guagem comum e o direito se utiliza de todas elas. Assim como se faz no plano sintático, vamos nos referir basicamente a estas três: obrigar, proibir, permitir, admitindo que outras, como facultar, delegar, autorizar etc. sejam redutíveis a elas.
A lógica deôntica trata estas fórmulas como funtores ou ope-radores deônticos. Através deles, os comportamentos expressos na norma adquirem um status deôntico, qualificam-se deonticamente. Por exemplo, se a norma diz: é proibido pisar na grama, a ação "pisar na grama" adquire o status deôntico "proibido". Sob o ponto de vista da pragmática, porém, interessa-nos o modo como, através dos operadores, a autoridade determina a relação entre ela e o endereçado como complementar (imposição de complementa-ridade ou metacomplementaridade). É muito importante que se entenda que a relação definida, no discurso normativo, é metacomplementar, pois isto indica que o orador normativo procura fazer com que o endereçado assuma a posição complementar, e, para isso, usa de recursos com o fito de evitar reações incompatí-veis. Ora, as reações possíveis do ouvinte a uma definição pelo orador da relação entre ele e o ouvinte são três: ou confirmar, ou rejeitar, ou desconfirmar. Confirmação é uma resposta pela qual o ouvinte aceita a definição (compreende e concorda); rejeição é uma resposta pela qual o ouvinte nega a definição (compreende e discorda); desconfirmação é uma resposta pela qual o ouvinte des-qualifica (não compreende ou ignora) a definição. A diferença entre rejeição e desconfirmação está em que, na primeira, o ouvinte, de certo modo, reconhece o orador como autoridade, para depois re-cusar a definição, enquanto, na segunda, ele age como se o orador não existisse. Uma relação definida como metacomplementar não pode suportar este terceiro tipo de reação, pois a desconfirmação equivale ao aniquilamento da autoridade enquanto tal. Os sistemas normativos costumam estabelecer, por isso, ou de modo explícito, através de uma norma cujo relato o diga, ou implicitamente, na forma de um cometimento analógico, que não se reconhece a ale-gação da ignorância da lei como justificativa para a licitude do próprio comportamento. Ao nível do cometimento, portanto, en-tendemos que o discurso normativo só reconheça (e procure esta-belecer como possíveis) duas reações: confirmação ou rejeição, ex-cluída a possibilidade de desconfirmação. Por outro lado, as reações de confirmação e rejeição têm o efeito de dar a autoridade, visto que nas relações complementares uma definição do próprio emissor só pode ser mantida pela do parceiro que tem que desempenhar um papel específico. Se não houver confirmação, não há autori-dade, mas se não houver rejeição, a autoridade não se percebe, agin-do como tal, e não tem condições de se afirmar. Neste sentido, ao estabelecer uma norma, o editor, definindo a relação metacomple-mentar, já predetermina as suas próprias reações às eventuais reações do endereçado, em termos de confirmar uma eventual con-firmação, rejeitar uma eventual rejeição e desconfirmar uma even-tual desconfirmação. Ao fazê-lo, ele está mostrando ao endereçado que a sua posição perante ele, editor, é de sujeito, sendo ele editor, autoridade, ignorando-se qualquer tentativa de comportamento à parte ou alheio à relação normativa.
Ao determinar um comportamento qualquer ou a sua omissão como proibido ou obrigatório, o editor estabelece a metacomple-mentaridade, que é uma definição das relações do tipo quaestio certa, pois, de antemão, abre duas opções de reação e já dispõe qual delas deve ser escolhida: o ouvinte é jungido a cooperar, ou, de outro modo, sua reação será rejeitada. A análise síntática da norma costume levantar aqui o problema de se saber se é possível colocar os funtores proibir e obrigar como operando de maneira similar. Isto porque a intuição parece mostrar que as normas "é proibido pisar na grama" e "é obrigatório omitir pisar na grama" não têm exatamente o mesmo sentido. Apesar disso, se reconhece a possibilidade de se mostrar a interdefinibilidade dos dois operadores (desde que se admita que a linguagem normativa contenha descrição de ações e não nomes). Podemos indagar se problema semelhante surge ao nível pragmático. A resposta nos parece negativa. Proibir e obrigar são fórmulas digitais, que esta-belecem uma relação complementar, ou seja, através delas é im-posta a relação autoridade/sujeito como um cometimento explícito, que obedece o esquema confirmação da confirmação, rejeição da rejeição e desconfirmação da desconfirmação. Uma questão mais complicada, porém, está referida à possibilidade de existirem ou não normas permissivas, ou seja, a questão de se a permissividade não resulta antes da ausência de proibição e obrigação.
Ao nível sintático da análise, a idéia mais comum é de que as normas permissivas não existem como normas independentes, isto é, não são um tipo à parte das normas de obrigação/proibição. Assim, quando o editor normativo usa a expressão "permitir" o faz apenas para descrever o fato de que uma ação não está nem proibida nem é obrigatória, portanto, que não há norma sobre aquela ação. Esta tese se funda na pressuposição de todo sistema normativo admitir a chamada "norma de clausura”, segundo a qual tudo o que não esteja judicialmente proibido ou não seja obriga-tório, estaria automaticamente permitido. Não vamos discuti-la.
Se é verdade, portanto, que o silêncio do comunicador norma-tivo é apenas uma indicação, ao nível do cometimento, de que a relação é indefinida ou inqualificada, não podemos deixar de rever a hipótese de uma afetiva qualificação normativa da relação como não complementar. Para que isto ocorra, é preciso uma manifes-tação do comunicador normativo através de discurso normativo (e não de um silêncio) que defina a relação entre editor e endereçado, de tal modo que às possíveis reações do endereçado (confirmação, rejeição, desconfirmação) correspondam contra-reações do editor, cuja combinação garanta a relação definitiva. Assumimos que a fórmula digital deste tipo de cometimento seja exatamente "é permitido que", no sentido de que o editor, ao permitir determi-nada ação, estabelece um cometimento do tipo: eu ignoro qualquer reação de confirmar ou de rejeitar minha definição da relação, só confirmando uma eventual desconfirmação (ou seja: desconfirma-ção de uma eventual desconfirmação). Trata-se de uma situação comunicativa curiosa, tanto da parte do editor quanto do ende-reçado. Ao permitir uma ação qualquer, o comunicador normativo qualifica normativamente a ação como indiferente. Para que esta qualificação seja normativa e não apenas de sentido moral (autocompromisso de não interferência), é preciso reconhecer-lhe um certo caráter paradoxal, ao nível pragmático. De fato, o editor, ao qualificar a ação como indiferente, metacomunica ao endereçado que este não deve considerá-lo, no caso, como autoridade e a si próprio como sujeito, portanto que a relação entre ambos é simé-trica. Mas ao fazê-lo, diz mais, porque impõe esta definição de relação simétrica, isto é, não deixa ao endereçado outra opção senão a de ignorá-lo como autoridade. Trata-se, pois, não de uma simetria, mas de uma pseudo-simetria, caso em que o editor impõe ao endereçado a relação simétrica. Da parte do editor, a situação é paradoxal, pois ao impor a simetria, o editor ao mesmo tempo que se desqualifica como autoridade (somos simétricos), de novo se qualifica como tal (devemos ser simétricos). Do lado do endereçado, a situação é igualmente paradoxal, pois diante da norma permissiva, ele tem de sujeitar-se na medida em que rompe (desconfírma) a relação de sujeição. Nestes termos, somos levados à conclusão de que a norma permissiva é norma paradoxal. Ela difere do silêncio do editor normativo pelo fato de que a relação é definida ou qualificada e não inqualificada, e difere da norma de obrigação/proibição porque esta impõe uma relação de comple-mentaridade, enquanto a norma permissiva impõe uma relação de simetria. Como, porém, a simetria imposta ou pseudo-simetria redunda numa metacomplementaridade implícita, a diferença entre ambas está mesmo nas combinatórias de reações e contra-reações, com as quais o comunicador normativo controla o com-portamento do endereçado. Ou seja, a diferença está no modo de controle e não no resultado. Distinguimos, assim, a norma per-missiva do mero silêncio do editor normativo, como manifestação expressa da autoridade. O silêncio do editor não permite, mas in-determina. Já a permissão determina de modo específico. E aqui é preciso de novo distinguir os casos em que a permissão é usada para abrir exceção em norma anterior de proibição ou obrigação e os casos de permissão com conteúdo próprio. No primeiro caso se incluem normas como a que abre exceção de legítima defesa, tendo em vista proibição geral a respeito, ou normas que estabe-lecem isenções de impostos, tendo em vista obrigações gerais. No segundo caso, incluímos, de modo geral, as chamadas normas programáticas de uma Constituição, que não são exceção a proi-bição ou obrigações gerais, mas normas de conteúdo próprio, que impõem simetria aos seus sujeitos (pseudo-simetria) no sentido de que eles não podem eximir-se do vínculo estabelecido e pelo cometimento que lhes assegura uma faculdade. Para as permissões que abrem exceção, propomos que o funtor seja "é permitido, po-rém, que", indicando-se pelo "porém" a exceção aberta no con-teúdo da norma geral de obrigação.
Em resumo, reconhecemos as seguintes possibilidades:
a) normas de obrigação/proibição: através dos operadores "é proibido" e "é obrigatório" uma determinada ação ou omissão é qualificada juridicamente como obrigatória ou proibida: com isso dá-se igualmente uma determinação jurídica da relação entre emissor e receptor como relação complementar imposta;
b) normas permissivas que constituem exceção a uma norma geral de obrigação/proibição: através do operador "é permitido, porém, que" determinada ação ou omissão é qualificada juridica-mente como facultativa ou permitida, tendo em vista uma proi-bição ou obrigação geral; a determinação jurídica da relação como simétrica depende de uma imposição de complementaridade geral, da qual constitui uma exceção;
c) normas permissivas independentes: através do operador "é permitido" uma determinada ação ou omissão é qualificada como facultativa ou permitida, sem que haja, sobre o mesmo con-teúdo, norma geral de obrigação/proibição; a relação entre emissor e receptor é determinada, juridicamente, como relação simétrica imposta ou pseudo-simétrica;
d) a ausência de norma: o silêncio do editor torna uma ação ou omissão nem obrigatória, nem proibida, nem permitida ou fa-cultada, mas juridicamente, indecidível; a relação entre emissor e receptor pode ser, então, indiferente simétrica ou complementar, não ocorrendo, em nenhum dos casos, nem imposição de comple-mentaridade, nem pseudo-simétrica.
6. RELAÇÃO ENTRE NORMA E SANÇÃO
Dissemos até agora que normas são discursos decisórios es-truturalmente ambíguos em que o editor controla as reações pos-síveis dos endereçados ao garantir expectativas sobre as expecta-tivas de reação, determinando as relações entre comunicadores na forma de uma metacomplementaridade caracterizada como impo-sição de complementaridade e imposição de simetria.
Através dos operadores, não apenas qualificamos juridica-mente os comportamentos, mas também determinamos as relações entre os comunicadores, através dos quais se exprime a díade au-toridade/sujeito nas suas diferentes modalidades (obrigação, proi-bição, permissão). Isto significa que a relação de autoridade se define pela garantia estabilizada de que certas expectativas devem prevalecer, independentemente de o comportamento exigido ocor-rer ou não. O importante para o cometimento normativo não é o cumprimento efetivo do relato (uma norma pode ser desobedecida e, apesar disso, a relação de autoridade permanece), mas a ga-rantia de que reações que desqualificam a autoridade, como tal, estão excluídas da situação comunicativa. Isto quer dizer que a metacomplementaridade não se confunde com a imponibilidade dos comportamentos expressos no relato.
No entanto, embora a relação de autoridade deva manter-se de modo contrafático, isto é, subsiste ainda que o endereçado não possa adaptar-se, esta posição não pode manter-se de modo obsti-nado, no sentido de que o editor veja apenas e sempre o seu lado da relação. A autoridade tem, assim, de ser implementada, tanto no sentido de que possa ser compreendida, o que implica argumentação e discussão, como também fortalecida, o que implica argumentos reforçados. A expectativa da autoridade subsiste em cada caso, mas não nos permite esperar genericamente de modo contrafático. Isto nos levaria a um rompimento da comunicação. Por isso tem de haver, na comunicação normativa, instrumentos discursivos capazes de tornar o comportamento desiludidor que, como fato, é incontestável, em algo compreensível e integrado na situação.
O discurso normativo, assim, sem abdicar da relação de autoridade, tem de canalizar e encaminhar as desilusões e infrações, estabelecendo para isso procedimentos especiais, em que a autoridade é, ao mesmo tempo mantida, mas temporariamente suspensa, evitando o rompimento da comunicação, ou seja, procedimentos em que o editor possa aparecer como parte argumentante e o endereçado como intérprete. Para isso, a determinação das expectativas possíveis de reação do endereçado deve ser acompanhada de previsões de comportamentos possíveis do editor, no caso de reação desiludidora. Esta colocação, que decorre da própria ambiguidade estrutural do discurso normativo, exige, entretanto, tratamento mais detalhado.
Esta ambiguidade abre caminho, a nosso ver, para esclarecer, do ângulo pragmático, a questão da relação entre norma e sanção
Inicialmente, podemos dizer que sanção designa um fato em-pírico, socialmente desagradável, que pode ser imputado ao com-portamento de um sujeito. A determinação do que é este fato em-pírico não é de natureza nem linguística nem jurídica, mas psi-cossociológica. Trata-se de uma reação negativa contra um deter-minado comportamento, portanto, avaliada como um mal para quem a recebe. Além de psicossociológica, sua determinação é, pois, também axiológica. Sob o ponto de vista linguístico, o fato empírico-social da sanção interessa menos. Isto porque as sanções não entram nas normas, do ângulo discursivo, como uma constatação de um estado de coisas — exemplo: "para o crime de morte é prevista uma sanção de prisão" — nem mesmo como a realização de uma ação através de uma asserção — por exemplo, a ação de ameaçar ao dizer "está ameaçado de prisão, quem matar", mas, sim, como a consecução de uma ação ao falar: ao dizer "quem matar, será preso" desperta-se no endereçado uma expectativa, a de estar sendo ameaçado. Neste sentido, normas não são discursos indicativos que prevêem uma ocorrência futura condicionada — dado tal comportamento ocorrerá uma sanção — mas sim discursos que constituem de per si uma ação: imposição de compor-tamentos como jurídicos (qualificação de um comportamento e estabelecimento da relação metacomplementar). A sanção, do ân-gulo linguístico, é, assim, ameaça de sanção; trata-se de um fato linguístico e não de um fato empírico. As normas, ao estabelece-rem uma sanção, são, pois, atos de ameaçar e não representação de uma ameaça.
A ameaça de sanção não deve ser confundida com fórmulas permiais, através das quais o editor normativo pode motivar um comportamento qualificado como indiferente por uma norma per-missiva. Este tipo de "sanção" não constitui o que entendemos por ameaça, incluindo-se, pois, apenas reações do editor que possam constituir para o endereçado algo que coaja e não apenas o motive. Aqui se incluem, pois, ameaças com penalidades, como a perda de liberdade, execução forçada, multas, anulação (mas não nulidade, pois a nulidade é uma situação que pode ser reconhecida, mas não pode ser exercida, isto é, é possível dizer se um ato é nulo, mas não é possível estabelecer, impor nulidade, mas apenas anular). A noção de ameaça de sanção exclui também a crítica de que aqui se deveria incluir a imposição de tributos, crítica que se faz à definição de sanção como uma reação desagradável para o ende-reçado, pois a aplicação de impostos ou de direitos alfandegários, ainda que pudessem ser uma reação desagradável, não são esta-belecidas na forma de ameaça. Por outro lado, o problema de se saber quando uma fórmula linguística constitui uma ameaça, este é problema de natureza empírica, que variará de comunidade lin-guística para comunidade linguística.
O segundo problema se refere à relação entre a norma e a sanção. Constitui toda norma uma ameaça da sanção? Em pri-meiro lugar, é preciso reconhecer, invertendo-se a questão, que o caráter jurídico da ameaça de sanção está em que ela é regulada normativamente. Isto é, é possível executar a ameaça de sanção, sem que haja discurso normativo no sentido exposto anterior-mente, sem que haja, pois, qualificação de comportamentos e es-tabelecimento de relação de autoridade. Duas pessoas brigando podem fazer-se ameaças e, nem por isso, temos sanção no sentido jurídico. Mas o problema é saber se toda norma ameaça de sanção. Ora, há normas que prescrevem comportamentos e estabelecem a metacomplementaridade autoridade-sujeito, sem fazer ameaça. Assim, a ameaça pode ou não estar presente, admitindo-se, então, que ela esteja em outra norma. Esta é a questão da conexão entre normas. Podemos, assim, reconhecer que uma das características da norma jurídica está em que nelas a sanção é sempre prevista ou por ela mesma ou por outra norma, sem que isto nos obrigue a afirmar que na sanção esteja a causalidade genética do direito. Como explicar isto na perspectiva pragmática? Esta é a nossa terceira questão.
A ameaça de sanção aparece na norma ao nível do relato. Assim, uma norma prescreve: "é obrigatório cumprir o contrato", o conteúdo do relato é "cumprir o contrato", cuja negação interna é "não cumprir o contrato", que seria condição de aplicação de uma prescrição de sanção: "é obrigatório pagar a multa". Note-se que, na prescrição da sanção, "pagar multa" é o conteúdo do relato da norma sancionadora. Assim, tanto a norma que manda cum-prir o contrato como a que manda pagar a multa definem relações metacomplementares de autoridade e sujeito, o que se determina através dos operadores ou funtores, mas não pelo conteúdo do relato. Em outras palavras, a relação metacomplementar não é constituída pela sanção, mesmo numa norma que se esgote em prescrevê-la. Neste sentido, ela é argumento de persuasão, consis-tindo para o endereçado — o sujeito normativo — uma indicação do comportamento do editor — a autoridade em determinadas circunstâncias. Trata-se, pois, de elemento de ligação para o con-trole de um discurso superveniente: dado um comportamento do sujeito, seguir-se-á uma reação do editor, que pode ser aplicação da sanção, ou novo procedimento discursivo, que levará àquela aplicação ou ainda à edição de nova norma, este último caso ocor-rendo com frequência nas transgressões do direito internacional.
7. A VALIDADE DAS NORMAS DO ÂNGULO PRAGMÁTICO
No item anterior, procuramos situar o discurso normativo como um elo dentro de uma interação específica. Isto nos permitiu revelar algumas características nucleares da norma do ângulo pragmático. No que se segue, estas características deverão ser re-finadas, com o fito de nos fornecer uma visão aperfeiçoada da situação comunicativa, em que a norma é o elemento central. O problema genérico, que nos preocupa agora, é saber como se in-terligam os comunicadores normativos, em cadeias normativas. Esta é a questão da validade.
Do ângulo pragmático, a noção de validade está ligada a uma qualidade central do discurso normativo enquanto decisão, qual seja, a sua capacidade de terminar conflitos, pondo-lhes um fim. Da exposição anterior, podemos perceber que a validade não é (apenas) uma propriedade sintética dos discursos normativos, em respeito ao aspecto-relato, mas se revela peculiarmente como pro-priedade pragmática. Através da expressão norma válida, queremos referir-nos à relação entre discursos normativos, tanto no aspecto-relato, quanto no aspecto-cometimento. Esta relação precisa de melhor esclarecimento. Neste sentido, referimo-nos à função de terminar conflitos, pondo-lhes um fim (institucionalizando-os), entendendo que a validade exprime uma relação de competências decisórias e não uma relação dedutiva de conteúdos gerais, para conteúdo individualizado ou menos gerais. Como, entretanto, o princípio que guia a análise pragmática é o da interação, a relação da validade inclui também a provável reação do endereçado, e, desta forma, tanto o aspecto-relato como o aspecto-cometimento. Para precisar nosso pensamento, vamos chamar esta conexão pragmática entre os discursos normativos, de imunização. Deste modo, precisamos nossa concepção para: "validade é uma propriedade do discurso normativo que exprime uma conexão de imuni-zação". Imunização significa, basicamente, um processo racional (fundamentante) que capacita o editor a controlar as reações do endereçado, eximindo-se de crítica, portanto capacidade de garan-tir a sustentabilidade (no sentido pragmático de prontidão para apresentar razões e fundamentos do agir) da sua ação linguística.
A imunização do discurso normativo jurídico se caracteriza por ser conquistada a partir de outro discurso normativo, o que faz da validade uma relação pragmática entre normas, em que uma imuniza a outra contra as reações do endereçado, garantindo-lhe o aspecto-cometimento metacomplementar. Isto é, se, como vimos, cada norma, através dos funtores, define a relação entre orador e ouvinte, consideramos válida a norma, cujo aspecto-cometimento não apenas está definido como metacomplementar, mas está imu-nizado contra críticas através de outra norma. Se um ladrão, numa rua escura, exige de alguém o seu dinheiro, dizendo: "passe-me a carteira", o funtor no caso — você está obrigado a passar-me a carteira — define a relação como complementar (o ladrão, nas condições, se determina como superior ao endereçado, podendo ameaçá-lo, inclusive com sanção). Mas a esta norma falta a re-lação de imunização que não se funda na capacidade do ladrão de ameaçar com sanção, mas no caráter atribuído ao editor de autoridade. O ladrão é superior (pois pode usar de violência), mas não é autoridade, posição que, inclusive, exclui o uso da violência e não admite argumentação. Esta posição só é conseguida pelo editor normativo através da imunização, que é um recurso racional do discurso normativo, análogo ao estabelecimento de presunção, postulados, axiomas, na discussão científica. Se isto explica o pro-blema anteriormente posto, de se saber como se dá a gênese da metacomplementaridade (que não é produzida pela ameaça de sanção), coloca, por sua vez, outro problema, qual seja, o de saber, primeiro, como uma norma imuniza outra e, segundo, qual o fundamento do próprio processo de imunização. A primeira questão está referida aos modos de imunização, sendo uma questão técnica. A segunda é mais complexa, e se refere à própria legitimidade dos ordenamentos. Importante, nas duas questões, é lembrar que imunização é uma relação entre o aspecto-relato de uma norma e o aspecto-cometimento de outra, ou seja, se uma norma, digamos, através do funtor é proibido estabelece entre as partes uma relação metacomplementar, é esta definição da relação que é imunizada contra crítica por outra norma. Que a relação metacomplementar é imunizada significa que o editor que, através do funtor, se definiu como superior, não precisa apresentar razões desta definição, pois ela já está fundamentada de antemão. Ou seja, pela definição através dos funtores, o editor joga o ônus da prova da recusa de um comportamento para o endereçado. Pela imunização, ele se exime, inclusive, de ter de provar esta possibilidade mesma de transferir o ônus da prova. Exime-se, não porque não é capaz, mas porque está dispensado da apresentação das razões do seu agir.
Uma norma imuniza a outra: a) disciplinando-lhe a edição; b) delimitando-lhe o relato. Trata-se de dois modos de imunização ou de duas técnicas, permanecendo a noção de validade a mesma nos dois casos (norma válida é norma imunizada). Para entender as duas técnicas, recorremos à distinção da cibernética, entre pro-gramação condicional e programação finalista. Podemos programar uma decisão na medida em que estabelecemos as condições em que ela deve ocorrer, de modo que, dadas as condições, segue-se a de-cisão. Também se pode programá-la, estabelecendo os fins que devem ser atingidos, liberando-se a escolha dos meios, de tal modo que, seja qual for o meio escolhido, o fim deve ser atingido. No primeiro caso, temos uma programação condicional. No segundo, finalista. A primeira é mais elástica no que tange aos efeitos pro-curados. O decididor é responsável pelo correto emprego dos meios, aos quais está ligado, mas não pelo efeito a atingir ou atingido. As segundas são mais elásticas quanto à escolha dos meios, es-tando vinculadas aos fins procurados. O decididor é responsável pelo efeito a atingir, sendo da sua escolha a seleção de bons meios, sejam quais forem, pois o importante é o resultado. Por exemplo, uma decisão é programada condicionalmente na seguinte regra: em caso de perigo, as luzes devem ser apagadas. Aí, a decisão de apagar as luzes está presa à ocorrência de perigo. O decididor é responsável pela constatação do perigo, não pela relação entre pe-rigo e apagar as luzes, e se, por causa disso, a casa é assaltada, isto não lhe será imputado. Por sua vez, uma decisão é programada finalisticamente na seguinte regra: o índice inflacionário não de-verá ultrapassar os 42%. A escolha dos meios para assegurar o índice é livre, não há vinculação a meios determinados, mas o decididor é responsável pelo fim. Caso não seja o fim proposto para eximir-se de crítica, o decididor pode usar de técnicas de transferências, descarregando o insucesso em razões estranhas ao processo, que teriam modificado a situação (por exemplo, as crises internacionais como de fato novo a influenciar os fins estabele-cidos de controle da inflação).
Tendo em vista as técnicas da imunização, vamos distinguir, pois, entre imunização condicional e finalista. Nos dois casos, po-de-se falar em norma válida. A imunização condicional ocorre com a disciplina de edição das normas por outra norma. Como a vali-dade é relação entre normas, vamos chamar uma de norma imunizante e a outra de norma imunizada. Tomemos um exemplo: a norma (x) — norma imunizante — estabelece que a criação, aumento ou isenção de tributos é de competência exclusiva do legislador; a norma (y) — norma imunizada — estabelece o tributo a, a ser recolhido pelo sujeito b. A posição metacornplernentar do editor de y é garantida pelo aspecto-relato da norma x. A imunização é condicional, pois a norma imunizante fixa o '''an-tecedente" (no caso de tributos, ser legislador), a partir do qual o "consequente" é possível, conforme o esquema: quem pode o "se. .....", pode o "então...." (vide a fórmula condicional "se... então. . ."). Como a responsabilidade (centro de eventual crítica) do editor está condicionalmente imunizada pelas consequências (por exemplo, pela inflação, pela má distribuição de renda, por bancarrota etc., ele não é responsável) — a metacomplementaridade do aspecto-cometimento da norma y não é atingida, seja qual for a consequência para o endereçado. A norma é válida. Esta técnica de imunização é bastante apropriada para os procedimen-tos de delegação de poderes e o controle da validade se resolve com a constituição de sistemas hierárquicos, donde o estabelecimento de conjuntos normativos que guardam entre si uma coordenação vertical de superioridade e inferioridade. Neste sentido podemos dizer que a norma inferior tem seu fundamento de validade em norma superior.
A imunização finalista ocorre com a delimitação do relato. A validade continua aqui a ser a relação entre o aspecto-relato da norma imunizante e o aspecto-cometimento da norma imunizada. Mas a técnica é outra. A norma imunizante não se importa com a edição da norma imunizada, mas fixa-lhe um determinado re-lato. Por exemplo, a norma imunizante (a) estabelece: todo tra-balhador tem direito a uma remuneração que garanta a ele e sua família condições mínimas de subsistência: a norma imunizada (b) estabelece: o salário-minímo regional será X. A metacomplementaridade da posição do editor da norma (b) é imunizada con-tra a crítica do endereçado pela garantia do relato, posto como um fim a ser atingido. Enquanto na imunização condicional são fixadas condições para o aparecimento da decisão normativa, na imunização finalista fixados são os efeitos a atingir, deixando-se em aberto as condições necessárias. Esta técnica é menos apro-priada à constituição de sistemas hierárquicos, pois o mero estabelecimento de fins não justifica os meios utilizados. Daí a neces-sidade de um controle constante, avesso à mera delegação, por meio de instituições paralelas capazes de decidir, a todo momento, sobre os fins estabelecidos. Neste caso, os conjuntos normativos tendem a apresentar uma Gestalt diferente, de relações entrecruzadas de coordenação vertical e horizontal da validade da norma "inferior" em uma "superior", pois a norma imunizada pode estar fundada em outras normas da mesma hierarquia (em termos de validade condicional) e, até mesmo, de hierarquia inferior (sentenças, regulamentos, portarias em relações a leis).
A distribuição entre as duas técnicas de validação está refe-rida à posição do editor da norma no sentido da sua imunização. Da nossa exposição, parece decorrer que elas são empregadas se-paradamente, quando, na verdade, elas são utilizadas concomitantemente. Pode ocorrer, entretanto, que uma norma obedeça às técnicas de validade condicional, mas não a de validade finalista. É o caso de uma norma, editada por órgão competente, mas que fere preceito superior. Ora, para que uma norma seja válida, isto é, para que haja imunização, exige-se a concorrência das duas técnicas, caso contrário, a norma será inválida.
8. A EFETIVIDADE DAS NORMAS JURÍDICAS
Na teoria jurídica, tradicionalmente, encontramos dois con-ceitos diferentes relacionados à efetividade das normas, que nem sempre são usadas com a devida especificação. Do ângulo linguís-tico, podemos dizer que há concepções meramente sintáticas da efetividade, caso em que a doutrina usa, embora com certa inde-cisão, o termo eficácia, no sentido de aptidão para produzir efeitos jurídicos por parte da norma, independentemente da sua efetiva produção. Chamemos esta noção de sintática, no sentido de que a efetividade (ou eficácia no sentido técnico) está ligada à capa-cidade de o relato de uma norma dar-lhe condições de atuação ou depender de outras normas para tanto. Por outro lado há concepções meramente semânticas da efetividade (correspondendo ao termo alemão Wirksamkeit), como encontramos, por exemplo, em Kelsen, segundo as quais a norma efetiva é a cumprida e aplicada concretamente em certo grau. Chamemos esta noção de semântica, no sentido de que se estabelece como critério a relação entre o relato da norma com o que sucede na realidade referida. Do ângulo pragmático, há uma combinação dos sentidos an-teriores. Efetiva é a norma cuja adequação do relato e do come-timento garante a possibilidade de se produzir uma heterologia equilibrada entre editor e endereçado. Este equilíbrio significa que o cometimento é tranquilo, permanecendo, em segundo plano, de tal modo, que os efeitos podem ser produzidos. Ao contrário, se pelo relato se exprime mal o cometimento ou se o faz de modo limitado (a norma faz referência a sujeitos ou a condições de aplicação que ela não especifica), o cometimento fica intrinseca-mente afetado em diversos graus. Isto, evidentemente, pode ocor-rer por uma falha, mas, também, por motivos de controle, de modo intencional. Uma norma pode, assim, ser plenamente eficaz, se a possibilidade de produzir os efeitos previstos decorrem dela ime-diatamente (por exemplo, uma norma revoga outra: o efeito extintivo é imediato), contidamente eficaz, se a possibilidade é imediata, mas sujeita a restrições por ela mesma previstas ( por exem-plo, normas que prevêem regulamentação delimitadora), limita-damente eficaz, se a possibilidade de produzir os efeitos é mediata, de normação ulterior (por exemplo, as normas pragmáticas).
No primeiro caso, o relato da norma é adequado ao cometi-mento: a metacomplementaridade não sofre restrições. No segundo caso, a adequação é parcial, a relação de autoridade não sofre res-trições senão as por ela mesma previstas, mas que ainda não ocor-reram. No terceiro caso, a adequação está no limiar da inade-quação, exercendo-se a relação de autoridade apenas num sentido negativo: é possível reconhecer que o sujeito não deve fazer, mas não o que ele deve fazer.
Note-se que a efetividade no sentido pragmático não se con-funde com o sentido meramente semântico ou sintático. O sentido sintático prescinde do nível cometimento e vê a efetividade como mera relação entre o relato de uma norma e as condições que ela mesma estabelece (que podem estar em outra norma) para a produção dos efeitos. Prescinde também da relação para com os comportamentos de fato ocorridos e não vê nenhuma influência entre a obediência efetiva da norma e a possibilidade de produção dos efeitos. O sentido semântico liga diretamente efetividade e obediência de fato, não prevendo, por conseguinte, os casos de desobediência de normas eficazes (no sentido técnico). Podemos, dizer, em consequência, que, no nível semântico da análise, uma norma será tanto mais efetiva quanto mais as ações ou omissões exigidas ocorram. O sentido jurídico da efetividade, contudo, atende mais ao plano pragmático, podendo dar-se, como dissemos, uma norma eficaz (possibilidade de produzir efeitos) que não seja de fato obedecida e aplicada. Por exemplo, uma norma revoga outra, produzindo imediatamente seus efeitos, pois manifesta adequa-damente a relação metacomplementar de autoridade, mas cum-prida socialmente continua a ser norma revogada. A distinção é importante. A adequação meramente semântica nos obriga a considerar a questão — sociológica — dos motivos pelos quais a norma é ou não cumprida. A adequação pragmática evita o problema de se saber se a regularidade (ou irregularidade) da conduta tem por motivo a norma, pois importante é a qualificação dos efeitos jurídicos. Um sujeito pode cumprir regularmente um comporta-mento movido por vários motivos (hábito, medo, esperteza, razões econômicas, políticas etc.). Para a adequação semântica, o impor-tante é o fato da obediência regular. Para a pragmática, impor-tante é a relação metacomplementar e, em consequência, as con-dições de aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade da norma, ainda que ela seja ou esteja sendo regularmente desobedecida. Apesar disso, há uma conexão com o aspecto semântico e com o sintático. Pragmaticamente, a efetividade é relação de adequação entre o relato e o cometimento de uma norma, num sentido in-clusivo, abarcando o nível sintático e semântico. Uma norma efetiva deve atender a condições que o seu próprio relato estabelece, ligando-as, também, ao relato de outras normas, mas tem de levar em conta a relação metacomplementar estabelecida, a qual pode ser afetada pelo fato da obediência ou desobediência. Assim, em-bora os três níveis (pragmático, semântico e sintático) não se confundam, eles guardam u