Terrorismo de Estado de Direito

Tercio Sampaio Ferraz Jr

 

Quando, pela segunda vez, o comandante Schumann, do Boeing da Lufthansa sequestrado recentemente, conseguiu ludibriar os terroristas, descendo em Áden e comunicando-se com as au­toridades, o chefe do grupo pôs-se a gritar:

O comandante Schumann é um traidor, ele quis fugir, segundo informaram as autoridades de Áden. Ou ele volta ou não vai sobrar nada deste avião. Vou executá-lo e o primeiro de vocês que gritar também será morto.
Schumann voltou. E de novo, diante dos terroristas, foi obrigado a ajoelhar-se. O diálogo foi dramático.
— Está formado o tribunal revolucionário. Você teve permissão de descer para inspecionar o avião?
Sim.
Você se aproveitou disso para entrar em contato com as autoridades?
Sim.
Então você é um traidor. Responda, você é culpado ou inocente?
Inocente, porque...

Schumann não terminou. Uma bala atravessou-lhe a cabeça. Mais tarde, já em Mogadíscio, num assalto repentino, os reféns eram libertados. Horas depois, o mundo inteiro proclamava a faça­nha. Mas, quisessem, ou não os mais importantes líderes mundiais, a partir dali não lhes era mais possível deixar de conviver com o legado de todo esse episódio: a dramaticidade do diálogo entre o comandante Schumann e seu carrasco. Algo mais violento que o próprio ataque dos terroristas ára­bes aos atletas judeus, nas Olimpíadas de Munique, em 1972.

O terrorismo é uma forma de violência muito semelhante à guerra revolucionária. No entanto, enquanto nesta o estado de beligerância é claro e aberto, no terrorismo ele é contido, explodindo repentinamente, mas de forma intermitente. Como na guerra revolucionária o terrorismo também se socorre de uma forma de direito que alguns chamam de direito à rebelião. Também ele instaura ordens jurídicas sumárias, como no tribunal que, em minutos, prendeu, julgou, condenou e executou o piloto da Lufthansa.

Nesse sentido, o terrorista, como revolucionário, não é um criminoso comum, embora seus atos possam ser até mais execráveis do que os daquele. O criminoso comum é aquele que fere a ordem vigente, mas que é capaz de reconhecê-la como tal. Já o terrorista e o revolucionário não agem contra a lei, mas a despeito dela. Não violam a ordem jurídica vigente, mas agem como se ela não existis­se. Seus atos não se insurgem contra a autoridade, mas desqualificam-na como tal. Eles, simplesmente, instauram uma outra em seu lugar.

Talvez seja por isso, justamente, que a teoria jurídica seja ambígua no que diz respeito ao direito de rebelião. O revolucionário não viola o direito. Ele, na verdade, põe outro direito. É óbvio que, do ponto de vista da autoridade instituída, isso não faz muita diferença. O sequestro por razões políticas não é nem mais nem menos sequestro que o executado por razões criminosas comuns. Mas, pa­ra o cientista social e para o teórico do direito, a questão propõe dificuldades que vão desde o modo como se deve reagir ao ato terrorista, até à justifi­cação do ato revolucionário capaz de instaurar a nova ordem legal.

Tanto a justificação do ato terrorista, quanto a do ato de defesa da ordem constituída não podem ser explicadas por uma consideração neutra. Elas implicam uma avaliação e a consideração de valores socialmente reconhecidos. Isso porque, de um ângulo neutro, não poderíamos ir muito além de uma aceitação cínica de que ambos, tanto o poder constituído quanto aquele que tenta derru­bá-lo, estão imbuídos de certos ideais que os torna igualmente válidos, dentro dos seus contextos. As­sim, por exemplo, teríamos de dizer que o terro­rista alemão é um idealista que tem lá os seus méritos, da mesma forma como a República Fede­ral Alemã tem os seus ao repudiá-los. Com esse tipo de raciocínio, entretanto, acabamos perdendo o sentido das coisas e nos entregamos a uma teoria que no afã de tudo explicar, a tudo justifica.

Esse dilema, por sua vez, não pode ser resolvido pura e simplesmente pelo reconhecimento unilateral de que nossos valores são os únicos que importam, em contraposição aos dos outros. Tal argumentação apenas isola os valores e conduz o próprio pensamento a isolar-se numa forma perigosa, capaz de instaurar uma ordem fechada que não se comunica. Isso seria reconhecer a autentici­dade das formas totalitárias de pensamento e atuação política.

Então, como julgar o terrorista? Esta pergunta, com todo o peso do dilema, deve estar sendo feita a si mesmo pelo chanceler Ifelmut Schmidt, a propósito das formas de resposta compatíveis com a democracia social que seu governo encarna. Na verdade, a situação alemã tem, hoje, uma dimensão universal de decidida importância. Isso porque o dilema que apresentamos não se coloca nem para o cínico, que tudo justifica, nem para o totalitário, que simplesmente ignora os outros. Trata-se, portanto, de um dilema para um pensamento e para

um regime democráticos. E o possível caminho a ser seguido pelo governo alemão certamente terá repercussões para toda a democracia ocidental.

Mesmo na própria Alemanha não faltam aque­les que exigem uma solução autoritária. Antes mesmo de Mogadíscio, conforme divulgava a re­vista Der Spiegel, a proporção dos cidadãos favoráveis a medidas extremas—como pena de morte ou maior discricionariedade policial, por exemplo — chegava a um para cada dois, ou seja, 50%. Por outro lado, o líder social-democrata Widy Brandt não teve receio de afirmar, perante seus compa­nheiros, que a democracia não se salva com atos autoritários.

No caso alemão, essa declaração teve ainda uma condicionante própria, pois o país conheceu, e disso ainda se lembra muito bem, uma experiência dolorosa: o nazismo. Qualquer atitude autoritária repercutiria internamente, mas a repercussão externa será bastante desfavorável.

É por isso que a opção democrática, a meu ver, tem de partir dos valores socialmente reconheci­dos dentro de um Estado de Direito. Uma demo­cracia autêntica não pode, simplesmente, respon­der deste modo: "tratemos o mal com o mal, zom­bando de suas próprias normas, seja passando por cima delas, seja desfigurando-as cinicamente atra­vés de interpretações maldosas". Afinal, caso par­tisse dessa resposta, a democracia autêntica esta­ria fazendo o jogo do terrorismo que, no confronto, sairia vitorioso.

O que distingue a resposta de um Estado de Direito da resposta de um Estado Totalitário ao ato terrorista é a atitude perante os valores dos outros. No jogo das relações humanas, o espírito democrático é o de transações, de trocas, de equilíbrio no debate aberto. Já o espírito que tanto o totalitário quanto o terrorista engendram é o jogo do tudo ou nada, numa inversão dos valores da convivência. Portanto, o que caracteriza o terro­rismo é uma perversão do direito e não um direito próprio.

Afinal, se de um lado não há direito sem impo­sição de comportamento — a lei deve ser obede­cida ou, então, não há lei —, de outro também só haverá direito onde existir o jogo aberto das dis­cussões, em termos de cartas na mesa, onde as opções devem ser debatidas antes dos julgamen­tos. O terrorismo perverte o direito porque o encara como ato de força, cujas decisões não conhecem os infinitos matizes do justo e do injusto, do bem e do mal, do certo e do errado. Como se os homens fossem divididos, de antemão, em dois grupos in­conciliáveis: "nós" e "eles".

A Alemanha Ocidental vive, hoje, um mo­mento difícil. Mas não se pode desqualificá-lo, julgando-o cinicamente. Quando Hitler ordenou o extermínio de uma cidade inteira da Checoslová­quia, como represália aos atos terroristas que mataram um comandante alemão, não era a soberania do direito, mas sim a supremacia da força e da violência que estava em jogo. Os atuais democratas alemães sabem disso e insistem, por isso mesmo, em que a luta pelo direito só pode ser feita com o direito, mesmo quando a força é utilizada.

Fonte: Sexta-feira, 25-11-77 — O ESTADO DE S. PAULO.